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No ponto anterior foram descritas algumas características da Restinga, em especial no que diz respeito a possíveis diferenciações entre sua população. O segmento que segue se debruça sobre as diferentes partes do bairro – seu mapa físico -, a evolução da ocupação no tempo e as formas de ocupação do território. Estes são processos fundamentais para a compreensão da diversidade e complexidade da Restinga.

Ilustração 21. Restinga, Mapa da divisão interna.

Este mapa aborda as diferentes nomeações que cada parte do território da Restinga foi recebendo ao longo das décadas.53 Esta toponímia têm várias procedências e foi se fixando historicamente. Os nomes possuem, pois, diferentes sentidos e intencionalidades

Pesavento (2001), ao dissertar sobre a história dos becos da Porto Alegre na segunda metade do século XIX, mostra como sua nomenclatura passa de caracterizar um lugar popular cujo nome define alguma característica (Beco das Sete Facadas, Beco do Mijo, Beco do Poço, Beco dos Amores Proibidos, etc) para algum nome que redefinisse o imaginário em relação àqueles lugares. Na caso, de algum vulto militar envolvido em alguma das muitas guerras que tiveram participação das gentes lociais. Em trabalho semelhante, Ramón Jr. (2001) mostra como o processo de mudança de nomes nas ruas de Lima, Perú, obedeceu a um sentido de racionalidade e ocultamento do que se havia estabelecido no período colonial e não deveria fazer parte do imaginário urbano republicano. Assim, nomes como Calle de las Siete Jeringas, Faltriquera del Diablo ou Ya Parió54 foram substituídos por referências ao passado mítico Inca, batalhas e regiões do país.

Na Restinga ocorre processo semelhante. As unidades vicinais tem este tecnocrático nome associado ao processo de urbanização da Restinga Nova. Nota-se pelo perfil das pessoas selecionadas pelo DEMHAB e pelo desenho destas partes da urbanização que o poder público desenvolveu um projeto centrado na racionalidade dos espaços, que deveria abrigar uma população de trabalhadores educados na disciplina de trabalho. O nome unidades vicinais para estes lugares expressa esta intencionalidade e revela um afã de distingui-los da população da Restinga Velha e de outras partes do bairro. Tal lógica serve para as primeiras quatro unidades vicinais; já na Quinta, com uma urbanização mais caótica e cercada de áreas favelizadas num local afastado da parte central do bairro, o nome unidade vicinal acaba por parecer ainda mais artificial ou pretensioso.

53 A classificação exposta neste mapa faz parte do excelente trabalho de campo de Nola Gamalho, feito

em 2009. Os dez anos que separam sua pesquisa desta são suficientes para constatar que algumas partes da Restinga deixaram de existir como tal e outras surgiram, mas não foi possível, aqui, efetuar uma atualização destas informações estabelecendo com precisão os seus novos limites. Assim, optou- se por utilizar este mapa. Ademais, seus 10 anos, de forma alguma, o tornaram obsoleto.

Em diversas partes menos planejadas do bairro, resultado de ocupações ou loteamentos irregulares, há nomes espontâneos que remetem a características físicas do lugar - Chácara do Banco, Figueira, Beco dos Bitas e Barro Vermelho - ou evocam outra toponímia de caráter popular como Rocinha e Elo Perdido.

Com a proliferação de condomínios, nos últimos anos, nomes exóticos como Winter Park, Ilhas de Santorini, Belize ou Condado de San Telmo foram se incorporando à paisagem. Projeções típicas e edifícios com aparência de bairro de classe média alta se colaram, estranhamente, a um território construído, até então, a partir de uma estética popular. A nomenclatura das partes da Restinga resultou, portanto, de uma sutil disputa simbólica entre Estado, sociedade e mercado.

Mapa 05. Formas de ocupação do território.

Fonte: elaborado por Luis Stephanou e Helena Vogt (2019), a partir de Moraes (2008), Gamalho (2009) e PMPA/DEMHAB/Superintendência de Produção Habitacional – Coordenação de Titulação e Registro (2019).

As formas de ocupação de determinado território são uma oportunidade privilegiada para se compreender diferenciações internas, sobretudo de caráter econômico, mas também sociais e até mesmo de possibilidade de acesso político. Não é a mesma coisa morar numa área regularizada sem ocupações ou em outra sem regularização e favelizada. Nas cidades brasileiras, hierarquizadas e imersas desde sempre num alto grau de desigualdade social, as diferentes formas de ocupação do solo numa mesma localidade dão visibilidade a esta desigualdade. O famoso ditado popular “Diz com quem tu andas e te direi quem tu és” pode ser facilmente adaptado para “Diz aonde moras que te direi como tu és”. Gamalho (2009) comenta que na periferia a distância social é mais significativa do que a distância física, pois as representações sociais ali presentes constroem fronteiras invisíveis que, no entanto, todos conhecem e respeitam a partir dos códigos locais.

Assim é na Restinga, na qual as áreas de habitação popular e habitação popular MCMV (muito distintas entre si) ocupam uma posição de superioridade no imaginário sobre as formas de ocupação do território. Já os reassentamento (basicamente a Restinga Velha e a Quinta Unidade Vicinal, que tem uma parte com habitação popular) ocupam uma posição intermediária. As áreas de menor valor simbólico são as diversas ocupações e duas pequenas áreas nas quais remoções foram acompanhadas de ocupações. São partes do bairro a serem evitadas e, subjetivamente, potenciais focos de violência que rompem com o imaginário de uma Restinga progressista ou uma comunidade batalhadora. Há, ainda, junto à Estrada João Antonio da Silveira, uma estreita faixa de quitinetes e peças de aluguel, contínua e densa o suficiente para caracterizar mais uma forma distinta de ocupação do território.

Naturalmente, o mapa não permite visualizar a totalidade de situações particulares. As dinâmicas de ocupação do solo são muito variadas e podem mudar, rapidamente, em pequenas porções do território. Uma área regularizada, por exemplo, pode sofrer um processo parcial de ocupação. Uma área de loteamento irregular tem possibilidade de se transformar em habitação popular/MCMV. Uma área irregular pode obter uma valorização a partir da instalação de um equipamento público ou uma desvalorização por ser foco de disputa de gangues relacionadas ao tráfico de drogas... As possibilidades são múltiplas e se apresentam com grande fluidez .

Mapa 06. Restinga, evolução da ocupação do território (1967 em diante).

Fonte: Moraes (2008), Gamalho (2009) e PMPA/DEMHAB/Superintendência de Produção Habitacional – Coordenação de Titulação e Registro (2019) e trabalho de campo do autor. Mapa criado por Luis Stephanou e Helena Vogt (2019).

A Restinga, evidentemente, não foi ocupada e urbanizada em uma única operação, num curto prazo. Quase nenhuma intervenção urbana nesta escala seria realizada em curto espaço de tempo e, como já foi mencionado, seu processo de ocupação continua acontecendo. Nestes 53 anos de existência, pode ser dividida em quatro fases:

1ª fase - de 1967 a 1971: Restinga Velha.

Seguindo a proposição de Araújo (2018), que data a implementação da Restinga Velha entre 1967 e 1971, nesta fase ocorre, basicamente, o início do processo de urbanização. Como já foi descrito, nos primeiros anos a população sofreu total abandono, mas já no final desta fase foram iniciadas as obras de construção da Restinga Nova. Este movimento, por sua vez, gerou trabalho para moradores da Restinga Velha e esta parte do bairro passou a receber, também, algumas melhorias em sua urbanização.

2ª fase - entre 1971 e início dos anos 1980: consolidação da Restinga Nova e da urbanização do bairro.

Ainda havia capital disponibilizado pelo Sistema Financeiro de Habitação (principalmente na primeira metade da década) e o DEMHAB estava no auge da política de remoções. A urbanização das unidades vicinais, a instalação dos primeiros equipamentos comunitários (em especial o CECORES)55 e a chegada maciça de novas famílias impactaram o bairro.

3ª fase - entre início dos anos 1980 até o final do século: aumento da diversidade. Este foi um período de intensas mobilizações sociais que beneficiaram a Restinga com diversos equipamentos, mas também trouxeram uma série de ocupações que em grande parte acabaram se consolidando na paisagem do bairro. Também seguiram ocorrendo remoções e assentamentos, desta vez mais direcionados para a periferia do bairro, como foi o caso da 5ª Unidade Vicinal. Iniciativas que começaram no período anterior, em especial ligadas ao futebol e ao samba, prosperaram neste fase;

55 CECORES – Centro Comunitário da Restinga, em funcionamento desde 1972. Mais adiante se verá

4ª fase - Início século XXI até o presente: mudanças qualitativas.

A Restinga segue em transformação. Equipamentos sociais mais sofisticados e de importância capital chegam ao bairro, em especial o Hospital da Restinga e o Instituto Federal. O mercado imobiliário se torna hegemônico na urbanização das terras e construção de moradias, muda uma parte do perfil dos novos moradores e se intensificam atividades econômicas informais de caráter variado no bairro. O bairro vê surgir ou se intensificar o papel de novos protagonistas sociais, em especial grupos vinculados a manifestações culturais e étnicas.

Mapa 07. Principais áreas de convivências.

As duas principais áreas públicas de convivência na Restinga são o CECORES e a Praça da Esplanada. Há outras áreas de uso comum (praças e centros culturais), mas estas acima mencionadas se destacam por sua localização, histórico e quantidade de grupos e interações que delas fazem uso.

O CECORES foi criado em 1972 e oficialmente denominado de Fundação do Centro de Comunidade da Restinga, mas é conhecido pela comunidade simplesmente por sua sigla, que já ganhou vida própria. Há, neste centro comunitário, inaugurado junto com as primeiras casas da 1ª Unidade Vicinal, uma larga oferta de atividades culturais, de lazer e esportivas para todas as faixas etárias da população do bairro. Nas suas instalações também há oferta de assistência jurídica gratuita e atendimento social, serviços bastante procurados pelos moradores.

Foi no CECORES que se iniciaram as principais articulações políticas dos movimentos sociais do bairro, com destaque para as lutas por transporte e educação, em meados dos anos 1980 e, posteriormete, as assembleias do Orçamento Participativo, que chegaram a reunir em seu ginásio milhares de moradores.

Hoje, o CECORES conta com a participação de três órgãos que o administram e trabalham em conjunto nos programas disponibilizados: a Secretaria Municipal de Esportes (SME), A Secretaria Municipal de Educação (SMED) e a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). Evidentemente, a quantidade e qualidade dos serviços oferecidos também está associada ao maior ou menor investimento da Prefeitura no local. Há cenários nos quais o CECORES é mais ativo e outros em que diminui seus serviços, que também apresentam dinâmicas variadas.

O Centro Comunitário se localiza na “superquadra de serviços públicos”. Um quarteirão aonde há diversas instituições sociais públicas, oferecendo uma gama de serviços ligados à saúde, educação, cultura, lazer e assistência social. A partir desse núcleo se desenvolveu o entorno, com uma série de pequenas e médias atividades comerciais e serviços variados. Estes serviços e comércios também são positivamente impactados pela presença, muito próxima, do terminal de ônibus, que propicia uma área de intenso movimento nesta parte do bairro, durante boa parte do dia e da noite. Destaca-se o grupo de jogadores de basquete que tem ali seu ponto de encontro e também o frequente fluxo de carnavalescos e espectadores dos ensaios da Escola de Samba União da Tinga, localizada na vizinhança do Centro.

Assim, o CECORES é ao mesmo tempo irradiador de dinamismo para outras atividades muito próximas e local de atração de pessoas que de uma forma ou de outra se conectam, nos arredores, em outras experiências de sociabilidade.

O outro local de importante sociabilidade na Restinga é a Esplanada, cuja área foi urbanizada na década de 1990. Trata-se de um espaço público multifuncional de grande importância social no bairro. A Esplanada é uma área de convivência localizada no limite entre as duas partes da Restinga, na Estrada João Antônio da Silveira. Como se pode perceber no mapa 07, a Esplanada não está em nenhum lado da “João Antônio”, mas no meio, em uma parte onde a estrada se bifurca abrindo uma área livre entre as pistas que vão em direção centro-bairro e o contrário. Este é um aspecto simbólico importante, pois é o único espaço público, no bairro, que nitidamente não está associado à Restinga Velha ou à Restinga Nova. É um local intermediário, de certa forma um território de todos, na “fronteira”, cujos limites são nitidamente demarcados pela Estrada João Antonio da Silveira em todas as demais partes do bairro, menos na Esplanada.

Portanto, não é de se estranhar que seja um ponto de encontro. Neste local são realizadas diversas atividades fomentadoras de sociabilidade: feiras, ensaios, apresentações de teatro, de dança, eventos musicais, atividades sociais e comícios políticos. Por ser uma área pública aberta, é intenso o fluxo de pessoas e representa um ponto de encontro da cultura local. Muitos grupos de adolescentes e jovens ligados a hip-hop, funk, rock e outras manifestações culturais “batem ponto” na Esplanada. Há uma série de códigos de conduta, com normas de comportamento e proibições que mudam, dependendo do horário e do tipo de grupos que, ocupam, hegemonicamente, aquele território em dado momento. Esses grupos, sobretudo os formados por jovens, desenvolvem linguajar, formas de vestir e gestuais próprios, praticamente incompreensíveis mesmo para um observador externo atento.

No entorno da Esplanada se localiza a sede da Escola de Samba Estado Maior da Restinga, maior escola de samba do bairro e, também, a Casa de Sopa - instituição de assistência que distribui alimentos e outras doações para uma parte ainda muito pobre da população local. O prédio que no momento é ocupado pela Casa da Sopa já foi sede da biblioteca pública, local de ensaio de ONG cultural para jovens e antigo espaço multimeios. Todos estes, usos não planejados para o prédio, pois a sua

construção estava destinada para ser ponto de transbordo de linhas de ônibus da Via do Trabalhador e outras ramificações de transporte público.

Em torno da Esplanada também há prédios de instituições públicas governamentais, com destaque para o Fórum e, muito próximo, o Corpo de Bombeiros e a Delegacia de Polícia. A relevância deste espaço para a comunidade é expressa no seguinte depoimento de um morador:

Me parece que é um portal ali aquela Esplanada parece uma cidadezinha do interior não sei Se tu reparou, tem a igreja, tem a delegacia, tem a praça e tem o Estado Maior da Restinga que é a escola, então são... O Estado Maior da Restinga, eu diria que seria o máximo poder da comunidade assim, e o hospital né, diríamos os quatro poderes? (E16, p. 09-10)

A Esplanada é comparada à praça central de uma pequena cidade do interior e se organiza um imaginário emancipatório em torno dela, na qual a escola de samba tem um papel de relevância como agente de educação e socialização. Em outra entrevista, a localização na Esplanada tem uma associação direta com a noção de poder de quem têm condições de efetuar o controle da parcela da população que a frequenta.

A comunidade é maior do que qualquer outra coisa. A escola, por exemplo, vou te dar um exemplo: as pessoas não... nunca fizeram bolo dentro da escola. Mas na rua faziam. A escola é uma das entidades dentro da vila, como a delegacia, o Fórum, o Estado Maior... Nós falamos que e a praça dos três poderes, que é tudo aqui... (E10, p.02)

Ou seja, estar estabelecido nos arredores da Esplanada significa ter poder. Há um universo simbólico de força construído nestas narrativas, que inclui uma instituição que formalmente não têm poder – a Escola de Samba e deixa de fora outras que estão diretamente associadas com o poder de Estado, como é o caso do Fórum. Simbolicamente, não é sem importância, ainda, que seja na pracinha infantil da Esplanada que se encontra a estátua do super-herói do bairro, o Supertinga, personagem que receberá a devida atenção no terceiro capítulo.