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Solos de atrizes(atores)/autoras(autores) – um desdobramento da criação

Podemos pensar que a participação cada vez maior de atores(atrizes) em processos de criação dramatúrgica possa ter contribuído para o florescimento de trabalhos solos que partem de projetos pessoais de atrizes(atores), e nos quais estes(as) assumem também a dramaturgia.

79 Podemos citar outros fatores que também podem ter contribuído, tais como: o formato individualizado de trabalho de conclusão de curso nos cursos de graduação em teatro, as dificuldades crescentes de manutenção dos grupos em suas estruturas humanas e econômicas, devido a uma fluidez maior nos vínculos artísticos entre artistas e também as dificuldades econômicas crescentes em relação à organização dos grupos. Por um motivo ou por outro, vemos que o formato solo se disseminou nos últimos anos, na maior parte das vezes como proposição de artistas que acumulam as funções de atuação e de dramaturgia. De acordo com Jaqueline Valdívia Pereira (2010):

No Brasil, alguns artistas, independentemente da linguagem escolhida, abordam o teatro produzindo seus próprios textos e ou monólogos, dirigindo e até mesmo atuando em seus próprios trabalhos, exemplos: O Teatro Essencial de Denise Stoklos, A Mímica Total de Luis Louis, Mario Bortolotto do grupo Cemitério de Automóveis, O Grupo Lume e seus monólogos personificados por Ana Cristina Colla, Renato Ferracini, Ricardo Puccetti, entre outros membros do grupo, seguindo a maneira do Grupo Odin Theatre[...] Da importância da construção do conhecimento teatral junto à perspectiva contemporânea – monólogos, espetáculos solo, solo performance, entre outros formatos similares – permanecem dúvidas: Trata-se apenas de uma tendência? Ou seriam resultados da expressão máxima da fusão autor/ator? (PEREIRA, 2010, p.2-3)

Em Belo Horizonte, vemos o gênero solo se expandir, a partir de 2010, dando origem, em 2013, à Mostra BH in Solos – Mostra de espetáculos cênicos individuais, produzida pelo ator Robson Vieira, que em suas cinco edições (2013 a 2017) recebeu mais de 40 espetáculos, sendo 31 produzidos na capital mineira, entre trabalhos solos vindos de integrantes de grupos já estabelecidos e propostas de artistas iniciantes ou independentes. Na maioria desses trabalhos, atores e atrizes assinam também a dramaturgia de seus trabalhos.

Em 2017, produzi em Dourados a Mostra Solo de Quintal, que reuniu 19 trabalhos solos, vindos dos estados de Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Natal. Em sua grande maioria, novamente temos artistas acumulando as funções de dramaturgia e atuação, sendo que em boa parte das vezes tais dramaturgias nascem de experiências pessoais ou autobiográficas, tais como em: Domingo, de Cida Falabella (Belo Horizonte), Laura, de Fabrício Moser (Rio de Janeiro), e Gavião de Duas Cabeças, de Andreia Duarte (São Paulo).

Ferreira (2017), ao fazer um apanhado de vários trabalhos cênicos soteropolitanos produzidos entre 2014 e 2017 que se declaram feministas ou relacionam-se a questões de gênero e empoderamento de mulheres, elenca vários espetáculos solos, alguns deles que pude

80 assistir, em 2018, em Salvador: Obsessiva Dantesca, com dramaturgia e atuação de Laís Machado; Rosas Negras, com dramaturgia de Fernanda Júlia (Onisajé) e atuação de Fabíola Júlia; IyàIlu, com dramaturgia e atuação de Sanara Rocha, e Isto não é uma mulata, com dramaturgia e atuação de Mônica Santana. Nesses trabalhos, destacam-se lugares de fala construídos pela interseção entre os marcadores de gênero e de raça, trazendo à cena corpos e vozes de mulheres negras, sujeitas pouco visibilizadas no meio social.

Ferreira (2017) destaca, em sua comunicação, uma relação entre a dissolução de grupos e a emergência de trabalhos solos femininos, sugerindo que nos grupos, muitas vezes dirigidos por homens, não havia espaço para a criação que partisse de experiências femininas. O enfraquecimento da estrutura de grupo, entretanto, não significa que o trabalho coletivo não aconteça, de forma reconfigurada: “se não temos a instituição dos grupos, vejo desenhar-se uma bela rede de colaboração, que é possível observar pela repetição de nomes nas fichas técnicas, ocupando diversas funções” (FERREIRA, 2017, p.11). Um exemplo dessa reconfiguração do trabalho coletivo é o Projeto Obìnrin – Ancestralidade, Residência

Artística e Performance Negra Feminista, coordenado pela atriz Laís Machado, que reuniu

artistas negras no Espaço Cultural da Barroquinha em Salvador, entre maio e julho de 2018, para atividades de residência artística, conferências, videoconferências, espetáculos e exposições. Embora a maioria dos espetáculos apresentados no contexto do projeto fossem solos, o evento proporcionou uma rede de troca e de intercâmbio entre as artistas participantes.

Saudamos a inventividade das mulheres que engendram formas de resistência ao machismo estrutural, encontrando formas de organização alternativas que possibilitam a expressão de uma maior diversidade de discursos dramatúrgicos na cena contemporânea. Ao mesmo tempo, criticamos na recepção desses trabalhos o foco no aspecto da especificidade e/ou subjetividade das artistas na criação, enquanto ainda se reserva o título de “universal” como experiência masculina e categoria mítica no imaginário teatral. Tão melhor seria reconhecer na particularidade das vozes dramatúrgicas seus aspectos universais e vice-versa, como já preconizado pela premissa feminista “o pessoal é político”.

Por outro lado, mesmo questionando noções de gênero que nos enquadram como femininas e insistindo que esses trabalhos artísticos nos quais a autoria é muito visível em cena também carregam elementos de universalidade, interessa-nos essa operação por meio da

81 qual a(o) autor(a) se constitui em cena por meio do discurso dramatúrgico. A criação dramatúrgica aparece assim como uma cena peculiar de interpelação, na qual esse(a) autor(a) contemporâneo(a), de uma forma ou de outra, precisa relatar a si mesmo, narrar o seu lugar de fala a partir do qual constitui sua obra. Nessa cena, elementos pessoais e subjetivos da(o) autor(a) se mesclam a marcadores sociais, localizando socialmente essas vozes a partir de marcadores de gênero, raça e classe social.