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Contexto de produção da peça e relação com fontes

4. A caipira desiludida no fim do século XX: análise da peça A Madrasta

4.1 Contexto de produção da peça e relação com fontes

Começo por comentar alguns aspectos da condição de produção da escrita da peça A madrasta. O diretor Luiz Fernando Carvalho teria encomendado a Soffredini um roteiro para um especial de TV, que demandava pesquisa sobre narrativas populares no Brasil. Soffredini escreve, entre início e meados da década de 1990, o que acabou se tornando a minissérie Hoje é dia de Maria, que permaneceu inédita até 2005161. Interessado nas pesquisas que fez, o dramaturgo produz também o texto da peça A madrasta, finalizada em 1995. No ano de 1994 ele havia sido contemplado com uma bolsa de dramaturgia – Prêmio Estímulo da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, com um projeto que levava o mesmo título que ficou para a peça. No arquivo pessoal do escritor, constam mais de 25 páginas de anotações dentre esses estudos dos contos populares e esquemas de composição (de estrutura, de vocabulário e de cenas) da peça A madrasta, além de um relatório de atividades do projeto. Na ilustração 13 pode-se observar um exemplo das anotações esquemáticas que o autor fazia para composição e/ou reestruturação de suas peças: uma espécie de esqueleto da trama que ele construía em função da estrutura da peça – procedimento que não foi exclusividade desse processo de 1990-1995. Soffredini teria, assim, aproveitado o material pesquisado sobre a tradição de narrativas orais e seus estudos sobre o resgate do melodrama para compor essa peça, que permanece inédita como espetáculo – nunca foi realmente encenada. Existe apenas uma leitura dramática feita no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em setembro de 2005, que foi gravada em vídeo.

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Após a morte de Soffredini, em 2001, o diretor Luiz Fernando Carvalho e o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu adaptaram o especial (escrito originalmente por Soffredini) para uma minissérie em oito capítulos, que foi exibida na chamada “Primeira Jornada”, em 2005. Já a “Segunda Jornada” foi escrita somente por Luiz Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho.

Ilustração 13 – Anotação esquemática da composição da peça A madrasta. Arquivo pessoal do dramaturgo Carlos Alberto Soffredini (Santos/SP).

A análise crítica da peça deve, portanto, levar em conta o contexto de produção desse texto dramatúrgico e observar com cuidado as relações que se estabelecem com os textos populares que foram fonte de pesquisa para Soffredini nesse caso. Creio que a peça A madrasta explora de maneira muito interessante, valendo-se de diferentes recursos da linguagem teatral, a relação com contos infantis e contos populares. As referências principais para a pesquisa dos contos, dadas pelo próprio autor, seriam os trabalhos de Câmara Cascudo e de Sílvio Romero162, principalmente na história da “Menina enterrada viva”, como comentarei adiante. Segundo Soffredini, neste conto se encontram “os ingredientes principais do conto popular, tanto no que diz respeito às circunstâncias quanto aos personagens”163

.

Lembremos que o recurso da pesquisa não é novidade para o dramaturgo: várias das peças de Soffredini fazem referência a outras obras já existentes. Eliane Lisboa denomina o seu trabalho, por conta desse processo, de “obra parafrásica” (2001, p. 73). Problematizo um pouco o termo escolhido – já que a ideia de paráfrase (dizer com outras palavras, fazer uma nova apresentação para um texto anterior) parece-me simplificar e reduzir o trabalho realizado pelo escritor, especialmente tratando-se de um texto artístico, em que a forma importa. Mudar as palavras, dizer de outra forma é dizer outra coisa... Especialmente na peça A madrasta, a relação com os textos anteriores não pode ser chamada de paráfrase, a meu ver. Tanto por conta do questionamento central dos sentidos primeiros (os sentidos presentes nos textos-fonte), quanto na questão formal, dos gêneros literários mobilizados. Mesmo a simples aproximação de contos variados já problematiza a ideia simplificada de reapresentar um texto anterior, para afirmar ou negar seus sentidos. No caso dessa peça, estão em jogo exatamente os vários sentidos e papeis aproximados. Tratarei mais disso ao explicar os questionamentos dos papeis maniqueístas nessa peça.

A própria distinção de linguagem e estrutura entre a prosa, nos contos, e o texto dramático vai muito além do recurso parafrásico. O autor mesmo, em seu processo de escrita, avalia a importância (e as dificuldades, os limites) dessa alteração formal, em um

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Vale notar que os próprios trabalhos de Romero e Cascudo já apontam, para vários dos contos registrados, variações regionais ou mesmo referências da tradição portuguesa, que, às vezes, alternam algum elemento da narrativa ou o título.

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Anotações datilografadas do escritor sobre o projeto da peça A madrasta para edital de bolsa (Prêmio Estímulo, 1994). Arquivo pessoal de Soffredini (sem data, p. 1).

texto sobre o projeto da peça. Soffredini afirma que pretendia nesse trabalho realizar uma obra teatral que partisse de uma narrativa, o que possibilitaria “investigar o limite possível da literatura numa obra dramatúrgica”164

. Nesse processo, a própria maneira de se referir a este texto ficaria, segundo ele, híbrida: “seria alguma coisa assim como um conto- dramático”165. Dentre os datiloscritos do autor existe, inclusive, um material em prosa, que soma 27 páginas, com o título “A madrasta: uma ideia a ser desenvolvida dramaturgicamente”. Datado de 1993, traz marcas posteriores, à caneta, da possível reorganização daquele texto para a forma teatral: divisões em cenas, marcas do que vira cenário e do que se torna diálogo dos personagens, dentre outras.

Entender melhor quais são e como se dão essas relações com outras referências literárias e culturais brasileiras nos ajuda a avaliar a construção da representação caipira na obra do dramaturgo, como procuro mostrar. Se em Na carrêra do divino as fontes de pesquisa e os trechos usados na dramaturgia são provenientes tanto de textos científicos e teóricos quanto de outras produções literárias e artísticas (como no caso da música popular caipira), em A madrasta a fonte de pesquisa para continuar tratando do ambiente rural é diversamente outra. Além dos contos registrados por Romero e Cascudo (ou seja: do universo das narrativas populares em forma breve, não necessariamente de temática rural ou caipira, vale ressaltar), Soffredini menciona também, ao final de sua peça, a importância de Lereias: histórias contadas por eles mesmos, de Valdomiro Silveira, para essa construção – em especial para “os termos e imagens e jeito de falar” dos personagens da Maria e do Capineiro (1995, p. 67). Sobre os dois escritores, Câmara Cascudo e Silvio Romero, a relação parece mais clara no próprio texto, e a comentaremos adiante, ao explicitar os contos aproveitados em A madrasta e ao analisar os elementos estruturantes dessa peça, incluindo a canção que a permeia, proveniente também dos contos populares recolhidos por eles. Resta, portanto, avaliar um pouco mais a relação de aproximação de Soffredini com Silveira e os usos da ideia de narrativa/narrador que concebe para essa peça.

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Idem. 165 Idem.