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Vendaval: tempo, dinheiro e desejo

Em Vendaval (2015) e Anemia (2017), a escrita não foi feita junto ao processo de montagem, caracterizando processos de criação dramatúrgica "de gabinete". As aspas são intencionais, pois apesar da escrita não estar inserida em um processo de montagem, a criação envolveu redes de relações criativas com outras(os) artistas, sem as quais os trabalhos não teriam existido.

Em Vendaval, escrito por mim e por Glauce Guima para ser lido no projeto Janela de

Dramaturgia16, o processo de coautoria assumiu um caráter até então não experimentado, pois foi mediado por recursos como o Google Drive, o Skype e o telefone. Glauce morava, então, no Rio de Janeiro e eu, em Minas Gerais.

Partimos de uma situação parodiada do contexto de nossa relação de amizade: uma amiga sai de Minas Gerais e chega com uma mala na casa da outra, no Rio de Janeiro. Eu havia vivido essa situação no início do ano de 2010, quando passei alguns dias em casa de Glauce. Sempre a visitei, mas nesse momento foi uma visita especial, pois estava

16Janela de Dramaturgia é uma Mostra Anual de dramaturgia de Belo Horizonte, idealizada por Sara Pinheiro e

Vinícius Souza. Desde 2012,Janela... mantém suas atividades, centradas em leituras dramáticas de textos inéditos, seguidas de bate-papo com artistas e público, além da produção de críticas acerca dos textos lidos. Em 2016, o projeto publicou pela Editora Perspectiva 28 peças participantes do projeto, em uma coletânea de três volumes.

45 desempregada e vivendo um momento crítico em relação à minha vida profissional. Havia terminado o curso de mestrado há alguns meses, tinha passado num concurso para a Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte e estava aguardando ser chamada. Porém, ainda tinha vontade de tentar mais seriamente a carreira de atriz, e nesse sentido me atraía – ao mesmo tempo em que me apavorava – a possibilidade de fixar residência no Rio de Janeiro. Vivi, então, esse conflito, tão comum entre artistas, entre o desejo por uma vida mais criativa e incerta representado naquele momento pela possibilidade de permanecer no Rio de Janeiro, e o desejo por estabilidade e segurança, representado pelo meu retorno a Minas Gerais, onde tinha, naquele momento, possibilidades concretas de trabalho fixo. Esse fato acabou influenciando a criação de Vendaval, três anos depois.

Assim, o primeiro esboço da peça, enviado para a curadoria do Janela de

Dramaturgia, começava com Marília, funcionária pública e atriz frustrada, chegando à casa

de Laura com uma mala de dinheiro roubado, e com o objetivo de montar um espetáculo de teatro e recuperar o tempo perdido de sua vida. A partir desse mote, os temas da morte, da velhice e a relação com o tempo e com o dinheiro foram surgindo. Abaixo, o trecho inicial do primeiro esboço, datado de dezembro de 2013:

CENA 1

Marília larga o emprego e resolve se mudar para o Rio de Janeiro pra seguir carreira de atriz. Ela rouba 100 mil dos cofres públicos, do lugar onde trabalha, e carrega essa quantia numa mochila. Ela acha que tem direito a esse dinheiro porque ele está sendo mal gasto numa instituição pública, além disso ela irá fazer uma peça e o dinheiro é para promover a cultura.

Monólogo Marília ensaiando a explicação à Laura a respeito do dinheiro. O dinheiro contraria os princípios da Laura e Marília tem dificuldade em revelar.

Marília está na porta da casa de Laura. Um momento antes de tocar a campainha. MARÍLIA - Laura, eu não vim até aqui só pra passar uns dias, não. Eu tô vindo porque… Eu vim passar uns dias e quero te fazer uma proposta. Vamos montar uma peça?! Com que dinheiro? Isso não é problema, eu tenho 100 mil. (pausa, se refaz) Lembra que eu te falei que lá no departamento que eu trabalho sobra verba pública todo fim de ano e que os caras passam a régua dando nota falsa, superfaturando… (respira. silêncio) Eu consegui um dinheiro pra gente fazer uma peça! Pelo amor de Deus, você tem que guardar esse segredo senão eu tô fudida. Eu desviei uma verba lá da prefeitura que ia pra um festival que acabou não rolando. Por incompetência! Cansei dessa burocracia que emperra tudo, agora é “faça você mesmo”. Ai, que dor de barriga! Lembra que você me chamou pra morar aqui com você? Tudo bem que isso tem dez, quinze anos... Mas não tem importância. Ainda dá tempo. A gente é amiga. Eu tenho certeza que você vai querer pegar esse dinheiro e montar uma peça comigo! (PEREIRA; GUIMA, 2013, s.p.)

Como em Encontro com Pedro Juan, também aqui há traços de performatividade, pois a influência de meu conflito vivido em 2010 é visível na fala de Marília, transcrita acima: o ser funcionária/gestora pública versus o ser artista, em meio à relação com o dinheiro, com a

46 amizade e com o tempo. Como parte do processo criativo, eu e Glauce assumimos, em um primeiro momento, cada uma a criação de uma personagem: eu escrevia as falas de Marília e Glauce escrevia as falas de Laura. Glauce chegou mesmo, nesse período, a mudar seu nome para Laura na rede social facebook, como parte de seu laboratório criativo, explorando aspectos performativos da escrita como a intervenção no cotidiano e a dissolução das fronteiras entre arte e vida, que estiveram presentes também na contaminação entre a história da nossa amizade e a história que estávamos criando juntas. Tal relação não se deu de forma direta, intencional e planejada, mas aconteceu frequentemente por reminiscências da história real que incidiam na forma de imagem, palavra ou situação na história ficcional. Como exemplo, trago a foto abaixo, tirada em 2011, na praia de Copacabana, durante uma visita minha à Glauce. Tal foto não fez parte do processo criativo, mas estando o texto pronto, fomos procurar imagens em que estivéssemos juntas para divulgar a leitura dramática que seria feita no evento Janela de Dramaturgia e, ao encontrar essa foto, verificamos com surpresa que ela sintetizava para nós, como imagem, o texto que havíamos criado: duas mulheres, frente à imensidão, ao perigo e ao mistério, unidas uma à outra, porém olhando e se direcionando para horizontes distintos, enquanto avança de forma inexorável a natureza com sua força transformadora.

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FIGURA 7 -Da direita para a esquerda: Júnia e Glauce em Copacabana, RJ, 2011.

Foto: Marcos Alexandre.

Apesar de Vendaval guardar tantas relações, conscientes ou não, com nossas memórias e experiências pessoais, com o tempo e as sucessivas revisões do texto, este foi estruturando- se sobre bases mais ficcionais. Dessa maneira, aspectos pessoais foram ficando invisíveis, não caracterizando, como em trabalhos anteriores, uma dramaturgia performativa como produto final, na qual a identificação direta da autoria fosse determinante para a fruição da obra. Tal opção refletiu nosso desejo de sermos reconhecidas como dramaturgas e nossa estratégia, mais ou menos consciente, de distanciarmo-nos do estereótipo de atrizes que escrevem a partir de si e para si mesmas. Nesse sentido, optamos por convidar as atrizes Eliane Maris e Wilma Henriques17 para realizar a leitura pública do texto, ao invés de fazermos nós mesmas, rompendo com essa identificação óbvia entre duas atrizes/dramaturgas e duas personagens, implícita na proposta inicial do texto.

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Eliane Maris e Wilma Henriques são atrizes da “velha guarda” do teatro mineiro. Wilma Henriques (1931), que completou em 2019 sessenta anos de carreira, é considerada a grande dama do teatro de Belo Horizonte.

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FIGURA 8 -Janela de Dramaturgia, BH, 2014.

Da direita para a esquerda: Wilma Henriques e Eliane Maris em leitura do texto Vendaval. Teatro Espanca! Foto de Ethel Braga.

Na versão final, estruturada em cinco cenas, temos a mesma situação repetida nas cenas 01 a 04: Marília chegando em casa de Laura, no seu aniversário. Na cena 01, as personagens têm oitenta anos; na cena 02, setenta; sessenta anos na cena 03 e cinquenta anos na cena 04. Na cena 05, as personagens têm 21 anos e é a última vez em que se vêem após estudarem juntas num curso de graduação. Abaixo um trecho do texto finalizado, em 2015, no qual ecoam vestígios do esboço inicial transcrito acima, já quase irreconhecível pelas várias modificações decorrentes do processo de escrita:

CENA 4

As personagens têm 50 anos.

(MARÍLIA toca a campainha. Carrega uma mala. Nas mãos, uma canga

embrulhada pra presente. LAURA abre, abruptamente.)

MARÍLIA: Feliz Aniversário!!! (Laura vai fechar a porta.)

MARÍLIA: Não lembra de mim? Marília! LAURA: Marília?

MARÍLIA: Tem muito tempo mesmo… Quase trinta anos! Estou bem? LAURA: Desculpa, eu...

MARÍLIA: Peguei seu endereço com a Clauky. LAURA: Quem você está procurando?

MARÍLIA: Vim de longe... pra te dar os parabéns! Meio século!! LAURA: Como você sabe?

MARÍLIA: Eu nunca me esqueci de você. LAURA: Estou precisando ficar sozinha.

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MARÍLIA: Vim de ônibus, não tenho mais coluna pra isso! Demorei, mas cheguei. Posso entrar?

LAURA: (tentando lembrar) Você falou Clauky? MARÍLIA: Você está bem?

LAURA: Minha família...

MARÍLIA: Pois é… Meus sentimentos.

(Laura vai fechar de novo a porta. Marília segura.) MARÍLIA: Vim te fazer companhia!

LAURA: Você veio pra ficar aqui?

MARÍLIA: Quanto tempo... (Passa a mão no rosto de Laura, que se afasta) Eu tenho uma foto nossa aqui! (Tira da bolsa e mostra) No campus. Olha como eu era magrinha! Você com esse chapéu…

LAURA: Que saudade de mim! Onde você arranjou essa foto?

MARÍLIA: Você continua a mesma coisa! (a abraça) Nunca achei que fosse mudar, a essência é a mesma. Apesar de que eu não sei qual é a minha.

Com o desenvolvimento do trabalho, a busca recorrente de Marília por Laura deixou de estar atrelada ao desejo específico pela “vida de atriz”, pois se ampliaram os significados possíveis desse desejo por realização pessoal, significados que se modificaram também a partir dos recursos da dilatação e da inversão do tempo. Na leitura de Sara Rojo, a relação entre Laura e Marília é capaz de provocar novos olhares acerca do itinerário de vida da mulher e dos significados arraigados culturalmente ao corpo feminino em suas diferentes temporalidades:

[...] o desenvolvimento do texto permite questionar o lugar que esse corpo envelhecido ocupa em nossa sociedade e o faz a partir da inversão cronológica (parte com as duas mulheres idosas e termina com elas jovens), pautando-se pelos encontros entre as protagonistas que acontecem em uma data específica, os aniversários de Laura. Estas mulheres-personagens (Marília e Laura) funcionam como operadores do conflito dialético entre a lei e a subversão, não só porque questionam o permitido a uma mulher madura, mas também porque tensionam essa volta ao passado (a juventude) como o protótipo de felicidade. A tese é que a liberdade e as novas expectativas não passam pelos espaços e tempos já vivenciados e muitas vezes reprimidos. [...] A personagem Marília transgride a norma, contando mentiras, evadindo-se no campo da imaginação. A personagem Laura espera, às vezes se entusiasma com os mundos oferecidos por Marília, mas geralmente não se permite, negando a si mesma essa opção. As atrizes-dramaturgas atravessam a fronteira espacial para contar essa história, outras atrizes a assumem como própria e a materializam em suas vozes. O enredo nos leva a questionar o lugar das mulheres na sociedade e a suposta queda para a velhice. (ROJO, 2018, p. 81)

Na análise de Rojo (2018), destaca-se a visibilidade do feminino em cena. Mais uma vez, temos aqui uma dramaturgia escrita por mulheres e na qual as mulheres são protagonistas também como personagens. Ora, é curioso que numa dramaturgia escrita por homens e com protagonistas masculinos, o gênero não seja, em geral, assunto de discussão e análise. Porém, em meu trabalho, percebo que não é possível fugir ao marcador de gênero, que está sempre em evidência, seja pela influência de processos criativos que exploram justamente a

50 subjetividade das atrizes/dramaturgas, seja pela forma exaustiva com que uma mulher não consegue deixar de ser, em primeiro plano para a sociedade, o seu gênero.

Pode parecer contraditória a forma com que abordo, ao mesmo tempo, a particularidade de minha experiência de gênero na arte teatral e a minha insatisfação com a visibilidade dessa mesma particularidade. Ocorre que se torna impossível, ao perceber a desigualdade de gênero no campo da produção dramatúrgica, não se mobilizar, simultaneamente, tanto pela afirmação da produção artística feminina, quanto pela crítica persistente ao próprio conceito de feminino, ou seja, à própria noção de gênero. De acordo com Butler (2015b):

A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada. Esse tipo de crítica põe em questão a estrutura fundante em que o feminismo, como política da identidade, vem se articulando. O paradoxo interno desse fundacionismo é que ele presume, fixa e restringe os próprios “sujeitos” que espera representar e libertar. (BUTLER, 2015b, p.256)

A meu ver, não avançaremos na construção de uma dramaturgia feminista sem uma crítica persistente às categorias de gênero, pois tal feminismo que defendo não é apenas uma afirmação da possibilidade de participação social feminina, mas traz também um questionamento dos discursos estruturantes a partir dos quais somos determinadas socialmente a partir de nosso gênero.

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