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Desde a metade do século XX, a complexidade da vida humana e social vem sendo estudada a partir de uma perspectiva multidisciplinar, envolvendo ações de pesquisa e reflexões em vários campos científicos, em especial de disciplinas das ciências humanas, das ciências biológicas e da física. Sem dúvida, um dos importantes pesquisadores desta temática é o pensador francês Edgar Morin. Na sua concepção, é impossível explicar o mundo sem o conceito de complexidade. Em suas palavras,

(...) a um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (...) de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico (MORIN, 2006, p. 11-12).

Assim, a complexidade é mais do que a heterogeneidade (ou diversidade) de vários componentes. Trata-se de ressaltar o sentido de interação no que Morin denomina de mundo fenomênico e que, como aqui se propõe, aplicado ao conceito de território o enriquece.

Pensar o território a partir da complexidade tem implicações políticas, mas também metodológicas. Para Morin,

O método da complexidade pede para pensarmos nos conceitos, sem nunca dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas, para restabelecermos as articulações entre o que foi separado, para tentarmos compreender a multidimensionalidade, para pensarmos na singularidade com a localidade, com a temporalidade, para nunca esquecermos as totalidades O desafio de tecer em conjunto: complexidade e transdisciplinaridade integradoras. É a concentração na direção do saber total, e, ao mesmo tempo, é a consciência antagonista (...). A totalidade é, ao mesmo tempo, verdade e não-verdade, e a complexidade é isso: a junção de conceitos que lutam entre si (MORIN, 2008, p. 192).

O território, como conceito associado à complexidade, está sempre associado aos múltiplos conflitos que o permeiam e se encontra sempre incompleto em suas definições. Rogério Haesbaert desenvolve uma rica e extensa reflexão sobre o conceito de territorialidade. Para este autor o conceito de território tem múltiplas dimensões políticas, econômicas e de configuração de cidadania, mas também organiza um conjunto de ideias mais amplo, de caráter cultural (HAESBAERT, 2004, 2007, 2013 e 2015).

Este autor trabalha a complexidade territorial associada às noções de territorialidade, multiterritorialidade, desterritorialização e reterritorialização. Para

Haesbaert territorialidade são as múltiplas noções de dominação e apropriação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como no campo cultural/simbólico, que ocorrem constantemente no território. Entender o território a partir da perspectiva de multiterritorialidade significa perceber a complexidade de relações de apropriação que vão se constituindo no que Lefebvre (2013) denominou de espaço vivido e Soja caracterizou como espaço físico (1993).

Haesbaert também aponta que há uma dimensão histórica nos processos de territorialização (2013). Em relação ao capitalismo em sua fase anterior, no qual os territórios tinham um componente de maior permanência e estabilidade, na atualidade os processos econômicos, sociais e políticos operam uma aceleração na desterritorialização, sobretudo a partir dos agentes de Estado e de mercado. Contudo, desterritorialização em si nunca é o final de um processo; sempre vão ocorrendo novas territorializações, entendidas como reterritorializações operadas por múltiplos sujeitos que compõem o território. Nas palavras do autor,

Geograficamente falando, não há desterritorialização sem reterritorialização pelo simples fato de que o homem é um "animal territorial" (...). O que existe, de fato, é um movimento complexo de territorialização, que inclui a vivência concomitante de diversos territórios - configurando uma multiterritorialidade, ou mesmo a construção de uma territorialização no e pelo movimento (HAESBAERT, 2007, p. 20).

Como se vê, uma aplicação efetiva do conceito de complexidade que se encontra em Morin. As reterritorializações operam por redes, que dinamicamente vão se formando através das articulações que ocorrem no território vivido (ou físico). Neste aspecto, é interessante a associação que Haesbaert faz entre território e poesia, demonstrando que a obra poiética é uma constante criação artística cuja matéria prima é a sensibilidade do olhar em relação à vida, enquanto o território é um lugar de criação material e simbólica (HAESBAERT, 2015). Afinal, a palavra poiesis, da qual deriva a palavra poesia, significa criação. Então, o território se constitui em lugares poiéticos; em algumas ocasiões, mais raras, autopoiéticos.

Multiterritorialidade, numa concepção de complexidade, dialoga com o conceito de hibridismo. Trata-se de perceber, sobretudo nas territorialidades contemporâneas do mundo urbano, o que vem sendo denominado como culturas híbridas. Canclini (1997) e Antelo (2000) ressaltam as diferenças entre híbrido e heterogêneo. Uma leitura rápida poderia colocar os dois conceitos na mesma perspectiva, mas há uma singularidade: quando falamos de heterogêneo estamos nos reportando a diferentes

culturas convivendo num mesmo território. Quando falamos de hibridismo, é como se fossem diferentes “territórios”, ou melhor, territorialidades, na mesma cultura. Para Raul Antelo o híbrido não se confunde com o heterogêneo. A heterogeneidade cultural opera com a noção de diversidade entre culturas. O hibridismo cultural, entretanto, trabalha com a noção de diferenças dentro da mesma cultura.

Canclini (2006) observa que os processos de modernização tardia operados na América Latina ocorrem por meio das dinâmicas de hibridação cultural. Este autor entende por hibridação “(...) procesos socioculturales en los que estructuras o

prácticas discretas que existían en forma separada, se combinan para generar nuevas estructuras, objetos y prácticas” (CANCLINI, 2006, p. III). O que se quer dizer com

práticas discretas? Canclini dá o exemplo do spanglish, prática habitual de misturar o inglês com o espanhol em várias zonas urbanas dos Estados Unidos, criando um novo idioma que ainda não tem tal status.

A modernidade latinoamericana, segundo Canclini, pode ser melhor explicada pela hibridização do que pelos conceitos mais clássicos de mestiçagem ou sincretismo. Enquanto o primeiro está mais relacionado à explicação de fenômenos de interação cultural que operam no campo étnico, a ideia de sincretismo está mais vinculada aos fenômenos culturais de caráter religioso. Ambos, para Canclini, não explicam importantes facetas das interações culturais oriundas da modernidade.

(...) mestizaje, sincretismo, transculturación, criollización, siguen usándose en buena parte de la bibliografía antropológica y etnohistórica para especificar formas particulares de hibridación más o menos tradicionales. Pero, ¿cómo designar a las fusiones entre culturas barriales y mediáticas, entre estilos de consumo de generaciones diferentes, entre músicas locales y transnacionales, que ocurren en las fronteras y en las grandes ciudades (...)? La palabra hibridación aparece más dúctil para nombrar esas mezclas en las que no sólo se combinan elementos étnicos o religiosos, sino que se entrelazan con productos de las tecnologías avanzadas y con procesos sociales modernos o posmodernos (GARCÍA CANCLINI, 2006, p. XXIX).

Estas misturas que combinam muitos elementos culturais diferenciados também produzem territorialidades que vão desenhando um quadro de complexidade no que se convencionou denominar de periferia. Cadoná, Tirelli e Areosa (2017), em pesquisa sobre a implementação de políticas públicas em um território demarcado de Santa Cruz do Sul vão utilizar, de forma muito apropriada, o conceito de hiperperiferia.

A hiperperiferia é a existência e convívio (conflitivo ou de associação) de várias periferias num determinado território, sobretudo quando a escala deste território permitir certa diferenciação socioespacial. Na hiperperiferia há diferentes formas de

acesso a políticas públicas, pois as estratégias de relação com as mesmas são fluídas e dependem de fatores que muitas vezes são aleatórios, informais ou fora da governabilidade das populações. Do ponto de vista socioespacial a hiperperiferia se caracteriza pela multiplicidade de territórios; há várias periferias numa periferia. Em um centro urbano de escala mais considerável, podem existir, por um lado, núcleos de periferia em regiões centrais e, por outro, centros em regiões periféricas. A Restinga é um bom exemplo, pois faz parte da periferia de Porto Alegre, mas tem o seu próprio centro. Neste bairro, mais que uma periferia, o que se encontra é uma hiperperiferia.

Com o advento dos condomínios fechados e dos bairros “planejados”, núcleos de determinadas populações que não são segregadas por sua condição social e econômica buscam o território tradicionalmente vinculado a periferia como local de refúgio e qualidade no habitar. É mais um exemplo que se encaixa no conceito de hiperperiferia e demonstra como este conceito complexifica as multiterritorialidades.

Ulrich Beck (2002), entre outras questões com as quais analisa a relação entre modernidade, globalização e territorialidades, elabora o conceito de topoligamia. Em tradução simples, significa o casamento com diversos lugares. Beck o utiliza para descrever novas territorialidades advindas da globalização, na qual os territórios fixos vão se esvanecendo. A mobilidade física permite que pessoas não somente transitem entre lugares diferentes, mas se fixem temporariamente em mais de um território numa escala planetária. Beck utiliza exemplos europeus, como o de uma família que vive meio ano na Alemanha e meio ano no Quênia de forma contínua. Mas é possível adaptar o conceito para o contexto latinoamericano, no qual deslocamentos populacionais por questões de trabalho sazonal ou empregos provisórios oriundos de grandes obras de construção civil também implantam uma perspectiva topoligâmica com o território.

Multiterritorialidade, desterritorializações e reterritorializações, hibridizações, hiperperiferia e topoligamia são conceitos que auxiliam na compreensão da complexidade da cena social urbana. Eles instrumentalizam o esforço de apreensão da complexidade do cenário deste estudo de caso.