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3.7 Antecedentes da Restinga: territórios negros e outros empobrecidos no caminho

3.7.3 Vila dos Marítimos e Santa Luzia

Estes territórios frequentemente são considerados de forma separada, sendo apresentados como duas vilas populares adjacentes, que estavam situadas no bairro Partenon, na região da Vila São José. Em algumas representações, a Vila dos Marítimos se encontrava mais próxima da Azenha e, na sequência do eixo da Avenida Bento Gonçalves, já em direção ao restante do Bairro Partenon e o que atualmente é o Bairro Santo Antônio (GAMALHO, 2009). Em outras percepções estas duas localidades estavam situadas numa sequência que, em diagonal, subia da Avenida Bento Gonçalves até a zona dos cemitérios situados no eixo da Avenida Professor Oscar Pereira. Esta percepção é reforçada por entrevista com antiga moradora do local na qual seu filho, na época criança, recordava com muita exatidão a geografia destas vilas.

É, nós morava na rua L Beco do Amor,... E cada bequinho tinha um nome, né. Tinha o nome de Beco do Amor, Beco do Resbalo, Beco das Sete Facadas. Era assim: tudo por beco; e nós morava no Beco do Amor. Era assim, um dos becos mais famosos da vila. Na rua L , na entrada da Santa Luzia,... Nós morávamos nos eucaliptos, rua L todo mundo vai se lembrar dessa história, da Santa Luzia, porque eram duas vila grudada: era Santa Luzia e a Vila dos Marítimo. Era enorme!! Pegava a Oscar Pereira lá em cima, lá no cemitério Israelita e ia até o Partenon, lá em baixo.Tudo aquilo ali era uma vila só, até a Bento. Até ali onde era o INSS hoje. O que era ali antes o Campo do Farolito, um dos campos mais antigos; um dos times muito famoso (...) Farolito. E tinha o Campo do Porto adiante, que era de estivador ... Nós morava na Santa Luzia, lá em cima e em baixo era a Vila dos Marítimo. Só que era as duas vila grudada, e nós morava no beco... (E7, p. 04)

Nesta entrevista, é interessante a menção à estiva. O próprio nome Vila dos Marítimos é uma referência ao fato de que parte significativa da população que ali vivia vinha de outra remoção, localizada nas antigas docas do cais de frutas e outros víveres, ao lado do que anteriormente era o antigo mercado público da cidade. Ali havia um núcleo de moradias de palafitas e seus moradores, em sua maioria, trabalhavam como estivadores nos navios e barcaças que diariamente abasteciam a cidade. Portanto, a remoção para a Restinga de certa forma teve um caráter ainda mais perverso para uma parte dos moradores da Vila dos Marítimos, pois reafirmava a sua condição de população descartável e reacendia de forma mais viva a memória da expulsão anterior.

Ilustração 08: Vila Santa Luzia, 1956.

Fonte: Fotografia de Leo Guerreiro de Pedro Flores. Acervo Museu Joaquim Felizardo, Fototeca Sioma Breitman.

A entrevista desta família, despejada da Vila Santa Luzia, mas com opção de viver de favor nos fundos de um terreno em Viamão – algo que lhes pareceu muito mais favorável do que a mudança para a Restinga -, também traz a importância dos cemitérios na constituição de territorialidades que se estruturaram naquela localidade. Diversas crianças utilizavam a área dos cemitérios, muito melhor estruturada do que a área da Vila, como local de diversão e, também, fonte de renda. Sempre se podia pedir algum troco na saída de velórios e, ainda mais certeiro, “reciclar” flores que ficavam jogadas em cima de tumbas e podiam ser revendidas. Os velórios também forneciam algum alimento de forma direta, pois era comum que as sobras fossem parar na casa de alguma família da Santa Luzia. O mesmo se pode afirmar em relação aos despachos, que proporcionavam alimentos aos deuses e também a alguns mais corajosos ou famintos, que não se impressionavam com a interdição de se apropriar daquelas oferendas. Algumas famílias plantavam tubérculos nas partes vazias destes cemitérios, obtendo assim algum alimento. Mais importante ainda eram as

possibilidades de se retirar água dos cemitérios, já que tanto a Santa Luzia como a Marítimos não tinham abastecimento regular de água naquela época. Portanto, ironicamente, se poderia atualizar a famosa frase do pai do positivismo: aqui, os mortos ajudavam a governar os vivos.

Dona Teodora, Ilhota, Marítimos/Santa Luzia não foram as únicas localidades cujos habitantes foram forçados a se mudar para a Restinga. Gamalho (2009) assinala a existência de outros 18 pequenos núcleos habitacionais - seis situados na região central e doze na região intermediária -, cujas populações também foram transferidas para a Restinga já em sua fase inicial.41

Mesmo não tendo sido as únicas vilas com populações degredadas, a Dona Teodora, Ilhota e Marítimos/Santa Luzia, pela dimensão e o número de pessoas removidas, têm um inegável peso na formação inicial da Restinga.

É necessário um bom esforço de imaginação sociológica para vislumbrar o quadro que se forma entre as 923 famílias oriundas de 18 diferentes núcleos habitacionais da cidade, juntamente com as 1004 famílias da Ilhota, outras 1007 da Dona Teodora e mais 833 provenientes da Marítimos/Santa Luzia que, num curto período entre 1967 e 1971 foram transferidas para a Restinga. A organização do terrritório e a composição de novas territorialidades foi um enorme desafio, envolto numa complexidade que até aquele momento não tinha precedentes na cidade e poucas referências no Brasil. O próximo mapa assinala os três maiores assentamentos transferidos para a Restinga.

41 Foram transferidas famílias da Vila Secular (47), Antigo Prado (13), Ilha do Pavão (79), Assunção

(24), Rua Cabral (37), Beco do Bitiá (11), Colégio Parobé (07), Vila Ipiranga (176), Vila Languiru (30), Av. Ipiranga (119), Rua Barão de Bagé (18), Passo do Lami (12), Cristal (11), Piratini (07), Beco do Salso (46), Vila Dique I (20), Vila Dique II (264), Vila Dique III (02), totalizando outras 923 famílias (GAMALHO, 2009, p. 50, baseado em dados de MORAES, 2008).

Mapa 02: Restinga, principais deslocamentos populacionais, 1967-1971.

Fonte: elaborado por Luis Stephanou e Helena Vogt (2019), a partir de Moraes (2008).

Os degredados para a Restinga são aqueles que não deveriam existir. Para o poder público da época e o capital, por sua incômoda condição de ferir a estética, a higiene e os bons costumes da cidade. Para os que almejam uma cidade mais democrática e inclusiva, pela condição social abjeta em que viviam. O fato de vencer, como repetidas vezes, a perspectiva do poder público e do capital, diz muito do tipo de cidade que foi se construindo em Porto Alegre (e no país).