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Primeira abordagem da obra original: encontro no parque e “música das azeitonas”

A ideia geral da adaptação dramatúrgica proposta para Judith e sua sombra de menino foi transpor a obra literária para a linguagem teatral, adaptando-a ao nosso contexto cultural e linguístico e às nossas referências espaço/temporais. A obra original trata de Julie (Júlia), uma criança que de tanto escutar de seus pais que se comporta inadequadamente para uma menina, acorda um dia com uma sombra de menino.

Em determinado momento da fábula, a personagem Júlia, na tentativa de se livrar de sua sombra de menino, vai até um parque e tenta cavar um buraco para se esconder, pois “embaixo da terra é sempre escuro, não é possível ter sombra!” (BRUEL, 2010, p. 42). Chegando, porém, ao parque, ela encontra um menino e os dois começam a conversar. O menino pergunta por que ela quer cavar um buraco e conta que se escondeu ali para chorar, já que sempre que ele chora na frente dos outros, dizem que ele se parece com uma menina. Os pais de Júlia vão até o parque procurar por ela, mas as crianças se escondem e não são descobertas. Júlia e seu novo amigo questionam o fato de terem que adequar seus comportamentos sempre ao que é esperado de uma menina ou de um menino e concluem que têm o direito de serem o que são. As crianças adormecem e no dia seguinte Júlia resolve voltar para casa, com mais confiança em si mesma. Segue abaixo esse trecho final da obra, com diagramação e ilustração originais, na versão traduzida para o português por Álvaro

113 Faleiros (2010):

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História de Júlia e sua sombra de menino, p.48 a 65.67

Na obra original, as personagens são apenas cinco: Júlia, seus pais, sua sombra e o menino que Júlia encontra no parque. Em nossa versão teatral, logo no início do processo de ensaios, sentimos necessidade de inserir outros personagens para poder mostrar cenicamente situações que no livro eram apenas narradas, sugeridas ou evocadas. Assim, a partir de improvisações na sala de ensaio surgiram Amanda, Gustavo e Paulinho, prima e primos de Judith, que já desde as primeiras cenas aparecem para brincar com ela. A figura da avó e do diretor de escola surgiram, posteriormente, para compor a lista de personagens. Os ensaios

67 Figura 19: - O que é que você está fazendo neste buraco? Figura 20: - Ahn... E você? Por que está chorando?

Figura 21: - Quando fico triste, venho aqui para chorar, sem ter ninguém pra rir de mim. Todo mundo diz que eu choro como as meninas. Aliás, todos dizem que pareço uma menina. – De todo modo, essa sua pá é pequena demais! – E daí... E os ratos por acaso tem pás? Figura 22: - Psiu! Vem chegando alguém. Vamos nos esconder, rápido! Figura 23: - São meus pais – comenta Júlia. – Acho que não viram a gente. E os seus? – Bem, os meus?... Estão sempre dormindo. Figura 24: - Você sabe, todo mundo diz que eu pareço mesmo com um

menino. As pessoas dizem que as meninas devem fazer o que as meninas fazem, e os meninos devem fazer como os meninos. Não temos o direito de fazer nenhum gesto diferente do que se espera. – Olha, é como se cada um de nós estivesse preso num pote. – Como pepinos? – Sim, como pepinos. Num pote, os pepigarotos, em outro, as pepimeninas... e ninguém sabe onde colocar as garomeninas. Eu penso que, se quisermos, podemos ser os dois ao mesmo tempo. Não ligo para as etiquetas. Temos esse direito! – Você acha mesmo? – É claro que temos o direito. Figura 25: Eles acabam adormecendo. Figura 26: É de manhã. Está um pouco frio. A fome aparece. – E agora, o que fazemos, Júlia? – Ora, vamos voltar pra casa. – Tudo bem. Mas o que vamos dizer? – Vamos contar que nos perdemos e depois achamos o caminho. Figura 27: Na certa, em casa vai dar confusão. Mas o que ela compreendeu nessa noite é mais importante do que tudo. “Temos o direito, temos o direito”, repete Júlia ao caminhar. Aconteça o que acontecer, agora ela sabe. Ela é a Júlia. Júlia-fagulha Júlia-fúria Júlia-Júlia

118 começaram em julho de 2016 e já no início de setembro as crianças Amanda, Gustavo e Paulinho tinham perfis esboçados, sendo que Amanda e Paulinho tendiam a estar mais ajustados aos padrões de gênero, e Judith e Gustavo um pouco mais dissonantes.

FIGURA 28 - Cena de “Judith e sua sombra de menino”,Teatro Municipal de Dourados, março de 2017.

Da direita para a esquerda: Zezinho Martins (como Paulinho), Sorrayla Parra (como Amanda), Júnia Pereira (como Judith) e Raique Moura (como Gustavo). Foto: Punto Áureo Fotografia e Audiovisual.

Assim, no primeiro tratamento dado à adaptação teatral do encontro no parque, surgiu a ideia de que Judith surpreendesse seu amigo Paulinho chorando, ao invés de encontrar simplesmente com um desconhecido. Isso traria outro significado para a cena, pois mostraria que, muitas vezes, por trás de padrões normativos de comportamento existem expressões reprimidas. Também criamos uma canção a partir da narrativa, presente no texto original, deste momento em que Judith e Paulinho se percebem como desviantes das normas de gênero, que chamamos “Música das Azeitonas”. Nessa composição, inserimos referências culturais mais próximas a nós, como o pote de azeitonas em lugar do pote de pepinos e o arco-íris como símbolo da diversidade de gênero e sexual. Conforme primeiro esboço dramatúrgico abaixo:

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CENA 09 – JUDITH FAZ SUA TROUXINHA E FOGE DE CASA

Judith corre numa esteira com suas malas e uma pá. Chega a um parque e tenta cavar um buraco, mas não consegue. A terra é dura. (cena dos pais procurando Judith?) Judith chuta a pá e machuca o dedo. Dá um grito.

Judith: Ai!

Paulinho: O que foi?

Judith: Paulinho! Sai daqui! Eu não quero que você veja! Paulinho: Ver o quê?

Judith: A minha sombra.

Paulinho: (olha na direção apontada por Judith) Eu não vejo nada.

Judith: Não mente! Eu sei que ela está ali! (Judith se vira e aparece a projeção da

sua sombra de menino ao fundo. Quando se vira de novo para a frente, a projeção some).

Paulinho: O que você está fazendo aqui com esta pá?

Judith: Estou cavando um buraco para fugir dela (aponta para a sombra, que

aparece e acena para Judith) Você viu?

Paulinho: Já falei que não vejo nada. De todo modo, essa sua pá é pequena demais! Judith: E daí? E os ratos por acaso tem pás?

Paulinho: Posso te perguntar uma coisa? Judith: Depende.

Paulinho: Por que você disse que não quer mais ser minha amiga? (começa a chorar) Judith: Por favor, não chore. Eu disse aquilo por causa da sombra, mas não é verdade. Você é meu único amigo.

Paulinho – Quando fico triste, venho aqui para chorar... todo mundo diz que eu choro como uma menina, aliás...

Azeitonas

Letra: Christian Bruel, Júnia Pereira e Tatá Santana Música: Tatá Santana

Vozes masculinas – Todo mundo diz que eu pareço uma menina. Vozes femininas – Todo mundo diz que eu pareço um menino.

Coro – Todo mundo diz que as(os) meninas (os) só devem fazer o que as(os)meninas (os) fazem!

Vozes masculinas – Seja firme!

Vozes femininas – Cruze as pernas! Não brinque de carrinho! Vozes masculinas – Não brinque de boneca! Fale grosso! Vozes femininas – Fale baixo! Seja delicada!

Vozes masculinas – Não posso rebolar.

Todos– Todo mundo diz que as(os) meninas (os) só devem fazer o que as(os)meninas (os) fazem!

Vozes femininas – Seja firme!

Vozes masculinas – Cruze as pernas! Não brinque de carrinho! Vozes femininas – Não brinque de boneca! Fale grosso! Vozes masculinas – Fale baixo! Seja delicada!

Vozes femininas – Não pode rebolar.

Vozes masculinas – Não temos o direito de fazer nenhum gesto diferente do que se espera.

Judith – (falando) É como se cada um de nós estivesse preso num pote, como azeitonas. Num pote, as azeitonas verdes, em outro, as azeitonas pretas. Eu penso que, se quisermos, podemos ser de todas as cores do arco-íris.

Vozes masculinas – Que bom que eu te encontrei, agora eu sei, não estou só. Me dê a mão.

Vozes femininas – Vamos juntos, dizer a todos: que temos o direito. Aconteça o que acontecer, temos o direito!

Todos – De nos perder e nos achar, de saber e perguntar. Não estou só! Agora eu sei! Que bom que eu te encontrei!

Paulinho: Olha, Judith, agora está crescendo asas em você! (Paulinho brinca com a

fonte de luz, fazendo surgir asas na sombra de Judith)

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Paulinho: (ri) Olha que legal! Você pode ser um gatinho, ou uma baleia... Judith: Ou um macaco...

Paulinho: Eu tenho uma faca e vou matar você! Judith: Eu transformo a sua faca numa flor! Paulinho: É só uma mão! (riem)

Judith e Paulinho continuam brincando com a fonte de luz e projetando sombras na tela. Aos poucos, luz vai caindo.(PEREIRA, 2016, s.p)

4.2 Estudos de gênero, interseccionalidade68 e inserção de crianças indígenas como personagens no espetáculo

Um dos elementos do projeto de montagem era o meu desejo, como produtora e dramaturga, de homenagear Judith Butler como referência teórica para a problemática abordada. Tal desejo se refletiu na mudança do nome da personagem de Júlia para Judith, mas também motivou, em julho de 2016, no início do processo de ensaios, minha proposição ao grupo de artistas para que fizéssemos a leitura e a discussão do primeiro capítulo do livro

Problemas de Gênero (BUTLER, 2015b). Um dos pontos que me chamou a atenção nessa

obra é a ênfase dada à relação entre gênero e contexto social, histórico e político, considerando os aspectos étnicos e de classe. De acordo com a filósofa:

Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida. (BUTLER, 2015b, p. 21)

Ora, no livro A história de Júlia..., escrito na década de 1970, as personagens são brancas, francesas e de classe média. Assim, colocaram-se para mim algumas questões na adaptação para o contexto brasileiro e douradense, pois se o Brasil é considerado, segundo pesquisa da Organização Não-Governamental (ONG) Save the Children(2016),o pior país da América Latina para ser uma menina, certamente não o é, da mesma forma, para meninas brancas, negras, indígenas, imigrantes, pobres, ricas, de classe média, da elite etc. Sem

68 Grosso modo, o feminismo interseccional, além de trazer uma perspectiva de gênero não essencialista, enfatiza

as interseções entre gênero e contexto social, histórico e político, considerando aspectos étnicos e de classe. Akotirene (2019) conceitua a interseccionalidade como uma “sensibilidade analítica” para compreender os cruzamentos do racismo, do cisheteropatriarcado e do capitalismo, e reivindica que tal conceito seja creditado ao feminismo negro.

121 realizar um juízo de valor entre diferentes opressões de gênero, percebemos que os padrões de gênero impostos sobre Júlia são característicos de famílias brancas de classe média e, assim, seus conflitos com as normas de gênero tratam, principalmente, do cerceamento da sua livre expressão e desenvolvimento no que diz respeito ao seu modo de brincar, de se vestir e de se pentear.

Nossas primeiras improvisações na sala de ensaio, conduzidas pelo diretor Gil Esper, giraram em torno dos temas “Isso lá são trajes/ Isso lá são modos” e criamos várias cenas nas quais Judith se vestia e se penteava de diferentes maneiras, ou tentava brincar mais livremente e era sempre repreendida pelos personagens adultos. Numa canção criada logo no início dos ensaios e que deu origem a uma cena do espetáculo, parti das bonecas mais vendidas da atualidade para imaginar padrões de comportamento que poderiam estar servindo como modelos para a criança Judith. Com espanto, me dei conta no meio do processo de criação que os preços de tais bonecas chegavam cerca de trezentos reais, mais do que um terço de um salário mínimo da época.

Ora, falar de gênero para crianças apenas em termos da conquista de liberdades individuais (por exemplo, menina pode jogar bola e se vestir como quiser) e no contexto de uma família branca de classe média pode tornar invisíveis outras vivências de gênero em suas interseções com classe, etnia e outros aspectos da vida social. Não podemos universalizar a opressão de gênero vivida pela personagem Judith(Júlia): ser bonita, delicada, recatada, submissa, meiga, quieta, discreta não são atributos universais de feminilidade. Essas questões dizem respeito a um ideal específico de feminino que, no contexto da sociedade brasileira, está associado às mulheres brancas: o que está como base para essa educação é um projeto de “boa esposa” e “boa dona de casa”. Não é esse o mesmo lugar social destinado às meninas e mulheres negras e indígenas, que recebem outro tipo de educação e sobre quem são depositadas outras expectativas. Como nos instrui Akotirene (2019): “Gênero inscreve o corpo racializado” (AKOTIRENE, 2019, p. 28). De acordo com Lélia Gonzalez (1984), os atributos de beleza, delicadeza e educação geralmente associados ao feminino são exclusivos da branquitude:

[...] constatamos que o engendramento da mulata e da doméstica se fez a partir da figura da mucama. [...] podemos constatar que somos vistas como domésticas. Melhor exemplo disso são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada vez mais crescentes. Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem

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vestidas” (afinal, “boa aparência”, como vemos nos anúncios de emprego é uma categoria “branca”, unicamente atribuível a “brancas” ou “clarinhas”). Os porteiros dos edifícios obrigam-nas a entrar pela porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os mesmos que as “comem com os olhos” no carnaval ou nos oba- oba da vida). (GONZALEZ, 1984, p.230)

Como apontado por Gonzalez (1984), a educação e a boa aparência, características impostas à nossa personagem Judith/Júlia e que movem o conflito da trama, não são características universais impostas ao feminino, uma vez que não são atribuídas a mulheres negras, as quais, vistas na sociedade brasileira a partir da figura da mucama, são ao mesmo tempo hiper sexualizadas e educadas para o trabalho doméstico. E as meninas e mulheres kaiowá e guarani, como será que vivenciam a opressão de gênero? Tal questão passou a fazer parte de nossos questionamentos, e mesmo sabendo que por força da necessidade de conclusão do projeto já em andamento não poderíamos mudar o perfil de nossa protagonista, nos preocupava que ao menos conseguíssemos evidenciar, em cena, que a experiência de gênero da personagem Judith(Júlia) não era universal.

Tornou-se necessário contrapor à inadequação da personagem Judith não somente a inadequação de seu amigo do parque – um menino sensível e por isso também fiscalizado e tolhido na expressão de sua individualidade–, mas também a inadequação de outros corpos divergentes que vêm sendo silenciados e invisibilizados na sociedade douradense: corpos Kaiowá e Guarani. Isso porque não há como falar sobre diversidade a partir de Dourados sem levar em conta a relação violenta de nossa cidade com os povos originários, que perpassa aspectos da escravidão e do genocídio históricos, do confinamento contemporâneo e dos muitos aspectos da exclusão social.

Como proposta dramatúrgica, começou a surgir a ideia de que, no momento em que a personagem Judith saísse de casa – na obra original ela vai até um parque – , ela pudesse percorrer as ruas da cidade de Dourados em direção às periferias ou aos limites com a Reserva Indígena, de forma a se encontrar com crianças Kaiowá. A partir dessa ideia, em setembro de 2016, elaborei e apresentei ao grupo, como responsável pela dramaturgia (adaptação teatral) do espetáculo, uma primeira versão da cena do encontro no parque na qual aparecia uma personagem indígena. A solução encontrada nesse primeiro momento foi a transformação do amigo de parque de Judith em um menino Kaiowá, mantendo-se ainda o nome que havia dado para ele anteriormente (Paulinho). Nesta primeira versão, Judith foge de casa para “cavar um buraco e se esconder”, assim como no livro, mas se encontra com uma criança indígena que

123 lhe conta sobre a luta dos Kaiowá pela terra. Judith, por sua vez, compartilha com ele o seu conflito com as normas de gênero.