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Ações e narrações em cena: a protagonista entre o atuar e o narrar

4. A caipira desiludida no fim do século XX: análise da peça A Madrasta

4.2 Aspectos estruturais da dramaturgia

4.2.2 Ações e narrações em cena: a protagonista entre o atuar e o narrar

Para entendermos melhor a representação do caipira aqui é preciso refletir sobre como se dão os modos de narrar nessa dramaturgia – uma caipira narrando (ou tentando conduzir a narrativa), recontando e revivendo estórias da tradição oral. Essa tradição vem como narração dentro de uma representação teatral. Maria, como narradora, tenta ter a liberdade de criação que os narradores podem ter e tenta atualizar os significados da cultura que representa180. Talvez seja isso também que nos faz ter empatia por essa personagem.

No seu enfrentamento com Joana, é preciso dizer que esse conflito central não é mais de uma família caipira inteira (um núcleo que tem certa unidade e estabilidade, como na peça Na carrêra) com seu entorno econômico e social ríspido (com as transformações históricas do país)181. Aqui, a disputa talvez seja mais interna: há conflitos sociais imbricados nas relações intrafamiliares que se criam ao longo da narrativa – principalmente entre a empregada Maria (que se torna esposa de João) e Joana (que é, ao mesmo tempo, filha e amante de João)182.

Como se nota desde essa breve apresentação, o núcleo do conflito refere-se ao patriarca dessa propriedade rural: as duas mulheres disputam questões tanto em relação à realização do trabalho doméstico183 (manutenção da vida naquela casa) quanto sobre a herança do personagem masculino (pai/marido). À primeira vista, alguma leitura ingênua poderia dizer que se disputa o amor de João, mas isso talvez fique apenas para a camada mais infantil dos contos em que Soffredini se baseou para escrever essa peça, já que nela ele deixa claro que os conflitos passam pela representatividade do pai naquela casa, porém não são de disputa do seu afeto, mas sim do domínio da propriedade e das relações de trabalho e de propriedade privada ali.

180 Cf. dissertação de Daniel Batista Lima Borges, Narrativas caipiras: trilhas que se refazem, 2014. 181

Se na outra peça tínhamos um universo social em transformação, aqui parece que essas relações capitalistas estão bem sedimentadas. A peça se passaria em um momento já posterior às questões socioeconômicas que floresceram no contexto de criação e representação de Na carrêra.

182

Desde a abertura da peça, na primeira fala, quando Maria começa a referência às histórias populares de rainhas, já está colocada a oposição entre eles: Maria, “pobrezinha”, versus o pai e a menina, “tão ricos, tão ricos, mas tão ricos que era, só faziam se ri, se ri...” (1995, p. 6).

183

Mais uma vez, como apontei nos capítulos 1 e 2, o trabalho no mundo rural fica por conta mais das mulheres do que dos personagens masculinos.

Creio, portanto, que para a análise da representação do caipira nessa dramaturgia seja relevante focar nas especificidades da personagem Maria, que é a trabalhadora da casa e quem traria mais fortemente as marcas da cultura caipira, como figura feminina levada ao destaque de protagonista. Diferente das questões apontadas em Na carrêra do divino, aqui, a caracterização do mundo caipira e as problematizações em torno disso parecem se dar em outro plano – tanto de condições materiais/econômicas, na descrição das personagens e do enredo, quanto na proposta metalinguística de autorreflexão sobre o narrar. Se na peça de 1979 tínhamos a utilização de alguns recursos de distanciamento, para fazer comentários críticos que aproximavam a peça de uma linguagem mais épica do que dramática, aqui essas estratégias são potencializadas na personagem Maria, que sabe estar narrando uma estória, da qual faz parte – ela dialoga diretamente com o público em diversos momentos, e tenta disputar a condução daquela narrativa.

Dessa forma, além do debate aprofundado que os espinhosos temas mencionados na peça demandam, é preciso olhar nessa dramaturgia para elementos metalinguísticos184 explicitados sobre o narrar: há uma disputa de ouvir uma narrativa versus contar (conduzir os caminhos da narrativa)185; há também, por parte da personagem Maria, a noção de que “não se pode contar pra trás”, ou seja, desfazer/desdizer o que foi narrado (podemos pensar diretamente na estrutura da encenação do teatro, principalmente dramático – recurso narrativo diferente de um livro, em que o leitor até pode criar uma relação particular com a ordem da narrativa, ou mesmo retornar a um trecho já lido para reler etc.). Além disso, alguns elementos formais/estéticos parecem relevantes para essa construção da identidade caipira diante desses conflitos, como o fato de a protagonista, que começa narrando diretamente para o público, “perder o rumo da história”; da mesma forma, interessa-nos avaliar com cuidado o final do texto, já que não há uma síntese conclusiva ou resolutiva para a protagonista – pelo contrário: se em um dado momento a peça parece conduzir a protagonista caipira no rumo que ela deseja, ou ao menos em um rumo onde ela conduz a própria vida, sem viver para servir os outros, do meio para o final do texto temos um crescente desolamento da personagem Maria, que acaba perdendo o pouco que tinha.

184

Eliane Lisboa afirma que há um discurso permanentemente metalinguístico em Soffredini (2001, p. 38). 185

Algumas das falas de Maria, que no fundo referem-se à sua própria história: “Sô pegada nesses conto que o povo conta. (...) Nesses tal, tudo tem seu cabimento. (...) Mas bota tenção no que le digo, viu? Eu, nesses conto que o povo conta, o menos que eu sô pegada é no ouvi...sô mais no contá” (p. 6, dizendo para o

leitor/espectador); “Sô eu que to contando a história tá me ouvindo?! Eu é que decido como tem que acabá!” (1995, p. 61, para Joana).

Sobre as marcas do dialeto caipira, já nas primeiras falas que abrem a peça vemos o trabalho empenhado com a linguagem mais uma vez realizado pelo dramaturgo, principalmente pela boca da protagonista Maria, mas também nas falas de outros personagens ao longo do texto. Tanto no vocabulário quanto no registro da pronúncia específica de algumas palavras, ou mesmo na estruturação das frases (formação de plural, conjugação de verbos...). Porém, é importante notar que há nuances importantes entre eles, já que a menina Joana, por exemplo, traz em suas falas algumas marcas do universo urbano e estrangeiro, de um mundo externo que entra em choque com a cultura caipira da madrasta. Joana, inclusive, “corrige” a fala dos outros, em relação ao português considerado padrão, em mais de um momento da peça. Especialmente em expressões usados pelo personagem do jardineiro, em sua variedade linguística desprestigiada. A linguagem que caracteriza os personagens dessa peça marca, portanto, as diferentes posições sociais; e o fato de Joana apontar as supostas inadequações na fala dos outros, em vários momentos, é uma forma de reforçar seu poder ali (de classe, mas também de cultura que detém privilégio). Há ainda referências a outros dialetos e culturas, como na caracterização da personagem Purnica, a quem a madrasta chama de “madama”.

Outros dois aspectos importantes em relação à linguagem são a consciência que a personagem Maria tem, em certa medida, sobre essas diferenças sociais que a linguagem aponta (quando muda sua pronúncia e vocabulário para se colocar em posição superior à Purnica, marcada pelo autor nas rubricas, como nas duas passagens a seguir: “MARIA - (cheia de esses e erres) Não poderíamos de'xar pra 'manhã, quando eu 'tiver vestida mais ‘proprial’?” e “MARIA - (esses e erres, superior) A sinhora, dona Purnica... será que poderia me dar uma "formação", que é pra mim ficar... que nem se diz... ‘integrada’?”, 1990, p. 25 e p. 30) e as alterações na fala da própria madrasta, ao final da peça, que ganha marcas de outro dialeto e estilo de fala. Os conflitos que ela vai vivendo (empobrecimento da casa, seu embrutecimento, a prisão) alteram significativamente as marcas de dialeto caipira em sua fala – ao final da peça, Maria não pode mais ser caracterizada exatamente como uma mulher caipira.

Vale notar ainda que a peça A madrasta é dividida em duas partes, significativas quanto ao sentido geral da trama: a primeira é intitulada “Onde se compõe a fantasia” e a segunda “Onde se impõe a realidade”. Mesmo com poucas referências temporais específicas, se fôssemos localizar historicamente o contexto em que ocorre a narrativa poderíamos dizer que ela se passa em momento já posterior às questões socioeconômicas

que florescem no contexto de criação e representação de Na carrêra do divino. O desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil não parece estar emergindo e se fortalecendo; não se trata de período de grandes transformações, pois, pelo contrário, parece haver certa estabilidade desses valores já colocados como hegemônicos. Dessa forma, apesar do primeiro momento de suposta “fantasia”, devido à presença de vários elementos dos contos maravilhosos populares (como as personagens fantasiosas de reinos e as indeterminações da ordem do “era uma vez”), o desenvolvimento da peça segue – como já indica o título da segunda parte – para as imposições da realidade: o conflito entre Maria e Joana (que poderia até parecer discreto ao início) se expõe em termos mais claros e a violência cresce até o desfecho totalmente desfavorável à protagonista. A própria Maria externaliza, em suas falas finais, esse aniquilamento total da fantasia desejada e sonhada inicialmente: “Até parece que não vê que nós SEMPRE perdemo” (1995, p. 62), “A gente não tem veiz... A história não vai dexá! ELES não vão dexá! Nunca!” (1995, p. 64). Existem um “nós” e um “eles” bem marcados aqui: ela e outro empregado ali estão de um lado, enquanto a filha Joana e o pai João de outro. Quem tem poder (econômico, social) vence; quem não tem, achou que poderia ter ao menos o poder da condução pela narração, mas acaba sem conseguir nada.

Maria segue: “Esse papo de sonhá... sê feliz... é tudo papo furado”186 (p. 64). Vale destacar também uma das últimas rubricas da peça, que vem entre parênteses logo após essa fala:

(Depois disso, um grande silêncio pousa sobre as coisas e as pessoas. Mas tão grande que dá pra ouvir até a imponência do palácio, que dá pra ouvir o coração daqueles cinco, refletindo, que dá pra ouvir até o sol do fim da tarde entrando pela casa!...) (1995, p. 64).

Se a peça parece em geral ter um ritmo acelerado, essa marca na cena final faz um belo contraponto: a tristeza e desolação da protagonista sobre sua condição toma conta do cenário187 e até das outras personagens. Talvez pela primeira vez “o coração” dos cinco é

186

O final dessa peça traz uma ideia bem diferente sobre os conceitos de bondade e amor que aparece no final do Auto de Natal caipira.

187

Na descrição sobre a fachada da casa, nesse momento da peça, Soffredini escreve: “FACHADA III. Mesma fachada, completamente entristecida.” É o espaço personalizado, transformado em elemento com

subjetividade, capaz de absorver a tristeza dos seres que ali vivem nessa fase – a partir da cena XVIII, intitulada “ATÉ QUE CERTA FEITA REGRESSOU...”.

mencionado, em alguma unidade. Vale notar o trabalho poético de linguagem feito aqui nessa rubrica: o som que se ouve nesse momento é o do sol de fim de tarde. A casa rural é aqui tomada por essa luz melancólica do dia que termina. E mais nada.

Enquanto na primeira peça (Na carrêra do divino, de 1979), tem-se o homem caipira e sua família no centro da representação, e o autor usa textos considerados científicos como referência (artigos de Lobato, a pesquisa de Antonio Candido e de Amadeu Amaral); nessa segunda peça A madrasta, de 1995, Soffredini utiliza outros textos literários como fonte (contos populares) e apresenta uma mulher caipira como protagonista. É a ficção sua fonte principal de pesquisa para este trabalho, o que reflete de maneira bem diferente na estruturação dessa peça.

Se o dramaturgo já tinha anunciado a peça como um “conto de carochinha para adultos” na capa, após a dedicatória aos netos ele utiliza uma citação de Câmara Cascudo, em espécie de epígrafe ao texto: “Ao lado da literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas, da memória e da imaginação popular. Luiz da Câmara Cascudo” (1995, p. 2). Parece-nos, assim, que em Soffredini as pesquisas ainda são importantes no processo de escrita dos textos; porém, o referencial dessas pesquisas sobre a vida rural brasileira muda: se a princípio ele foi para o terreno, digamos, autorizado e legitimado da pesquisa acadêmica e do discurso intelectual, mais tarde ele recorre a fontes de outra ordem: a tradição de fato popular e oral domina suas referências de pesquisa. E nessa tradição as imprecisões, as incertezas predominam, e o mundo da fantasia é bem maior. Mas esse mundo do sonho pode ser destruído, como ele não deixa de observar pelo desfecho da peça.

4.3 Comparação entre as personagens femininas caipiras de Na carrêra do divino e