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Considerações sobre as duas canções rurais e as personagens

4. A caipira desiludida no fim do século XX: análise da peça A Madrasta

4.3 Comparação entre as personagens femininas caipiras de Na carrêra do divino e A

4.3.3 Considerações sobre as duas canções rurais e as personagens

[a canção brasileira] “chegou como se fosse simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença: as coisas ditas poderiam então ser reditas quase do mesmo jeito e até conservadas para a posteridade”. (TATIT, O século da canção, p. 70)

No primeiro caso, analisado no capítulo 2, temos uma canção composta especialmente para a peça teatral – misturando trechos falados (que chamamos de diálogo em prosa) com trechos cantados (em versos); estes segundos podem ser reproduzidos praticamente mantendo a mesma forma. No segundo caso, houve uma apropriação de um tema da tradição oral, com a reprodução dentro da peça teatral de trechos de uma canção inserida em um conto popular: é a referência que pode ser dita novamente, quase do mesmo jeito. (Creio ter destacado a importância do “quase do mesmo jeito” para essa tradição popular.)

Essas duas canções de certa forma eternizam as duas personagens; não o enredo todo da peça, mas o episódio específico de que tratam os dois cantos. Para fixar um conteúdo em forma de canção, o que é descompromissado tem que “se regrar de algum modo”, para assegurar sua permanência na memória: “Esse é o momento em que as recorrências, a metrificação, a fixação das alturas, típicas da linguagem musical, vêm em socorro do compositor para quem as direções entoativas possam ser estabilizadas como melodia”; mas mesmo aí o “gesto entoativo instável” persiste (TATIT, 2007, p. 32).

Na canção “Apuros de um santo casamenteiro”, os momentos do diálogo em prosa não seguem recorrências nem métrica fixa, mas são marcados por interrogações, já que são falas diretas ao santo; enquanto nos momentos do canto em versos, as recorrências estão todas ali: é o trecho de fixação na memória, de possível reprodução exata. São alguns desses trechos, inclusive, que foram usados também no filme Marvada carne, anos depois. Em “Estória da Figueira”, a métrica é igual mesmo quando há troca de vocabulário ou diferentes escolhas de entoação. Se em uma parece que temos uma curta canção entremeada de longas falas em prosa, na outra referência talvez nos pareça o contrário: há uma narrativa oral que depende centralmente da canção em versos que ali se expõe.

Temos aqui, nesses dois exemplos apresentados, a contribuição para o perfil do que seja a canção brasileira de uma parte não letrada e não prestigiada da sociedade, que faz música de forma amadora – e mais: que a apresenta, nesses dois casos, a partir do eu-lírico feminino, com todas as implicações que isso traz. Vários teóricos (Luiz Tatit, José Miguel Wisnik; Luís Augusto Fischer; Carlos Augusto Bonifácio Leite, dentre outros) destacam a importância da produção popular para o cenário musical brasileiro. Está longe da minha intenção avaliar algo com a amplitude desse cenário e as especificidades do campo da música; todavia, interessa-me aqui destacar esses dois exemplos de referências musicais populares compondo também esse cenário, com atenção especial ao popular proveniente do mundo rural. Tatit ressalta a importância das referências populares para Villa-Lobos: “o folclore servirá de base consensual às estratégias pedagógicas do músico: só a cultura popular rural não estaria ainda contaminada pelos desvios e vícios próprios dos centros urbanos” (2004, p. 37). Cabe sim avaliarmos a importância dessas referências para a construção cultural literária brasileira.

Não é possível pensar nem o tema das duas canções nem suas estruturas se desconsiderarmos o universo do patriarcado rural: ambas as caipiras cantam uma dor ligada às opressões do mundo patriarcal em que vivem. Duas meninas que quase não brincam, mas trabalham para manter a vida na propriedade rural em que nasceram. A primeira que vive em função de um possível casamento, para sair do núcleo familiar de seu pai, com a aprovação deste, e compor seu núcleo ligada a outro homem. A segunda, a menina da canção sobre a Figueira, sofre as consequências da violência física de uma mulher que disputa com ela o espaço e a propriedade do pai. Ambas cantam suas experiências nos limites desse mundo rural: duas meninas, mas uma que se vê como mulher (e se considera “velha”...) e a outra (da canção, não a inversão feita na menina da peça) que teve seu

percurso de crescimento interrompido. Na peça A madrasta, a presença da canção talvez marque a ironia da situação vivida por Maria, nessa inversão de papeis com relação à filha do seu marido: na peça não é a menina a explorada, mas sim a madrasta que é a trabalhadora dali, que procura sustentar aquela propriedade.

Não podemos tentar definir algo sobre a representação do caipira se desconsiderarmos as especificidades dessas personagens femininas compondo também a figura representada: suas identidades de meninas/mulheres caipiras, pensadas em função da estrutura familiar patriarcal, também precisam ser avaliadas. Aliás, mesmo elas sendo as protagonistas, como no caso de Maria, acabam sendo definidas enquanto personagens, em alguma medida, em função das figuras masculinas das peças. Tornar-se madrasta, no segundo caso, depende do casamento com João; assim como casar, para a personagem Mariquinha depende do santo e do pai.

Dessa forma, esses seriam exemplos de uma característica mais ampla do teatro de Soffredini, em relação à composição das personagens femininas e a importância delas dentro de sua dramaturgia. Nos dois casos, se há pontos de contato importantes com a tradição do teatro brasileiro moderno, muito há de reformulações importantes na maneira como Soffredini as representa – nessa dramaturgia que funde, como fontes de pesquisa, estudos sociológicos e materiais eruditos com materiais populares. Interessa-nos, assim, entender as tentativas das personagens, nessa busca pelo casamento, de narrarem (conduzirem) a própria vida: avaliar as vozes e os silenciamentos das personagens femininas nos conflitos e violências que sofrem (ou provocam), bem como o uso de recursos épicos196 ou melodramáticos em cada peça – como eles funcionam na composição das personagens.