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Amadeu Amaral, Valdomiro Silveira e Cornélio Pires: o trabalho com a linguagem

2. Na carrêra do caipira: análise da peça Na carrêra do divino

2.4 Amadeu Amaral, Valdomiro Silveira e Cornélio Pires: o trabalho com a linguagem

Dentre os autores que o próprio dramaturgo explicita nas suas fontes de leitura68 para a pesquisa realizada na produção da peça Na carrêra do divino, estão ainda três importantes

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Sábato Magaldi aponta, como comentei ao mencionar a recepção crítica, o “rigor científico na condução dos episódios”, sendo que cada tema segue um desenvolvimento específico e a sequência acaba sugerindo “o inteiro universo caipira” (2015, p. 651).

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Segundo a família de Soffredini, de fato, ao menos os livros Leréias e O Dialeto Caipira constavam na biblioteca do dramaturgo.

figuras da cultura brasileira, cuja produção relacionada ao universo caipira já foi comentada no primeiro capítulo deste trabalho. Soffredini afirma que com a literatura de Valdomiro Silveira teria aprendido a maneira como os caipiras falam; com os estudos de Amadeu Amaral compreendeu melhor particularidades (linguísticas e culturais69) dos caipiras, além de conhecer algumas de suas lendas; e dos textos (e talvez nas gravações) de Cornélio Pires, o dramaturgo teria retirado alguns dos recursos cômicos que incorpora em sua peça. Vejamos, então, como se deu em Na carrêra do divino a relação com essas referências.

Amadeu Amaral publica em 1920 sua pesquisa sobre o dialeto caipira – que chama na abertura de “pequeno e desvalioso ensaio” (1920, p. 3) e a dedica a Valdomiro Silveira e Cornélio Pires, que estão também entre os colaboradores a quem Amaral agradece, dentre outros nomes. O autor localiza a preponderância desse dialeto, que chama de “nosso falar”, há cerca de 25 anos antes do tempo em que escreve, quando esse “sistema distinto e inconfundível” se espalhava pelo território da antiga província de São Paulo, dominava “em absoluto a grande maioria da população e estendia a sua influência à própria minoria culta” (1920, p. 11).

Segundo ele, o chamado “caipirismo” estava ligado ao não letramento, sendo os “genuínos caipiras” os “roceiros ignorantes e atrasados”; todavia, mesmo as “pessoas educadas e bem falantes não se podiam esquivar a essa influência” (1920, p. 11-12). Amaral aponta que o processo de desenvolvimento desse dialeto sofre com as alterações do meio, que interromperam a “continuidade da sua evolução” (1920, p. 12). Dentre os fatores que comenta como alterações estão: o afastamento da convivência cotidiana dos brancos com os negros, devido à substituição do braço escravo pelo assalariado; o crescimento da população e o aumento das vias de comunicação e comércio, que alteravam as relações entre os centros populosos; e o aumento da instrução e educação letrada. À época da escrita do livro, o referido dialeto estaria então restrito a pequenas localidades e à boca dos idosos, mas marcas remanescentes de seu domínio continuariam a flutuar pela linguagem em todo o estado.

Amadeu Amaral tentará descrever, assim, as marcas específicas dessa variedade linguística, pensando as diferenças em relação ao português peninsular falado em Portugal e também em relação a outras variedades das demais regiões do Brasil, e dando atenção aos “paulistanismos” de corrente popular (1920, p. 14). O estudioso defende que para se fazer

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Nesse sentido, refletir sobre as contribuições de Antonio Gramsci sobre as relações entre língua, gramática e cultura popular foram muito proveitosas para pensar a questão do popular e dos aspectos linguísticos em Soffredini.

uma caracterização do “dialecto brasileiro” seria preciso estudar as particularidades de cada região, distinguindo, no caso de São Paulo, o falar do litoral em relação ao falar do interior (1920, p. 15).

Esse livro traz, então, a reunião de observações descritivas do uso da língua no interior do estado em relação à fonética, lexicologia, morfologia e sintaxe, fazendo também o registro de uma lista de vocabulário que se estende por mais de 170 páginas. Interessante notar o cuidado com algumas observações, como a análise dos acentos, das pausas e da duração das vogais (o que explicaria a fala “cantada” do caipira, em relação ao falar de Portugal)70, bem como a atualidade de algumas explicações. Por mais que o autor tenha feito as ressalvas de desaparecimento desse dialeto, muitas das caraterísticas descritas por ele ainda podem ser encontradas hoje no interior do estado de São Paulo, mesmo em pessoas escolarizadas – não talvez algumas marcas de morfologia ou sintaxe, como flexão verbal, mas com certeza inúmeras outras, como o famoso R retroflexo71 (chamado inclusive popularmente de “R caipira”), persistem como característica dessa variedade linguística.

Interessante notar os usos que Soffredini fez desse material para a escrita de Na carrêra. Em várias referências sobre o processo de produção dessa dramaturgia aparece a menção a este livro como consulta fundamental, ao lado de Os parceiros do Rio Bonito de Candido, para o dramaturgo criar as personagens caracterizadas nesse uso linguístico caipira. A camada mais óbvia talvez seja a do vocabulário. Palavras repetidas inúmeras vezes ao longo da peça, como “vancê”, “nha” e “home”, estão todas referidas na pesquisa de Amaral. Há casos também, relevantes para entendermos com que olhar procura-se representar o caipira nessa peça, em que o vocabulário do dialeto aparece não somente nas falas dos personagens, mas é incorporado nas rubricas – como no caso da palavra “lambada” (para chicotada, bofetada, paulada) ao final da cena I. A linguagem popular rural passa a ser estruturante dessa dramaturgia72. Quais termos vieram exatamente do livro de Amaral ou quais são de outra fonte não podemos afirmar ao certo; porém, como a crítica e a biografia do autor apontam, nem a história pessoal de Soffredini era marcada por essas referências linguísticas nem suas peças anteriores. Mais do que vocabulário, Soffredini procurou registrar nos diálogos as camadas da sintaxe, da pronúncia e até da prosódia para a

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Tratarei com mais detalhes disso no capítulo 6, quando for analisar trechos do Na carrêra do divino e duas canções.

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Fonética do “r” inter e pós vocálico; semelhante ao “r” inglês pós vocálico (AMARAL, 1920, p. 21). 72 Assim como foi para o narrador da prosa de Valdomiro Silveira, conforme tentamos apontar.

caracterização do dialeto e dos personagens. Nesse sentido, se o leitor hoje precisa fazer o movimento inverso – pesquisar o que significam alguns dos termos e usos de linguagem presentes na peça –, é provavelmente o livro de Amadeu Amaral ainda a melhor fonte. O trabalho de pesquisa foi, portanto, fundamental para a criação dos diálogos e da linguagem dos personagens na referida dramaturgia.

Quanto a Valdomiro Silveira, a ideia de recuperar uma fala autêntica para os personagens, sem marcar a distância entre a cultura do narrador e dos caipiras representados, como apontei no capítulo anterior, parece ser a mesma busca de Soffredini para a linguagem e o tratamento dado aos personagens que cria, na tentativa de atingir em suas falas marcas de oralidade e subjetivade que os caracterize nesse sentido.

O texto de Carmen Lydia de Souza Dias, no Suplemento Cultural do jornal O Estado de S. Paulo, de 11 de novembro de 1979, intitulado “A linguagem caipira”, comenta a retomada dos estudos sobre linguagem caipira pelas pesquisas literárias e também a redescoberta de temas da vida rural pela esfera do teatro. Esse extenso texto não é propriamente uma crítica teatral da peça de Soffredini: aproveitando o 106º aniversário de Valdomiro Silveira, a autora destaca a “presença marcante” do escritor, autor de Os caboclos e Leréias, na “estruturação do texto” de Na carrêra do divino (1979, p. 6). A peça de Soffredini traria a oportunidade de rever e reavaliar obras escritas inspiradas no “falar regional do interior paulista”. Escrevendo cerca de dois meses após a estreia do espetáculo em São Paulo, ela destaca ainda o “interesse popular por um espetáculo que corajosamente se debruçou sobre o caipira” (1979, p. 7), o que poderia estimular novas reflexões sobre os caminhos da crítica e a rotulação de algumas obras.

Sobre a peça em si, Dias aponta a “seriedade e autenticidade” da montagem aliada à sensibilidade no “tratamento de matéria poético-ficcional”, com equilíbrio dos planos científicos e estético (1979, p. 6). Dias elogia a “recuperação daquele mundo caboclo” feita com perspectivas críticas e a “riqueza didático-expressiva” do “belo texto de Soffredini” (1979, p. 6). Esse espetáculo confirmaria, segundo ela, o “potencial criador” do dramaturgo, que soube aproveitar a bibliografia diversificada para a composição do texto dramatúrgico. Segundo a crítica, os dados para a “recomposição da atmosfera ambiental caipira”, tirados

dos contos de Valdomiro Silveira73, fornecem “a base ficcional adequada ao factual da narrativa” inspirada no ensaio sociológico de Candido.

Sobre a produção de Cornélio Pires, e sua atuação como importante agitador cultural em relação à temática caipira, já comentamos no capítulo anterior – e voltaremos a tratar disso em especial no capítulo 3, ao tratarmos da peça de Soffredini, de 1990, para a qual a figura de Cornélio é talvez a principal referência, desde o título – A estrambótica aventura da música caipira – baseado em um dos seus livros. Por ora, apontarei apenas como de fato algumas referências pesquisadas por Soffredini em Cornélio Pires foram também incorporadas à peça Na carrêra do divino, já em 1979, como em breves anedotas inseridas em diálogos como recurso cômico. Uma delas aparece na cena VII, por meio de uma fala do menino Pernambi: na fase denominada como “Filosofia”, o menino reflete sobre as diferenças de tamanho entre os passarinhos e as vacas e dos espaços que ocupam cada uma deles (céu vasto para o animal “pequititinho” versus pasto cercado para o animal “tão grandão”), afirmando que “Nosso siô tá errado a conta intera”; até que lhe cai um cocô de passarinho na cabeça e ele conclui: “Nosso Siô tá por demai’ de certo: (Põe a mão na cabeça) ‘Maginô si vaca avuasse?” (2017b74, p. 69). Outra anedota (tirada do último livro de Cornélio, Enciclopédia de anedotas e curiosidades, de 194575) aparece na boca de Jeca, na cena XI, quando o caipira responde ao Cidadão sobre a produtividade da terra, após dizer que vários dos produtos perguntados não nascem naquelas terras (“CIDADÃO ― O senhor já plantou pra experimentar? / JECA — Uai! Pui’ prantano...dá!”) e toca, pela chave cômica, através do recurso de comicidade produzida pela linguagem (BERGSON, 1983, p. 57), no preconceito que divide os trabalhadores rurais entre preguiçosos e empenhados, reduzindo muitas vezes a identidade do caipira.

Procuro adiante, durante a análise da peça de Soffredini nesse capítulo, detalhar como se dá o trabalho para diferenciação entre os personagens76 no que diz respeito à

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Parte dessa recomposição está em expressões presentes nos contos de Valdomiro, como “no tempo da jaboticaba” (2007, p. 58) e “tão certo como sem dúvida” (2007, p. 182), e que Soffredini também utiliza na boca de seus personagens caipiras.

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A peça é de 1979, mas foi publicada como livro em 2017, conforme expliquei na Introdução deste trabalho. Utilizei manuscritos e datiloscritos da peça durante a pesquisa, mas utilizarei aqui, para as citações, sempre as referências ao livro de 2017.

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Cf. “Prantano” In: PIRES, 1945, p. 14. 76

Procurei investigar, na dramaturgia de Soffredini, a tentativa de não tratar o caipira como figura homogênea e idealizada. Sobre essa construção não estigmatizada, o próprio Soffredini diz: “saí numa pesquisa intensa,

linguagem empregada (no uso de variações específicas para cada personagem77 mesmo dentro do grupo que usa a variedade caipira comum a todos eles), já que podemos notar algumas expressões que marcam personagens específicas, como a frase “cala boca, peste”, sempre repetida na boca da mãe Nha Rita – e que comentaremos melhor no próximo item, sobre Lobato – ou em frases específicas faladas por um personagem que são depois reproduzidas por outro (como em “Tô aqui, tô cismano...”, que aparece na boca do pai, Jeca, na cena I, e depois em uma fala do menino Pernambi78 na cena V).

2.5 Monteiro Lobato: contrapontos e aproveitamento de caracterizações na