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Em 31 de março de 1964 ocorre no Brasil um golpe militar que inaugura uma longa ditadura cívico-militar. 21

Inicia-se um longo período no qual são canceladas ou fortemente restritas as liberdades básicas e os direitos políticos (liberdade de imprensa, de organização politica, de livre manifestação do pensamento etc). O regime político que se instala promove perseguições e obstaculiza o cumprimento de acordos ou leis que garantam os direitos humanos fundamentais. Neste aspecto, são muito importantes os atos institucionais (AI 1, 2, 3, 4 e 5). Bóris Fausto (2011) recupera o conteúdo específico de cada decreto, demonstrando que tiveram como principal objetivo reforçar a centralização do poder nas mãos do executivo e seu controle por parte dos governantes, principalmente os militares. Gaspari (2002b), por sua vez, enfatiza a importância do AI-5 para a virada autoritária da ditadura.

No plano econômico há uma série de medidas que vão adequando a economia do país às necessidades oriundas do capital. Logra-se rapidamente implementar políticas de arrocho aos salários dos trabalhadores, que são sustentadas pelo forte controle militar e policial, capaz de promover a repressão aos poucos movimentos de reivindicação que logram vir à público no período. Os órgãos de Justiça também estão alinhados com a ditadura, facilitando a aplicação de leis que vão regulando o achatamento de rendimentos dos trabalhadores. Há, também, políticas de restrição orçamentária e incentivo à acúmulo de capital através da poupança compulsória ou estimulada de trabalhadores e da classe média, além do aumento do endividamento externo. São medidas que irão possibilitar o chamado “milagre econômico” dos anos seguintes (FAUSTO, 2011).

21 Há farto material sobre este período. DREIFUSS (1981) realiza uma análise bastante aprofundada

das motivações ideológicas e dos atores militares e civis, concentrando sua análise nos centros de formação de opinião e a dinâmica de assalto ao poder político e o período imediatamente posterior. GASPARI (2002a, 2002b), num exaustivo trabalho de resgate documental, explora os detalhes políticos e a trajetória dos principais atores militares no processo, destacando nuances internas do regime. SODRÉ (1984) se concentra nos aspectos relacionados ao poder político durante a ditadura. GARCIA em sua análise explora os aspectos da propaganda e difusão da ideologia do regime. FICO (2001) realiza acurado trabalho no qual detalha a organização da repressão política e dos serviços de espionagem. Aqui somente ficam citados estes, mas evidentemente há muitos trabalhos específicos sobre o período.

Hélio Gaspari (2002a, 2002b), divide a ditadura em três fases. Num primeiro momento, há a instalação do regime que, mesmo tendo sido militarmente vitorioso de forma quase instantânea, levou de 1964 a 1968 para se consolidar politicamente. No plano militar e no cotidiano de governo não houve maiores dificuldades em implementar o regime, mas a constituição de um ordenamento legal e o consenso ideológico em relação ao grau da ação repressiva e de amplitude do regime levaram mais tempo para se consolidar.

Num segundo momento, há o período de repressão mais intensa aos movimentos sociais e à esquerda que optou pela luta armada, o que ocorreu entre 1968 e 1975. Neste momento irrompem os chamados “anos de chumbo”, nos quais se estabeleceu a combinação mais visível entre crescimento econômico e violação de liberdades civis e políticas. É o período de utilização do marco jurídico estabelecido pela ditadura através dos atos institucionais e a caça aos opositores mais extremados, em especial os pequenos grupos de orientação marxista ou as poucas organizações políticas populares que ainda sobreviviam.

Por fim, em sua última fase, há a “lenta e gradual” abertura a partir do próprio regime militar até a democracia, o que se realizou num período de aproximadamente dez anos.22 Esta abertura já está condicionada pelos sinais de crise econômica, que durante os anos 1980 recrudesceria, tranformando-a na chamada “década perdida”. Ao mesmo tempo, o processo de distenção também corresponde à necessidade do regime em fazer concessões e abrandar o marco legal e a repressão policial. O crescimento de forças políticas que se opõem ao regime militar bem como a transformação na orientação de instituições que inicialmente apoiaram o regime militar (particularmente a Igreja Católica) faz com que, ao mesmo tempo, se fortaleça um polo de oposição ao regime e apareçam fissuras internas em sua base política de sustentação.

22 Os primeiros ensaios de abrandamento do regime ocorrem em 1979, com a promulgação de anistia

política para a maioria dos exilados e cassados. A partir de 1981 começa um processo de flexibilização nas possibilidades de organização sindical e partidária. Contudo, somente em 1985 é que se estabelecem eleições gerais, com a participação de todos os espectros ideológicos da cena política brasileira e somente no final de 1988 há eleição para Presidente da República. Ainda neste ano é promulgada a nova Constituição, com forte viés democrático e definições bastante abrangentes em torno dos direitos da população, o que lhe grangeou o apelido de “Constituição Cidadã”. Portanto, é possível afirmar que a transição para a democracia política efetivamente foi lenta e gradual, levando dez anos para se estabelecer de forma plena.

As principais características políticas deste período de ditadura são, em termos gerais: a dissolução dos partidos políticos tradicionais, a limitação de liberdade de associação, a instalação de censura prévia para a difusão de ideias e obras artísticas, o cerceamento da imprensa no seu direito à liberdade de informação e opinião, a intervenção nas universidades e a instauração de eleições indiretas para os cargos públicos mais significativos das esferas de governos. Também se organizaram expurgos nas instituições de Estado mais sensíveis à possibilidade de oposição ao regime, tais como sindicatos, universidades e setores das forças armadas.

No aspecto da institucionalidade política, a ditadura autoriza o funcionamento de somente dois partidos políticos, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), sendo o primeiro o partido de apoio à própria ditadura e o MDB o partido consentido de oposição. Nos quadros da ARENA se alinham as forças que compunham a UDN e setores mais conservadores do antigo PSD. No MDB se agrupam o conjunto do PTB, partes mais progressistas do PSD e algumas referências do PCB, obviamente colocado na clandestinidade.23

Afastados das vias institucionais, a partir de 1968 e até 1975, diversos pequenos grupos políticos oriundos de setores dos trabalhistas, comunistas ou da esquerda católica radicalizada se atiram à luta armada e clandestinidade. Numa mistura de romantismo, desespero e ingenuidade estes tardios quixotes foram incapazes de compreender as transformações que rapidamente ocorriam no país e a eficácia da ditadura enquanto projeto de poder.24

O que as oposições – consentidas ou não – na época não lograram entender foi que a Ditadura, ao menos nos aspectos econômicos, tinha um programa de governo desenvolvimentista e as condições de implementá-lo, sobretudo no início da

23 UDN, PSD e PTB surgiram com o fim da ditadura varguista do Estado Novo, em 1945.

Espantosamente, os dois últimos foram arquitetados pelo próprio Vargas: o Partido Trabalhista Brasileiro com perfil urbano operário/sindical e o Partido Social Democrático mais centrista, que abrigou proprietários rurais, parte do empresariado e setores médios. A União Democrática Nacional, com perfil conservador e economicamente liberal, se opôs fortemente ao varguismo e sua herança até o golpe de 1964.

24 Daniel Aarão Reis Filho (1990) demonstra a falta de base social, a irrelevância numérica e os

equívocos de estratégia dos grupos da esquerda armada, herdeiros do foquismo e prisioneiros de uma avaliação de que se poderia no Brasil repetir os resultados da Revolução Cubana. Luis Fernando Mangea da Silva (2017), efetua uma comparação entre as narrativas da esquerda armada do Brasil e da Argentina, destacando que a produção de memória que ocorre entre os argentinos sublinha mais o aparato repressivo do Estado e a violência produzida pela radicalização política. No caso brasileiro, “os trabalhos de memória de ex-militantes tocam na temática da violência, mas ressaltam o sentimento de frustração da guerrilha armada” (SILVA, 2017, p. 103).

segunda fase do governo, na qual combinou fechamento político com esta capacidade de crescimento econômico.

As condições internacionais eram favoráveis. Antes da crise do petróleo de 1973 havia capital abundante e com taxas de juros baratas (FAUSTO, 2011). Com isso, foi possível a expansão do crédito público e privado. Ademais, grandes empresas multinacionais, notadamente do setor automobilístico, continuaram o processso de instalação e crescimento no Brasil, que já havia iniciado no período JK. Com isso, as condições de comércio internacional deste período também foram benéficas.

Seguia vigente uma noção de desenvolvimento econômico através da ação do Estado, que proporcionava contratos e créditos para a ação de construção de infraestrutura por parte de grandes empresas privadas. Considerando a estrutura de poder centralizada, a execução de programas eprojetos não necessitava de debates públicos ou longas tramitações legislativas para serem colocados na agenda. E tampouco se poderia esperar embargos ou outras iniciativas protelatórias por parte do judiciário. Tampouco as populações afetadas teriam canais para usualmente expressar seus protestos ou encaminhar demandas e propostas compensatórias. Portanto, livre de amarras institucionais ou políticas, a ditadura logrou dinamizar parcialmente o país através de grandes obras, como a Usina Hidroelétrica de Itaipú, a Rodovia Belém-Brasília e a Ponte Rio-Niterói. Também houve espaço para fracassos como a Rodovia Transamazônica ou iniciativas questionáveis, como as usinas nucleares de Angra dos Reis.

O importante aqui é entender que a ditadura teve um perfil desenvolvimentista ancorado no crescimento econômico e seu núcleo de governo, composto pelos militares e a tecnoburocracia estatal que já vinha se desenvolvendo no período anterior, apresentava um perfil nacionalista e anti-liberal, no qual o Estado, através do planejamento centralizado, desempenhava o papel de agente político, econômico e social.

No auge do período chamado de “milagre econômico” (entre 1969 e 1973), não por acaso o período no qual se logra a criação e instalação da Vila Restinga, esta política teve seus efeitos econômicos mais significativos. Fausto (2011) menciona que a média de crescimento do PIB na época foi de 11,2% e que entre 1970 e 1973 o ingresso de capital estrangeiro no país triplicou. Éramos os chineses da época.

Contudo, o robusto crescimento econômico não foi seguido de uma ampla melhora nos indicadores sociais em saúde, educação ou assistência. A lógica de crescimento estava articulada a um modelo concentrador de capital, no qual os benefícios do crescimento do PIB basicamente foram apropriados pelo capital. Na prática, houve concentração de renda e consequente aumento das desigualdades, pois

... tomando-se como 100 o índice do salário mínimo de janeiro de 1959, ele caíra para 39 em janeiro de 1973. Este dado é bastante expressivo se levarmos em conta que, em 1972, 52,5% da população economicamentre ativa recebia menos de um salário mínimo e 22,8% entre um e dois salários (FAUSTO, 2011, p. 269).

Uma ditadura, como se vê, concentra suficiente poder para dinamizar a economia e também para achatar a renda dos trabalhadores da base da pirâmide. Em relação à política habitacional não foi diferente. Desde o início da Ditadura houve investimentos em habitação. Já em 21 de agosto de 1964, através da Lei 4380/64, foi criado o Sistema Financeiro de Habitação e o principal instrumento de financiamento da política habitacional, o BNH (Banco Nacional de Habitação).

Evidentemente, o quadro de urbanização e o crescimento das cidades e regiões metropolitanas demandava a criação de medidas que viessem a atenuar o problema ou que supostamente fossem nessa direção. Na prática, a ênfase no desenvolvimentismo centralizado pelo Estado e executado pela iniciativa privada, obteve resultados bem diversos. Ao proibir o financiamento de imóveis usados ou a reforma de moradias precárias já existentes, a política habitacional da época acabou por enfatizar a construção de novas habitações, o que fortaleceu as empresas do setor da construção civil e as estratégias de especulação imobiliária, pois a maximização de lucros originou projetos de urbanização em locais distantes e sem infraestrutura, mas com preço da terra mais barato do que nos núcleos consolidados.

Ademais, a ação estatal instituiu um duplo mecanismo de financiamento, baseado na poupança forçada (FGTS) e na poupança voluntária da caderneta ou de letras imobiliárias (BOTEGA, 2007). Portanto, trabalhadores e, em menor volume, a classe média, financiaram a política habitacional. E boa parte desta renda foi transferida para o capital. Todos estes elementos compunham o cenário no qual se apresentaram as condições mais diretamente vinculadas ao nascimento da Restinga.

A centralização política e capacidade econômica de agir em torno do Governo Federal fez com que os recursos, financiamentos, diretrizes, políticas e programas funcionassem em grande medida na esfera federal e de forma residual e secundária nos estados, através das COHAB’s.25 Os municípios, local administrativo e político onde eclodiam os graves problemas sociais derivados da urbanização, eram os que menos tinham capacidade de protagonismo. Segundo Serra,

O caráter perverso do sistema aparece quando se considera que os municípios pouco fizeram para pôr em marcha e manter o ritmo do processo de urbanização acelerada. Esta, ..., está ligada ao processo de crescimento econômico, acumulação e concentração de capitais pelo qual o país passava. Contudo, a urbanização acelerada implicava uma sobrecarga enorme para os municípios, obrigados a manter em contínua expansão o seu espaço urbano, seus serviços e obras. Isso acontecia,..., no exato momento em que se concentrava a receita e decisões na área federal (SERRA, 1991, p. 49)

Porto Alegre, neste aspecto, apresenta uma condição diferenciada, como será exposto no próximo capítulo. O poder público municipal logra articular um órgão específico destinado à construção de moradias populares, o DEMHAB. Este, por sua vez, herda e aprimora certa tecnologia social a partir da experiência anterior, do DMCP (Departamento Municipal da Casa Popular), que já vinha exercendo o papel de agente político e técnico nesta questão desde meados da década de 1940.

25 As COHAB’s são empresas de capital público criadas para gerenciar a aplicação de recursos

financeiros do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), cujo principal agente era o BNH (Banco Nacional de Habitação). Para isso, as COHAB’s foram organizadas nos estados e em alguns municípios de maior porte. O objetivo de diminuir significativamente o déficit habitacional através da construção de moradias jamais esteve próximo de ser alcançado. Atualmente, a Associação Brasileira de COHAB’s e agentes públicos de habitação (ABC) é a entidade que articula as instituições que promovem a habitação de interesse social nos estados e municípios em um modelo mais abrangente e plural do que as antigas COHAB’s. Cf. http://abc.habitacao.org.br/

Em resumo, temos um processo de amplas dimensões que combina os seguintes elementos:

- O acelerado processo de urbanização no país (e também no Rio Grande do Sul, em especial na capital e na RMPA), que em quarenta anos foi capaz de redesenhar o perfil da população a partir do complexo cruzamento de migrações campo–cidade e também cidade-cidade e uma estratégia que concentrou esta nova população urbana em grandes cidades, das quais as mais significativas se conurbaram e vieram a se constituir em regiões metropolitanas;

- A rápida industrialização conduzida a partir do Estado por agentes políticos tão diferentes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e a ditadura cívico-militar mudou a estrutura produtiva do país;

- A ditadura cívico-militar de 1964, que centralizou de forma autoritária as ações políticas de Estado, elaborou e executou um planejamento econômico cuja lógica de desenvolvimento foi a articulação entre industrialização e grandes obras públicas de infraestrutura.

A junção destas três dimensões fez com que se viabilizassem as condições para o planejamento e criação da Vila Restinga. No próximo capítulo serão analisados os aspectos mais significativos de sua formação.

3. A RESTINGA – TERRITÓRIO DE COMPLEXIDADE

Uma vez feita esta construção mais ampla dos processos políticos, sociais e econômicos que explicam o surgimento de uma localidade como a Restinga, o capítulo que segue busca analisar os principais aspectos do processo de surgimento e urbanização deste bairro.

A ideia central está relacionada com a percepção que na Restinga é possível encontrar múltiplas territorialidades que vão compondo a complexidade deste lugar – o que, em realidade, é a situação de quaisquer experiências sociais, não somente deste estudo de caso ou similares.

A análise de elementos a partir de um olhar multidisciplinar – histórico, sociológico e geográfico -, permitirá uma melhor compreensão sobre esta complexidade, que vai se construindo nas conexões. Inicie-se pelo início.