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No primeiro capítulo foi demonstrada a importância do Estado no processo de urbanização, industrialização e no desenvolvimento de políticas sociais, inclusive no campo da habitação. Já foi dito que sem a presença do Estado, em sua configuração autoritária, não existiria a Restinga – ao menos nos moldes em que foi implementada.

O mais comum é que as questões relacionadas com habitação e moradia popular sejam centralizadas na esfera federal (o que ocorria na época da ditadura e continua ocorrendo após a democratização do país) e que a operação destas políticas ficasse a cargo das companhias estaduais de habitação, as COHAB’s. Os municípios, na maior parte dos casos eram entes passivos ou serviam como apoio logístico e realização de diagnósticos.

Em muitas prefeituras, a temática de habitação era (e é) atendida por um órgão que a combina com desenvolvimento social, obras e/ou infraestrutura urbana, acarretando uma perda de percepção e capacidade resolutiva técnica relacionada com as especificidades da habitação como política social. A principal característica das políticas de habitação envolve a construção de casas populares, um bem social básico para s populações da baixa renda. Contudo, ao contrário de outros benefícios como ruas, equipamentos urbanos e serviços sociais, a moradia é um bem unifamiliar. O órgão público que trata diretamente com habitação popular necessita desenvolver metodologias, procedimentos administrativos e formas de articulação política distintas. Esta dimensão unifamiliar da moradia ajuda a explicar, ao menos em parte, a frequência com a qual se instalam práticas de clientelismo neste âmbito de construção de políticas sociais. É comum, nestes casos, uma fidelização eleitoral e social de populações em torno do dirigente político que “concedeu” o direito à moradia para estas populações. Na Restinga e outras áreas da cidade esta dinâmica foi largamente exitosa, sobrevivendo a décadas de mudanças políticas e ideológicas mais amplas no município.

Em Porto Alegre há a particularidade da existência de uma autarquia municipal, vinculada à Prefeitura, que é o organismo especializado diretamente responsável pela execução da política habitacional no município. Trata-se do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB.

A cidade tem uma história de instituições públicas na esfera de governo municipal cuja finalidade era desenvolver políticas de habitação, sendo que na maior parte do tempo estes órgãos trabalharam com o objetivo de erradicar as moradias populares através da maciça implementação de loteamentos e casas populares.

D’Ávila (2000) recupera esta história, verificando que a primeira iniciativa que ocorreu foi a criação da Comissão da Casa Popular, em 1946, quando recém iniciava a constatação das vilas de malocas como um grave problema social da cidade. Apesar de seu lema “Não desapropriar uma casa sem dar outra a seus habitantes” (D’ÁVILA, 2000, p. 20) a Comissão da Casa Popular, composta por representantes de diversas secretarias da Prefeitura e do empresariado local, não logrou efetivar um programa de construção habitacional. Esta Comissão teve vida efêmera e foi extinta no mesmo ano de sua criação, tendo o mérito de ser pioneira em reproduzir no Estado a problemática da subhabitação, já bastante presente em outras cidades do país (D’ÁVILA, 2000, p. 23).

Em 1949 surge o Serviço de Habitação Popular, primeira medida mais organizada na municipalidade para combater as vilas de malocas. A questão era tão importante que, em 1951, este órgão foi “promovido” à Superintendência de Habitação Popular, o que ao menos em termos formais ampliava suas prerrogativas e leque de atividades. Esta ampliação ficou mais evidente ainda quando, somente um ano mais tarde, em 1952, se cria o Departamento Municipal da Casa Popular - DMCP, já uma autarquia com atribuições mais amplas e um grau de autonomia relativa mais considerável em relação à Prefeitura, ao menos nas tarefas do cotidiano e na sua ampla gama de atribuições.

Na lei que instaura o DMCP (Lei 982/1952), lhe são atribuídas as funções de executar a política de habitação (remoções de malocas, instalação de loteamentos, construção de casas populares), gestão financeira e administrativa das questões relacionadas à política de habitação, realização de campanhas de saneamento e, o que é bastante significativo, execução do trabalho de assistência social e saúde perante à população com a qual trabalha.

Para dar conta da sua expansão de prerrogativas e do campo de atuação, a estrutura organizacional do DMCP se torna mais ampla e complexa, incluindo serviços descentralizados como as operações de vilas residenciais e a gestão de colônias de

readaptação social, cujo sentido é ambíguo e que não chegaram a sair do papel (D’ÁVILA, 2000). O que se torna explícito é o caráter de assistência social conferido a este novo órgão. Conforme seu regulamento:

O Departamento Municipal da Casa Popular procurará através dos Serviços de Inquéritos e Cadastro Social e da Ação Social (...) cooperar com as famílias assistidas na forma dêste Regulamento, para melhor solução de seus problemas de recuperação e reajustamento social, especialmente facultando- lhe meios para a obtenção de trabalho remunerado (Relatórios de 1952, citado por D’ÁVILA, 2000, p. 40).

Mesmo considerando sua atuação no campo da assistência social, o DMCP mantinha seu papel principal. No período entre 1952 e 1964 foram produzidas 2.440 casas populares e 5.190 lotes urbanizados, transformado este órgão da Prefeitura num grande interlocutor de demandas das regiões mais populares e descentralizadas da cidade. Para custear esta política habitacional, a Prefeitura instaurou a Taxa de Financiamento da Casa Popular, um imposto de 3% sobre a construção de qualquer moradia acima de 150m² em Porto Alegre. Ademais, o DMCP estava habilitado a buscar recursos no Fundo Nacional da Casa Popular, o que frequentemente ocorria para o financiamento de novos loteamentos (D’ÁVILA, 2000).

O DCMP (e posteriormente o DEMHAB) praticamente assumiu uma condição de sub-prefeitura dos pobres de Porto Alegre.De acordo com Nádia D’Ávila:

O DMCP iniciou um trabalho de grande extensão na prefeitura. Além de representante das operações financeiras e administrativas ligadas à construção de habitações populares, tinha o encargo de dar assistência sobre os mais variados aspectos às comunidades com menos poder aquisitivo da cidade (D’ÁVILA, 2000, p. 47).

Em 1965, em substituição ao DMCP, foi instituído o Departamento Municipal de Habitação - DEMHAB. Este assumiu todas as atribuições do antigo órgão, com o acréscimo de ser o responsável no município pela execução dos programas habitacionais do recém criado Sistema Financeiro de Habitação – SFH e, logo adiante, o órgão público em Porto Alegre com atribuição jurídica e capacidade técnica de firmar contratos de financiamento habitacional de perfil popular junto ao BNH – Banco Nacional de Habitação. O período anterior já oferecia possibilidades de financiamentos públicos para moradias populares, porém a criação de um arranjo tecnoburocrático voltado diretamente para o financiamento habitacional e demandas correlatas impulsionou as possibilidades de obtenção de recursos para a implementação de loteamentos e construção de moradias nos municípios. Acrescente-se que no mesmo período inicial da Ditadura logrou-se organizar um

significativo acúmulo de recursos através do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da caderneta de poupança. Estas, em parte, foram utilizadas na execução de projetos que contemplaram demandas habitacionais, inclusive de caráter popular.48

A criação do DEMHAB e a definição de suas prerrogativas, neste novo contexto do Estado e da sociedade brasileira, foram decisivas para a implementação da Restinga. D’Ávila (2000), em seu trabalho de pesquisa sobre o DEMHAB assinala que o próprio slogan desta autarquia, “remover para promover”, já dava o tom do que poderia ser chamado de espírito da época. O DEMHAB, com efeito, ao longo de décadas se especializou na remoção de populações faveladas da cidade, contribuindo decisivamente para a alteração do mapa urbano, a mudança de densidade de diversos bairros e diferentes relações sócio-espaciais que foram se configurando na cidade, notadamente em suas periferias. Não foi pouca coisa: Nola Gamalho assinala que, em balanço publicado no jornal Zero Hora, em 24 de janeiro de 1975, se tem a notícia de que “No período de 1969 a 1974, foram removidas pela Prefeitura de Porto

Alegre 11.027 malocas, totalizando 48.194 pessoas... Foi uma política intensiva, removendo aproximadamente duas mil malocas e oito mil pessoas por ano” (In.

GAMALHO, 2009, p. 49). Não é de se estranhar que a política habitacional para as classes populares na época fosse praticamente sinônimo de remoção de moradias e deslocamento populacional para as periferias.

A remoção de favelas, em que pese sua inerente relação de violência simbólica ou real, nem sempre ocorria sem negociações ou a necessidade dos agentes públicos do DEMHAB estabelecerem um processo de interlocução com os moradores atingidos. Conforme avança a democratização do país, vão sendo construídos processos com mais diálogo do que os simples avisos de despejos coletivos e remoções forçadas, bastante típicos na primeira década de existência do órgão e dos quais viu-se exemplos nas remoções para a Restinga. É o que se pode perceber na necessidade de diálogo político, conforme depoimento de Sarjob Aranha Neto, Diretor do DEMHAB entre 1982 e 1983.

A remoção da Vila São Carlos era uma exigência da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos que queria implantar um terminal de ônibus ali. Eu não queria fazer a remoção sem negociação com a comunidade, mas havia uma

48 Naida D’Ávila (2000) assinala que o DEMHAB irá receber verbas do BNH somente a partir de 1970,

sendo suas atividades custeadas pelo antiga Taxa de Financiamento da Casa Popular. Contudo, neste período inicial, já vai estruturando projetos e construindo a articulação institucional com os órgãos da administração federal responsáveis pela política habitacional.

data limite onde inclusive aventava-se a utilização da Brigada Militar por que os moradores não queriam sair dali. Apesar do pouco prazo, conseguimos contornar a situação com diálogo e a comunidade mudou-se para um loteamento na Lomba do Pinheiro (Citado in. D’ÁVILA, 2000, p. 62).

Segue vigente a possibilidade de que no despejo, que continua sendo forçado e amarrado a prazos de instituições estatais, seja utilizada a força policial. Contudo, ao menos há um processo de diálogo, ainda que em situação de total desigualdade. Sob outra perspectiva pode ser analisado o conteúdo da entrevista de Flávio José Helman da Silva, Diretor do DEMHAB em 1999:

No reassentamento da Vila Mirim para a quadra 167 da Chácara da Fumaça, tivemos uma discussão bem interessante com a comunidade em relação ao caráter religioso da vila. A Vila Mirim era vista como um importante centro de religiões afro-brasileira e a comunidade exigia que esse fato fosse levado em conta. Assim, foi criado no novo loteamento um espaço onde pudessem continuar exercendo seus cultos (Citado in. D’ÁVILA, 2000, p. 63-64).

A incorpação de elementos culturais, particularmente relacionados à temática das religiosidades afro-brasileiras, num processo de remoção demonstra o quanto as políticas e, sobretudo, os métodos de relação com a comunidade, nem sempre foram os mesmos.

Especificamente na Restinga, cuja criação somente poderia ser atribuída ao DEMHAB, para os protagonistas do próprio Departamento, o processo de remoções é entendido como uma política de promoção humana e social. Em depoimento de um morador do bairro, também funcionário do DEMHAB e diretamente envolvido na atividade de remoções, transparece o orgulho pelo trabalho.

Vim com a minha turma, com meus 22 homem e dois caminhão... Vi um pedaço da Restinga se criar, crescer... Eu fiz todo aquele assentamento ali da Santa Rita: as casas pré moldadas, a medição dos terreno, ajudei a topografia... Dispois passaram o mapa e eu sentei; eu vi o Cabriúva, trabalhei muito no Elo Perdido. Quando abriram o Elo Perdido lá no fundo da Restinga Velha foi comigo também... O Timbaúva ali, a parte da Rocinha ali, atrás da quadra da Escola de Samba que sobe lá pra trás do morro, aí foi isso... Vi um pedaço, ajudei um pouco no crescimento da Restinga; sempre funcionário do DEMHAB né.

(...)

Eu trabalhei 30 anos na remoção, que hoje é a UOP né. Com três meses de serviço no DEMHAB eu ganhei o cargo de chefia, aí eu não deixei mais a peteca cair. Mostrei serviço, os homem gostaram, aí me deram a chefia da Restinga aqui. Aí eu vim pra cá... Trabalhei muito, muita gente a gente trouxe pra cá, bah! Mas muita gente mesmo. A Quarta Unidade então, quem fazia as remoção, trazia o pessoal pra cá, era a UOP, era a remoção né. Nós que conduzia eles pra cá, os caminhão do DEMHAB. Trabalhava sábado, domingo, não tinha... Teve até pessoas que se tiveram um pouco de nome na nossa cidade né, o Nelson Silva, aquele cara que fez o hino do Inter, ele ganhou uma casa aqui na Quarta Unidade...

E pra Restinga Velha também, cheguei a trazer muita gente. Pro Barro Vermelho, pra Santa Rita, aí pro Timbaúva, atrás do Cabriúva, atrás da Escola de Samba, naquele loteamento ali... Bah, muita coisa... Hoje, olhando pra trás eu... eu vi um serviço muito bom.... (E4, p. 01-03).

Desaparece a perspectiva crítica do abandono e da estigmatização – anteriormente vista, e se estabelece uma narrativa de atendimento de demandas. A vida desta população é tão cheia de desfortúnios que o método de se promover algo que fosse considerado melhoria pouco importava. E os resultados, como transparece em outro trecho do mesmo entrevistado, eram considerados compensadores.

A maioria, quase que 100% todo mundo na hora da mudança, quando chegava aí e pegava suas casa sorria né, sorria. Que muitos moravam em cada casa, bah, só Deus sabe e.. Uma coisa né que, marcou mesmo, que era diferente o troço né. Os pessoal morando mal rapaz, daí dava uma casinha. Aí na entrega do PT mesmo, na administração do PT, esse Cabriúva aí; veio gente de tudo que era canto rapaz, pessoas que moravam, por exemplo, na Restinga Velha, pessoas que ficaram com quatro, cinco filho, as gurias se perdiam e já tinha filho, daí ficavam tudo morando amontoado aquele monte de gente, pô... Quando sairam aquelas casinha ali, aquilo foi um alívio praquelas pessoas. Bah! Aquilo era uns pedaço de povo, foi bom sentir que as pessoas estavam satisfeita (E4, p. 03)

Apesar da importância dos processos de remoção e a construção de casas vinculadas a esta política, o DEMHAB também desenvolveu outras formas de relacionamento com a população de baixa renda da cidade. Um aspecto importante no trabalho de atendimento a estas populações foram os momentos de socorro organizados quando as mesmas eram vítimas de enchentes. Em Porto Alegre, principalmente em algumas regiões próximas ao Lago Guaíba ou do Rio Gravataí, antes do término da construção das barreiras de diques e casas de bombas hidráulicas eram comuns as enchentes. E o DEMHAB tinha um papel relevante no atendimento destas populações. Como afirma João Mano José, um de seus antigos diretores e posteriormente vereador,

Na década de sessenta, o DEMHAB sempre teve uma tarefa muito árdua, que era o socorro às pessoas flageladas especialmente as moradoras da Zona Norte (...). O DEMHAB, então, era responsável pela alimentação destes flagelados e pelo fornecimento de alimentos (...). Comprávamos, também os medicamentos para as pessoas que ficavam doentes nos alojamentos (Citado in. D’ÁVILA, 2000, p. 60).

D’Ávila colhe testemunho semelhante de antiga funcionária do Departamento que tem a seguinte recordação da enchente de 1965:

Por quarenta dias nós não fizemos serviço administrativo, só o essencial por que os nossos prédios viraram alojamento para os desabrigados. Os nossos funcionários tinham muito trabalho. Tinham, por exemplo, que ir de canoa ou barco socorrer os moradores das ilhas e levá -los para igrejas ou nossos prédios ou galpões (Citado in. D’ÁVILA, 2000, p. 53).

Ao longo das décadas o DEMHAB passou por muitas mudanças e gestões políticas diferentes. Algumas de suas atribuições, em especial as de assistência social, foram esvaziadas e transferidas para outros órgãos. E outras pautas, tais como regularização fundiária, educação ambiental e cooperativismo habitacional passaram gradualmente a fazer parte das suas políticas. Mesmo em sua essência não deixando de ser um órgão relacionado à construção de moradias populares, foi incorporando outros instrumentos jurídicos e sociais mais diretamente relacionados com as pautas de reforma urbana que se desenvolvem a partir da década de 1990.

Sem dúvida, o DEMHAB se relaciona diretamente, por todo seu largo período de existência, com a faixa da população mais vulnerável da cidade. Como instituição estratégica nas questões relacionadas à moradia popular desenvolveu tecnologia social, ferramentas e metodologias de intervenção nas vilas populares e outros locais de periferia que nenhum outro organismo conhecia e tinha condições de desenvolver. Estas são questões decisivas, pois como órgão municipal, o DEMHAB logra manter uma proximidade e conexões com esta população que os organismos federais e estaduais não tem condições de estabelecer. A existência da Restinga, com toda sua complexidade e contradições, é o exemplo mais significativo disso.