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As cidades brasileiras, mesmo com o incremento das possibilidades de acesso a políticas públicas após a Constituição de 1988 e o surgimento de diversas experiências de governos municipais democráticos e organizações sociais promotoras de cidadania em espaços urbanos, seguem sendo locais de forte segregação socio-espacial.

Evidentemente, não é algo restrito ao cenário brasileiro. Mike Davis (2006) traça um painel desolador de favelização em escala mundial, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas. A partir de dados do Programa Habitat da Organização das Nações Unidas, Davis demonstra a crescente escala de favelização mundial. Trata- se de 25 milhões de pessoas por ano que vão viver em casas precárias construídas com restos de madeiras, latas e outros materiais, sem saneamento e demais condições de qualidade de vida relacionada à moradia. Os exemplos que este autor menciona são quase indescritíveis, pois se manifestam numa escala difícil de apreender, quase inimaginável a partir dos territórios que habitamos e das territorialidades que costumamos desenvolver.

Também há muitos estudos sobre a importância, permanência da segregação e de suas consequências no contexto latino-americano (HERRERA ROBLES, 2016; MORA PALACIOS e HERRERA ROBLES, 2019). O trabalho organizado por Calderon Cockburn e Aguiar Antía (2019), por sua vez, mostra a diversidade de formas de segregação socioespacial na América Latina. Estes autores recordam que os diferentes padrões de segregação socioespacial, algo já extensamente exposto na literatura de ciências sociais, se caracterizam por dois aspectos marcantes que costumam estar associados. A segregação socioespacial ocorre pela capacidade econômica desigual dos estratos sociais se relacionarem com o território e, também, por políticas públicas que mantém ou reforçam as possibilidades de segregação. Assim, segregação se produz socialmente através de variáveis econômicas e políticas. E estas variáveis políticas, ao contrário do que seus enunciados costumam oferecer, em muitas ocasiões produzem incremento e não redução na segregação socioespacial.

Contudo, é importane mencionar que os processos de segregação socioespacial não se apresentam somente a partir de seus aspectos econômicos e

políticos. Há segregações socioculturais, que remetem aos processos de exclusão vivenciadas numa perspectiva de gênero e/ou étnica. Os espaços urbanos não são vividos e acessados de forma igual entre homens e mulheres ou entre brancos e negros, por exemplo. Ou entre homens negros e mulheres negras etc. Na Restinga – mais adiante isto será destacado – o processo de segregação está muito vinculado a questões de etnicidade. Ao mesmo tempo, há uma enorme riqueza cultural na construção das relações sociais e simbólicas daquele território. E muito disto está relacionado à contrução de umamemória que tem cor definida.

O mesmo pode ser dito em relação às questões de gênero, pouco trabalhadas no âmbito desta pesquisa. Ainda assim, transparece com muita visibilidade nas entrevistas e outras percepções do trabalho de campo a condição diferenciada de relação das mulheres com o lugar e de como há uma construção de territorialidades distinta quando se percebe as dimensões femininas deste processo.

Assim, a partir desta multiplicidade de questões, a diversidade das segregações socioespaciais urbanas no contexto brasileiro abarca, entre outros, aspectos relacionados ao mercado imobiliário, a políticas habitacionais, aos novos desenhos da relação centro-periferia e aos problemas de mobilidade urbana, de pobrezas desterritorializadas e da dinâmica diferenciada de segregação nas cidades médias. É um amplo conjunto de possibilidades, em muitas ocasiões mescladas entre si, ressaltando a complexidade destes fenômenos.

Os estudos acima mencionados demonstram como a permanência da segregação socioespacial opera sob formas múltiplas e complexas, ampliando as possibilidades de significação em torno deste conceito. É possível ver que já não se trata mais somente daquela segregação clássica de empurrar os espoliados para a perifeira como sinônimo de distância do centro da cidade e dos seus recursos, o que, como se verá adiante, foi fundamental na forma como este processo se estrutrou na Restinga. Há múltiplas formas de segregação socioespacial, inclusive aquelas que

foram desenhadas pela atual revolução tecnológica e informacional.28 Estas formas

de segregação convivem num mesmo tempo e espaço, complexificando o tema. Ao

28 Mascherini e Ledermayer (2016) elaboram para a União Européia um interessante estudo sobre a

denominada geração NEET’s (No employement, education or trainning), conhecida no Brasil pelo termo nem-nem. Este é um tema ainda pouco estudado em nosso contexto, mas já visto como um enorme desafio pelo seu potencial de desagregação, inclusive do ponto de vista territorial, principalmente na Europa e no Japão.

invés de se mencionar segregação e periferia, o mais adequado é falar de segregações e periferias, no plural.

Um dos processos mais conhecidos de segregação é o que remete ao conjunto de diferentes e complexas formas de uso da terra urbana. É o que os estudiosos do mundo urbano (geógrafos, urbanistas, cientistas sociais) denominam de organização espacial da cidade.

De acordo com Corrêa (2004), a cidade capitalista contemporânea vai se organizando a partir de diferentes formas de utilização da terra. Tanto o Estado como o mercado vão tratando de dar forma às cidades a partir da divisão organizacional de seus territórios em distintas funcionalidades ou apropriações. Com certa dose de cinismo, é o que em propagandas e justificativas de projetos imobiliários ou investimento de recursos públicos em certas ocasiões é veiculado publicitariamente como “vocação do local”.

O Estado acentua a divisão de funcionalidades do solo urbano através de instrumentos de planejamento e gestão, entre os quais o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, que tem um papel central na definição de zoneamentos, intensidade de usos e índices de construção.

No Brasil, as primeiras noções de planejamento urbano como um conjunto de instrumentos articulados para organizarem o uso do solo urbano vêm do Plano Agache, no início da década de 1930. A ainda inicial e incipiente expansão urbana já era suficientemente visível para apontar a necessidade de dotar as cidades de instrumentos legais e urbanísticos de racionalidade em seu funcionamento e distribuição do solo. Assim, o urbanista francês Alfredo Agache foi o responsável por elaborar no Rio de Janeiro o que foi considerado o primeiro Plano Diretor no Brasil (VILLAÇA, 2004). Primeiro de muitos, pois após a Lei do Estatuto da Cidade (2001), todos as cidades com população acima de vinte mil habitantes se viram obrigadas por lei a implementarem Plano Diretor nas suas localidades.

Porto Alegre tem uma história muito consistente de elaboração de legislação de ordenamento territorial, que remonta à década de 1950 do século passado. O I PDDU, aprovado em 1979, transformou a cidade numa referência de âmbito nacional na questão (SOUZA, 2018).

Nas cidades localizadas em municípios de grande tamanho populacional (mas também em municípios de tamanho médio) o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano serve como diretriz e alavanca para planos diretores específicos, que acabam regulando o uso de águas, o trânsito na cidade, o saneamento, os sistemas de comunicação, as questões ambientais e outras questões específicas. Em Porto Alegre, aqui novamente assinalada como referência, o Plano Diretor ampliou, inclusive em seu nome, seu alcance, passando a se chamar Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA).

O mercado, por sua vez, além de buscar influenciar as diretrizes da legislação através de ações políticas, também induz a forma como os territórios urbanos vão sendo constituídos. É o que se vê com a expansão de empreendimentos imobiliários que dão origem a shopping centers, redes de serviços integradas em proximidades territoriais, condomínios fechados e bairros planejados integralmente na lógica do capital.

Há uma fragmentação do espaço urbano, mas estes espaços são articulados entre si e com muitos outros territórios que estão fora do âmbito municipal. As redes informacionais e as estruturas de logística estão entre os setores de atividades econômicas mais significativas na influência sobre o tecido urbano. Assim, explicar a cidade contemporânea e seus processos de segregação exige um esforço de olhar para suas estruturas, mas também para seus fluxos de mobilidade (CORRÊA, 2004). Estes fluxos inclusive já fazem parte da agenda de muitos grupos e organizações sociais de reforma urbana, que vão entendendo que a democratização das cidades exige, além da capacidade do Estado em responder às demandas básicas em educação, saúde e segurança, também resposta a demandas relacionadas a cultura, inclusão digital, transporte, meio ambiente e formas de acesso ao controle do território e demais questões contemporâneas.

Esta percepção da segregação urbana associada ao uso do solo e também aos fluxos, num contexto de desenvolvimento capitalista, faz perceber a importância do território como local da política e, sobretudo, que suas formas de organização não estão dissociadas dos contextos mais amplos. Assim, “... é o processo de reprodução

do capital que vai indicar os modos de ocupação do espaço pela sociedade, baseados nos mecanismos de apropriação privada, em que o uso do solo é produto da condição geral do processo de produção da humanidade” (CARLOS, 1992, p. 49).

Afinal, por mais que atualmente se trabalhe com processos de dissolução e lógicas de flexibilidade, algo que também atinge as relações de territorialidade, pois os pontos estáveis de referência vão gradativamente desaparecendo (Beck, 2002), os territórios ainda estão aí para serem conquistados, espoliados e seus habitantes segregados. Como sublinha David Harvey,

A acumulação de capital sempre foi uma ocorrência profundamente geográfica. Sem as possibilidades inerentes da expansão geográfica, da reorganização espacial e do desenvolvimento geográfico desigual, o capitalismo há muito tempo teria deixado de funcionar como sistema econômico político (HARVEY, p. 195).

Assim, compreender o território a partir de suas relações de poder que se constroem em múltiplas escalas, é pensá-lo a partir de suas contradições. Haesbaert (2015) demonstra como, simbolicamente, território pode significar abrigo, lar e segurança, mas etimologicamente está associado à palavra terror, terrorismo. Ibáñez (1994) comenta que território viria do “jus territiri” que seria o direito, no Código Justiniano, de se espoliar a terra dos traidores do Estado ou outros membros da elite, que caídos em desgraça por disputas intestinais de poder, têm suprimida a vida e as possibilidades futuras de manter poder através da propriedade da terra.

As cidades são o local no qual estes conflitos, com suas múltiplas possibilidades de segregação, mais fazem aparecer o terror. Mas são, também, palco das múltiplas esperanças. A segregação das populações urbanas empobrecidas, como se verá adiante, expõe com precisão estes processos.