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Início do processo criativo com Rossandra e produção dos primeiros materiais

Resolvi voltar ao projeto inicial e pensei que se não era tão simples compor um grupo intercultural para realizar explorações criativas na cidade, a relação intercultural e de coautoria poderia ser realizada de alguma forma e sem o compromisso com um produto dramatúrgico final ou que pudesse ser encenado. Foi então que me lembrei de Rossandra Cabreira, que havia sido minha aluna na Licenciatura Intercultural Indígena e que nesse período havia demonstrado grande interesse pelo teatro. Corria o mês de julho de 2017, e ainda pensei durante várias semanas se deveria ou não convidar Rossandra, pois eu estava muito insegura e tímida para propor essa relação. Enfim, me decidi, e combinamos um primeiro encontro para o dia 23 de agosto, no espaço cultural Casulo.

No dia 23, Rossandra veio com o marido, Juvenal Hermes da Silva. Disse a ela que queria escrever sobre a cidade e que queria escrever com alguém que tivesse uma visão diferente da minha, que visse a cidade a partir de outra perspectiva e que pensei nela, por ela morar na Reserva (Reserva Indígena de Dourados). Disse também que com o resultado de nossas escritas, a gente poderia fazer uma leitura na FAIND, ou apresentar de alguma forma, ou optar por não apresentar. Disse que o que faríamos era uma experiência e que iríamos descobrir juntas. Ela aceitou a proposta e pareceu compreender tudo muito rapidamente, e

155 combinamos de nos encontrar uma vez por semana para essa atividade. O próximo encontro seria dia 30 de agosto e preparei algumas perguntas básicas para conduzir o que seria nossa primeira produção de material: a) Como é viver em Dourados? b) O que você gosta e o que você não gosta em Dourados? c) “Se essa rua fosse minha”... como seria? A partir dessas perguntas, conversamos bastante nesse encontro e fui anotando o que ela dizia, conforme imagens abaixo:

FIGURAS 35 a 41: Anotações da primeira conversa entre Júnia e Rossandra sobre o processo de Jaity Muro, agosto de 2017.

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Caderno pessoal da autora.82

82 Figura 35: 1) Conversa com Rossandra. A) olhar indígena sobre a cidade. Sonho – mercado de trabalho - ver o

filho trabalhando no supermercado, numa empresa grande, ser gerente, no banco. Mas, na verdade, isso é impossível. Quando o filho tá na escola, eu mesma imagino minha filha trabalhando num lugar onde ela se sinta bem. Ser caixa de supermercado sonho de tantas meninas da aldeia. B) Comunicação. Como se sentem dentro da cidade. Não sei se você já prestou atenção, mas a gente fica muito calado. Medo de errar as palavras. Medo de não entender nada que vocês estão falando. É difícil pra nós fazer falar. Mas quando aprende, não se cala. Figura 36: as pessoas que estão à frente do AtyGuasu, movimento de jovens, de mulheres, isso não partiu deles, isso partiu de alguém incentivando eles, eu não ia ter coragem de falar isso que você fala, que Márcia fala, isso a gente aprende, ainda não tenho a coisa de falar, eu sou muito boa, parece... Quando a gente tá entre os indígenas, a gente fala muito muito mesmo, só entre indígenas. Primeiro tem que ter confiança em você, depois fala. Quando começa aprender a falar, fica bravo, como cacique, se solta, não fala baixo, fala alto.

Figura 37: De bom e ruim na cidade. A cidade é muito bom, tem muita coisa p/ comprar. p/ quem tem dinheiro, tem loja, roupa bonita, comida diferente. De ruim na cidade é muito carro. Tenho muito medo de carro e barulho de carro. Como é que o povo aguenta esse som tão forte? E além disso é mto quente, só o asfalto faz esse forno. O bom na aldeia é que você pode deixar sua moto em qualquer lugar. Na escola você deixa o capacete em cima, não leva. Aqui você tem que deixar 2 correntes. Uma vez roubaram nossa moto. Faz quase 2, 3 anos que ela não vem pra cidade. Deus me livre atravessar aquela rua. Não é terra, é piso. Você cai, se machuca.

Figura 38: Vim pra cidade é difícil. Por isso que eu vivo aqui há muito tempo, e a gente não sabe os lugares que tem na cidade. À noite a gente não sai. Alguns vem, os adolescentes de hoje faz isso. [Supermercado] ABV, São Francisco, p/ fazer compra. Usa a estrada da missão. Aldeia: Aldeia é bom pq é fácil de andar de um lugar pro outro, ir a um evento, na igreja, mas não é mais como antigamente, quando eu era criança eu ia muito nas festas tradicionais, hoje quase ninguém faz isso. Quando eu era criança eu dancei muito, ia no guaxiré, participei de vários, dançava tb no clube que tinha lá. Hoje o que eles vem é só na escola. À noite é perigoso. O perigo são as drogas que entra. A violência tá muito grande. Eu mesma não [...]

Figura 39: [...] saio à noite. Tem que ter um carro pra levar as crianças. Mto som alto à noite, atrapalha demais também. OUVIDOS. A primeira vez que eu escutei as pessoas cantando, dançando longe, eu perguntei, minha mãe falou “é canto, é reza”. Hoje você escuta som, funk, bêbado gritando, você não escuta mais como era antes. Não é mais como antes, você lembra que eu fazia muito guaxiré, cantos e rezas, a tradição está acabando, o que se escuta não faz bem pra alma. Hoje tem os saberes indígenas [Projeto Saberes Indígenas na Escola]. Com isso associei muitas coisas do passado e do presente. Quando eu era solteira, minha mãe falava que eu tinha que saber fazer artesanato pra vender, pra ajudar minha família. Estudar, não tive muita chance. Meu pai falava que eu tinha que comprar caderno e lápis. Ou então “se você termina essa cesta, você vai [...]

158 A partir dessa primeira conversa, alguns elementos da fala de Rossandra me chamaram a atenção:

Quando ela dizia que o sonho de muitas meninas da aldeia é ser caixa de supermercado, lembrei de mim mesma, de meu primeiro emprego formal como caixa de supermercado, aos 16 anos. Lembrei também do primeiro cachê que recebi como atriz, aos 20 anos e o que fiz com o dinheiro: uma compra no supermercado, na qual comprei produtos que em geral não comprava: iogurtes, doces, etc. Lembrei também da fala do antropólogo Viveiros de Castro (2015), que critica o Estado brasileiro por “transformar indígenas em pobres”. Identifiquei essa conexão entre minha memória adolescente e a fala indígena de Rossandra, que se dá pela vivência da pobreza;

Quando ela falava sobre a comunicação, sobre o não falar, sobre o não se sentir à vontade para falar: “é difícil para nós fazer falar. Mas, quando aprende, não se cala”. Isso me chamou a atenção, de onde vem esse silêncio senão de um silenciamento histórico? E como quebrar isso, seria possível quebrar, numa simples peça de teatro? Rossandra também compara (e se compara) com lideranças que falam muito, que aprenderam a falar: “quando começa aprender a falar, fica bravo, como cacique, se solta, não fala baixo, fala alto”. E penso que poderia ter convidado uma liderança para estar comigo em cena, e não o fiz. Tomo consciência de que o que me interessa é o não dito, o silenciado... e que, de alguma forma, minha experiência de vida como mulher, mesmo tão diferente da experiência de Rossandra, se identifica com esse silenciamento.

Procurei os verbos que mais apareciam nos relatos de Rossandra, sobre o que há de bom e de ruim na cidade e na aldeia e identifiquei, além do lembrar (memória), a presença dos sentidos: ver, ouvir, sentir, cheirar. Também viver e sonhar.

dos professores, vem logo as coisas que minha vó, minha mãe falava. Minha mãe à noite contava histórias, ao redor do fogo. Hoje ninguém mais faz isso na aldeia. As mães, os pais não tem tempo. Se a mãe e o pai não tem tempo, a escola tem que ter. Eu conto uma história pros meus alunos, eles gostam mesmo. Eu nunca pensei que minha mãe estava me ensinando o grafismo todo o tempo que eu estava com ela. Eu fui fazer o TCC sobre o grafismo. MEMÓRIAS. CONEXÕES.

Figura 41: Hoje na escola algumas crianças são totalmente voltadas, preparadas p/a cidade, ensino médio, o q você quer da sua vida? Na minha época tendo um chinelo tavamto bom, era mto difícil pegar uma roupa boa, hoje as crianças que mandam, que escolhem. Hoje é proibido bater no filho. Minha avó gostava de fazer guaxiré. Todo sábado ela fazia. Era muito bom. Eu sou vó, mas eu não sei fazer, como eu vou começar? Iniciativa.

159 A partir da identificação da presença dos sentidos, e buscando também uma conexão com o projeto original que previa uma expedição sensória pela cidade, trabalhamos no próximo encontro com produção escrita individual (minha e dela) motivada pelas perguntas: o que sinto/vejo/ouço/cheiro na cidade e na aldeia? Abaixo o registro da produção desse dia:

Material Textual: VER

ROSSANDRA

o ver. Olhar sobre a cidade de dia. De longe vejo os prédios altos e algumas casas. Parecem pequenos, à noite parecem muitos vagalumes com luzes coloridas. Parece bonito, e um paraíso. Então, ao entrar na cidade muda tudo, muitos carros, muito calor e as luzes não são vaga lumes são luzes que não saem do lugar e nem voam. Então você se perde quando vai atravessar as ruas você não sabe se corre ou anda é tudo muito igual as ruas iguais, as casas iguais, e carro igual nem uma pessoa se cumprimenta todos estão apressados, não tem bom dia, nem um oi, tudo muito estranho.

Vejo o mato ao lado de casa, minha gata, árvores sombra, vejo as pessoas se preocupando, vejo cotia andando, vejo lagartão andando

Meu olhar atrás da mata verde queria olhar e ver matas, rios, peixes e animais, mulher fazendo artesanato, suas cestas, tecendo redes, cantando e feliz por apenas viver, não se preocupar com dinheiro, contas, são livres para correr, nadar, pular, comer, plantar

Mas vejo sofrimento no olhar de pequeninos, não tem mais floresta, não tem rio, não tem plantação, tudo é ilusão

Vejo os guerreiros lutando pelos seus direitos uns morrem e outros vivem para contar às crianças que ainda há esperança nos olhares sofridos e pronto para lutar

JÚNIA

O que eu vejo na cidade

Da minha janela, vejo a cerca elétrica. Vejo ruas asfaltadas muito iguais, muito parecidas. Vejo muita grama verde. Vejo flores. Vejo gatos e cachorros. Vejo muito pouca gente.

Vejo a tela do computador, do celular. Vejo as fotos dos meus amigos em festas, o que comeram, o que estão fazendo, as fotos das suas viagens. Vejo páginas de internet, abas que se abrem, notícias, análises.

160 Não vejo quase ninguém. Passo o dia inteiro sem ver ninguém de verdade. Quando saio no centro, vejo muitos carros, muitas lojas, vitrines, o céu azul, amplo, e noite ampla, estrelada. Vejo velhinhos na praça, vejo homens e mulheres dirigindo carros grandes, vejo jovens de uniforme escolar, vejo propagandas de cursinho, de escola, escola que prepara para o vestibular.

Quando vou em terra indígena vejo a terra, vejo cachorros, vejo sempre muitas crianças, galinhas, vejo casas de tijolo e às vezes telhado de sapê.

Vejo muito espaço na cidade. Muito espaço entre as pessoas.

Material Textual: Ouvir

ROSSANDRA

Ouço pássaros cantar, ouço

Como ouvir as coisas que me deixem bem quando é de dia escuto silêncio do ar, do vento, do canto dos pássaros, os latidos do cachorro e o miado do gato. De vez em quando ouço o carro passar e barulho de moto no meu tekoha. À noite são muitos barulhos de funk, músicas com caixa de som alta, orações das igrejas. E quando quero um sossego penso: vou à cidade, mas na cidade são vozes misturadas com som de carro e microfone das lojas e assim volto com dor de cabeça.

JÚNIA

O que eu ouço na cidade

Ouço ruído de cerca elétrica, pequenos estalos.

Ouço cachorros latindo. Quando ando na minha rua, no meu bairro, vou passando e os cachorros vão latindo. Eles vem até o portão, e latem. Não é bom ouvir isso, eles são agressivos, e assustam. Não se pode andar nas calçadas.

Ouço barulhos de construção, estão sempre construindo, barulho da máquina de fazer concreto girando, ouço barulho de fanfarra ensaiando, são muitos grupos de fanfarra, alguns acho que são de militares. Ouço barulhos de carros.

Quase não escuto vozes.

Escuto também o rádio, toca alto um programa de rádio onde as pessoas falam dos seus problemas. Ouço também música sertaneja. E muitos passarinhos.

161 Ouço o barulho do maracá e do taquá, e acho bonito. As vozes são graves e parecem que não saem da boca, mas ficam ressoando no corpo todo.

Material Textual: Cheirar

ROSSANDRA

Os cheiros das flores são os que me deixam viva. Sinto cheiro da comida mandioca assada queimando e cheiro de batata assada e milho queimando na hora da janta. Isso significa que está na hora de comer. Na cidade, sinto cheiro muito forte de esgoto e gasolina, me faz espirrar bastante, mas ainda bem que volto onde é o meu tekoha, mas mesmo assim sinto cheiro de cachorro morto na estrada e assim vou cheirando e cheirando

Meu tekoha sinto cheiro de ar puro vindo do mato ar úmido Sinto cheiro de flores da mata

Sinto cheiro de batata assada, mandioca e milho assado

Quando chove sinto o cheiro da terra que me traz lembranças boas das histórias dos meus avós

Sinto cheiro de comida sendo preparada no meu tekoha

Na cidade sinto cheiro de gasolina, comida de restaurante, cheiro de fossa, cheiro de aterro sanitário

Cheiro de frutas quando passo em frente da frutaria

Sinto cheiro, cheiro e mais cheiro, uns bons e outros bem ruins Cheiros = como sentir o sabor da terra

Os cheiros das flores são os que me deixam viva. Sinto cheiro da comida, mandioca assada queimando no fogo, na hora da janta quando é assim é hora de comer.

Na cidade cheiro muito forte de esgoto e gasolina, faz eu espirrar bastante, mas ainda bem que volto onde é o meu tekoha, mas mesmo assim sinto cheiro de cachorro morto na estrada e assim vou cheirando e cheirando

JÚNIA

Cheiro de terra molhada quando chove. Cheiro de chuva. Cheiro de lixo acumulado, quando esqueço de colocar para fora. Fora de onde?

A cidade tem cheiro de poeira em alguns lugares tem cheiro de gordura que vem das lanchonetes. O cheiro de suor das pessoas quando faz calor.

162 A aldeia tem cheiro de terra e mato.

Material Textual: Sentir

ROSSANDRA

Na minha casa sinto [falta da] presença de visitas dos parentes mais próximos, então para ter companhia, procuro o celular ou computador. Na rua poucas pessoas se olham e param para cumprimentar, perguntam onde vão, de onde vem. E por isso vou até a porta, sinto vento suave e me sinto sozinha. Na cidade onde tem muita gente ainda me sinto mais sozinha porque ninguém olha para os lados para ver que eu sou gente, passo desapercebida por todos, mas quando volto para casa percebo que tenho família que mora comigo o tempo todo, essas pessoas me fazem sentir feliz...

Sinto clamor de grito

Na minha casa sinto presença de visitas dos parentes mais próximos, então para ter companhia, procuro o celular ou computador, mas nem isso me satisfaz.

O meu sentir tem nome, chama família. Isso é se sentir aconchegado de um abraço, de um carinho.

O sentido me faz sentir sozinha quando vou a cidade, paro e penso nas ruas e multidões de pessoas, muitos apressados, não olham para os lados e nem veem quem está passando.

No meio de tanta gente me sinto tão sozinha porque na cidade cada um pensa em si mesmo e todos apressados.

Passo desapercebida por muitas pessoas. Ninguém se cumprimenta mais

A rua de estranhos passando

JÚNIA

Sinto muito calor quando faz calor. Mas prefiro sentir calor do que sentir frio. Sinto muito frio quando faz frio. Gosto de sentir o vento.

Sinto sono de manhã. Fico ansiosa quando vou começar um trabalho. Sinto vontade de comer coisas gostosas e às vezes não sei o que é que eu queria.

Sinto raiva das injustiças e sinto medo de ficar sem apoio das outras pessoas.

Sinto muito sozinha quando saio na rua e não encontro nenhum conhecido, e ninguém me cumprimenta. Sinto muito cansaço quando caminho pela cidade a pé, quase sempre faz muito

163 calor e não falo com ninguém.

O material acima vai dar origem, posteriormente, às cenas 01 e 03 da dramaturgia de

Jaity Muro. Naquele momento, porém, após três encontros de conversas e de escritas, ao

invés de continuar investindo na produção de material textual, sentimos falta de realizar experimentações cênicas.

Na verdade, por mim eu continuaria escrevendo, mas eu me preocupava que Rossandra tivesse certa expectativa de fazer teatro, de apresentar alguma coisa. Então achei que seria bom vivenciarmos a experiência de estar em cena. Ao mesmo tempo, eu não queria nos dirigir, porque queria estar numa relação horizontal com a Rossandra e também queria estar numa posição de experimentar também, de não saber. Então sugeri para Rossandra que chamássemos a artista Karla Neves83 para nos dirigir. Rossandra e Karla já se conheciam, porque Karla também atuou na Licenciatura Intercultural Indígena.