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A teoria chinesa, estabelecida antes mesmo do Estado moderno, traz “novo” paradigma face às teorias de Relações Internacionais ocidentais. Antes de estudo científico, o Tianxia (Tudo sob o Paraíso) é um conceito ideal de mundo, que engloba ética, bem como os âmbitos geográfico, político e psicológico. Estudada há mais de 3000 anos no Império chinês, o Tianxia reflete a vontade geral do povo ou, ainda, “os corações dos povos”, pois relata um Império diferente, aceitável e estruturado sob consentimento e aclamação popular (DREYER, 2015).

Segundo a teoria chinesa, até o tempo presente, não se fala do “mundo” com sua real definição. Geralmente Estados falam do mundo, porém se referindo ao Ocidente, ou ao Oriente, ou às instituições políticas. O conceito completo de mundo, no entanto, deve englobar unidade política mundial fortalecida em apoio popular (DREYER, 2015). O Tianxia cumpre esse papel, pois avalia qualquer perspectiva e problema do mundo de forma ampla, envolvendo todos os seres humanos do planeta. Ademais, a teoria Oriental não tem os Estados como atores principais das Relações Internacionais, mas a sociedade como um todo. Em sistema de Estados, o máximo que se pode chegar é a alianças militares ou integração regional, impossibilitando avaliar o conceito de globalidade (ZHAO, 2006).

Não é possível avaliar todo o conceito de “Tudo sob o Paraíso” desconexo de outro conceito chinês: o Filho do Paraíso. A base do sistema imperial é dada por esse Filho, que tem o dever de liderar todos de forma global. Diferente de um Imperador na sua definição mais comum, não se trata neste caso de expansionismo, conquistar o mundo todo com o império, mas sim ter o mundo todo sob o mesmo conceito de Império sob o Paraíso (BIJUN, 2014).

O filho do Paraíso não é escolhido por etnia, nacionalidade ou hereditariedade, sua legitimidade vem por meio da aprovação dos povos (MURATA, 2015). Desse modo, A legitimidade desse imperador, segundo a teoria oriental, surgirá em duas ocasiões: (a) caso o Imperador salve os povos de uma situação terrível e receber reconhecimento dos que foram salvos ou (b) quando houver necessidade de manter a ordem, de acordo com as vontades da

maioria. O líder será visto pelo que faz, não pelo que é. Isso significa que a sua afirmação se dará de forma constante, porém subjetiva.

O voto, forma que o Ocidente, em sua maioria, decide seus líderes, não necessariamente garante a estabilidade e vontade do povo. Segundo a visão chinesa ele, na verdade, traz dúvida, uma vez que elege alguém que prometeu fazer algo em vez de alguém que de fato o fez. A constante avaliação do povo para com o líder refletirá sua definitiva aprovação, pois a democracia, instável e imperfeita, garantirá somente a vontade da mídia e dos que procuram vantagens individuais e privadas, e apenas o melhor para o povo quando convergir com a vontade dos que usam o dinheiro para distorcer as eleições (BIJUN, 2014). O conceito de “coração das pessoas” ou “vontade dos povos” é considerado, pela interpretação Oriental, forma mais sólida de garantir o que a maioria deseja. O poder de persuasão trazido com democracias distorcidas somente afastará o povo daqueles que os governam (ZHAO, 2006).

Por serem, de certa forma, parecidos os conceitos ocidentais e orientais de vontade do povo e democracia, essas definições já foram algumas vezes consideradas congruentes, uma vez que, por meio da democracia, um cidadão poderia decidir qual era sua vontade, no ato de votar. Ainda assim, a decisão do que é melhor para todos, que já foi delegada à elite chinesa séculos atrás, permanece em debate. O conceito de vontade dos povos não está diretamente condicionado à democracia, pois, na visão oriental, não se tem certeza que o voto de cada cidadão expresse realmente a vontade da maioria.

Apesar da Tianxia ser uma teoria chinesa, ela afirma que qualquer candidato no mundo pode ter esse império global, desde que este apresente o Caminho, Tao, isto é, a forma de aumentar a felicidade de todos os povos de forma global (ZHAO, 2006; DREYER, 2015). O império mongol e manchu, por exemplo, dominaram a China por mais de quatro séculos e, apesar de serem outra nação, seguiram premissas presentes no conceito do Império sob o Paraíso e, por isso, foram considerados governos legítimos chineses. Ademais, o Império não poderá ser comandado por um ditador nem ser uma superpotência. O conceito de Tianxia legitima somente aquele que não reprime a liberdade dos povos. Deve, portanto, buscar incessantemente o interesse popular.

Outro conceito importante é que, enquanto o Ocidente tem como origem de seu pensamento, conduta e desejos o indivíduo, a teoria chinesa implica a família como elemento fulcral na estrutura política. É pela família que as normas-base de uma civilização são solidificadas e, ademais, seus membros são imutáveis, embora todas as outras coisas em sua volta não o sejam. Considerado ponto original de harmonia, a família deve também pertencer

às bases do Império sob o Paraíso, funcionando em transições de conduta com os Estados e com o Império. Para atingir a total ordem política, por exemplo, a origem deve vir do Império, chegar às nações e, por fim, para as famílias (BIJUN, 2014).

Para a harmonia ética, por sua vez, deve-se fazer o caminho inverso: parte-se da família, depois para as nações e, por fim, para todo o Império. É devido a isso que se consideram teorias políticas e teorias éticas uma coisa só, diferente das teorias ocidentais de Relações Internacionais, por exemplo, que separam a ética da política. Na teoria chinesa, parte-se do princípio de família por ser a primeira fase humana em que se lida com relações. Isso não significa, portanto, que há indiferença ou irrelevância com o indivíduo. Afirma-se, sim, que a coexistência, iniciando-se pela família, sobrepõe-se à existência, que é focada somente no individual. Essa harmonia de transições de conduta é essencial e, quando não ocorre, transforma-se em ambiguidade ética ou política. Os Estados, por exemplo, têm específicas normas de conduta para política doméstica e outras, diferentes, para a política externa. Os valores ambíguos demonstram falta de harmonia, e demonstram, segundo a Tianxia, intransitividade e inadequação ao Império sob o Paraíso (ZHAO, 2006; BIJUN, 2014).

Apesar de nunca ter existido de forma completa o Império sob o Paraíso, o território que hoje é conhecido como a China já se aproximou, na prática, do conceito. Antes da unificação chinesa de 228 A.C., o território era dividido por diferentes culturas, religiões, economias, porém com o mesmo conceito de harmonia política e ética, sob uma instituição que representava todas as divisões; porém, só atuava quando uma divisão interrompia a harmonia, ao declarar guerra. Todo o território era centralizado nos valores da Tianxia e não se considerava os outros povos como ameaça, visto que a preocupação era voltada somente ao âmbito doméstico.

Após a unificação chinesa, no entanto, determinou-se que outros países poderiam aderir ao Império sob o Paraíso; não por dominação, mas simplesmente pelo pagamento voluntário de impostos. A cultura dessas novas adesões não seria modificada, mas, de certa forma, implementada nos valores da ética do Império com tempo e as transições harmônicas. A imposição cultural, portanto, não faz parte da teoria Tianxia e deve ser inclusiva, pois ao incluir todas as culturas, não haverá nação considerada bárbara ou pagã (MURATA, 2015).

Ao fazer comparação das Nações Unidas com o Império sob o Paraíso, duas diferenças são destacadas: a ausência de um Filho do Império nas Nações Unidas, no qual todos delegam confiança e poder para que se faça o justo para todos e a forma que as nações devem conviver. Nas Nações Unidas prega-se quase que invariavelmente o universalismo de

valores estabelecidos, o que atenta uniformizar todo o tipo de conduta entre as nações, entre elas a liberdade política e as instituições democráticas. Na Tianxia, por sua vez, o objetivo é universalizar tudo, de forma que todos estejam incluídos com todas as diferenças (ZHAO, 2006).

Ademais, como organização criada com característica de foro internacional de debate, com o objetivo de expor o posicionamento dos Estados, a ONU não tem a autoridade de sobrepor-se aos seus membros, a não ser em casos excepcionais, envolvendo o Conselho de Segurança. Não está na essência da organização, portanto, lidar com o mundo diretamente, mas com o mundo por meio dos Estados. A ineficiência desse mecanismo se dá principalmente porque membros soberanos preocupam-se mais com os próprios interesses que com os do mundo. No meio do processo, utiliza-se da Organização para atingir objetivos individuais. A estrutura da ONU não permite superar esses obstáculos.

A União Europeia seria, talvez, a instituição que mais chegaria perto do conceito da teoria chinesa, pelo menos na parte Ocidental. O maior problema, no entanto, é que, a União, apesar de ter chegado à uma integração regional suis generis, ainda é composta por Estados soberanos, que tentam atingir seus objetivos individuais, de forma mais facilitada por meio da OI. Unem-se para melhor competir com outras integrações ou Estados, e não para buscar a integração mundial (ZHAO, 2006). Esse último ponto é o maior obstáculo entre o Império sob o Paraíso e a União Europeia, pois ela nunca foi feita para atingir as proposições da teoria Oriental.

4.2.1 Possível ascensão da China sob a perspectiva da Tianxia

As bases da teoria chinesa Tianxia certificam-se que há possibilidade de ascensão pacífica da China no cenário internacional (BIJUN, 2014). A teoria demonstra de forma bastante abrangente o sentido de globalidade, no qual incorpora, em seu fim, todos os povos, o que a atribui modelo de longo prazo, que não se efetiva unilateralmente ou com tomadores de decisão de cada Estado. A construção de um Império sob o Paraíso, no entanto, por definir bases e ideais de inclusão, visa determinar um ponto futuro no qual se encontra a paz.

A China já possui um quinto da população mundial, a segunda maior economia do mundo e três mil anos de história nos quais a teoria Tianxia esteve presente. Dessa forma, se o país continuar baseando-se em sua teoria como preceito ético e político, encontrará legitimidade de outras nações para atuar com certa liderança. Isso já acontece hodiernamente ao definirem-se as relações China-mundo como multilaterais, envolvendo-se com os cinco

continentes, porém sem a interferência nos assuntos domésticos alheios. Essas premissas chinesas na política internacional, futuramente, podem resultar em reconhecimento de modelo ideal, no qual regiões menos desenvolvidas buscariam ceder parte de sua soberania para se anexarem ao Império sob o Paraíso. Se isso acontecesse de forma voluntária e pacífica, o território acoplado teria grande autonomia doméstica, sua cultura e líderes seriam respeitados e, sob premissas de respeito mútuo, comunicar-se-iam com o restante do mundo de forma pacífica, não reconhecendo a adesão de um novo Estado como projeção de poder.

A lógica inclusiva da Tianxia, na qual, se todas as culturas estão incluídas sob um mesmo império não há povos pagãos, faz que haja forte apelo sobre as minorias no mundo. Minorias religiosas, povos sob regimes ditatoriais e nações mais enfraquecidas militarmente em sua região, uma vez que optarem pela cessão de sua soberania para fazer parte do Império Sob o Paraíso, não mais deveriam se preocupar com opressores (DREYER, 2015). Incluídos nos mesmos ideais, as nações que sofressem ataque estrangeiro estariam sob a proteção de todo o Império, garantindo-as prosperidade. A China, nesse tópico, estaria relativamente preparada para defender a estabilidade da Tianxia quando necessária; todavia, não seria seu principal objetivo no cenário internacional (a eliminação de povos bárbaros), uma vez que buscaria que a nação inimiga também estivesse sob o Paraíso, anulando não só o agressor, como qualquer possibilidade futura de ameaça na região, ao longo prazo.

Quanto ao Filho sob o Paraíso, designado para agir em favor de todos os povos, deve-se lembrar que ele não tem como requisitos nacionalidade ou etnia específicas. Dessa forma, A ascensão chinesa não precisa, necessariamente, ter um chinês em sua liderança. Ao imaginar-se que a Índia adotasse a Tianxia como forma de governo, qualquer indiano, no mesmo momento, estaria apto à responsabilidade de Imperador, desde que cumprisse os dois requisitos citados anteriormente, sendo eles o de ter salvado os povos de grande sofrimento ou de necessidade de restabelecer a ordem. A China, desse modo, seria somente o início do Império, geográfica e ideologicamente; porém, uma vez que várias nações estivessem englobadas no mesmo conceito, qualquer uma delas poderia regê-lo, visto que o importante não está na origem do Imperador, mas o que ele fez e faz: em suma, o melhor para todos.