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Análise da canção “Estória da Figueira”: o conto popular e as mulheres

4. A caipira desiludida no fim do século XX: análise da peça A Madrasta

4.3 Comparação entre as personagens femininas caipiras de Na carrêra do divino e A

4.3.2 Análise da canção “Estória da Figueira”: o conto popular e as mulheres

No capítulo 2 analisei a canção “Apuros de um santo casamenteiro” e a cena em que ela aparece. Comento agora a canção “Estória da Figueira” e elementos da peça A madrasta relacionados a esta canção, para depois fazer uma breve comparação entre as duas cenas (as duas canções e as personagens femininas) a fim de compreender melhor as representações do caipira na obra soffrediniana.

A segunda canção a ser analisada, ligada principalmente à personagem Joana da peça A madrasta, também pode ser associada à madrasta Maria. Com relação ao enunciador do canto, quem canta aqui seria uma voz feminina vinda do além, uma espécie de defunta cantora – lembrando que se trata do universo fantasioso dos contos populares. A especificidade do eu lírico aqui se faz, então, ainda mais complexa: não bastasse a raridade de canções populares de temas rurais com eu lírico feminino, soma-se aqui o fato de ser um canto pós-morte.

Nos contos “A menina enterrada viva” e “A madrasta”, a figura clássica da madrasta má é mobilizada na narrativa que a menina enterrada canta, tendo como interlocutor direto o jardineiro. Com seu pai ausente, a morte dela resultou de um conflito com essa madrasta: a mulher impedia a menina de brincar e a mandava tomar conta da figueira, para impedir que os pássaros comessem os frutos; em um dia, sentindo-se muito cansada, a menina adormece e os pássaros bicam todos os figos. Em oposição à sua mãe, que cuidava da menina, essa mulher má que acaba casando com seu pai a mata e a enterra no jardim. O carinho da mãe aparece na canção simbolizado no cuidado com os cabelos da menina – cabelos que, após a morte, se materializam no capinzal, possibilitando a chance do canto de lamento. A única saída para essa garota, órfã de mãe e sem a presença do pai para lhe proteger, seria cantar, como forma de apelo à ajuda de um terceiro192.

A canção aparece na peça de Soffredini logo na primeira cena, quando a menina Joana tenta conduzir com sua madrasta Maria uma encenação de um conto popular sobre princesa e bruxa. Na entrada do jardineiro (capineiro), a filha Joana traz os primeiros versos, que reaparecerão em diversos momentos da peça:

192

O uso da música retoma, dessa forma, parte das finalidades desse elemento no melodrama: anuncia e prepara o aspecto emocional que se desenvolverá no conflito entre as personagens.

Capineiro do meu pai

Não me cortes os cabelos! (1995, p.9)

Mais adiante, os versos da canção vêm inteiros reproduzidos em dois momentos da peça:

Capineiro do meu pai Não me cortes os cabelos! Pois a minha má-madrasta

me enterrou por figo e meio (1995, p.46) Xô, xô, passarinho

Vai s’imbora pro teu ninho... Nos figos da minha figueira

Ai, não toques o biquinho... (1995, p. 41)

A canção completa, reproduzo-a na versão que aparece na leitura dramática feita em 2005 no CCBB193, em São Paulo, sob direção de Renata Soffredini:

Jardineiro do meu pai,

Não me corte os meus cabelos. Minha mãe me penteava. Minha madrasta me enterrou Pelos figos da figueira Que o passarinho comeu...

Xô, passarinho, da figueira do meu pai. Xô, passarinho, da figueira do meu pai.

Essa versão encontra-se na faixa 5 do disco “Brincadeiras de Roda, Estórias e Canções de Ninar”, com o título “Estória da Figueira”, sendo as vozes da gravação de Elba Ramalho (narração) e Solange Maria (canto)194.

A melodia aqui é composta de movimentos ascendentes e descendentes em cada verso, com repousos no final – o mais marcante talvez seja o do quarto verso, no termo “enterrou” que repousa musicalmente na nota fundamental dessa canção. E repousa mesmo,

193

A gravação da leitura realizada no CCBB em 28/09/2005 me foi gentilmente cedida por Renata Soffredini. 194

A faixa completa com o conto na íntegra pode ser conferida na internet no seguinte link:

https://www.youtube.com/watch?v=NgpFGmsinWc (Acesso em 10 set. 2015). A canção em versos a que me refiro está no tempo 1min30 do vídeo.

no sentido do termo escolhido (“enterrar”), embaixo da terra. A mudança de meio tom entre as duas notas finais desse verso (“...me en-ter-rou”) é gesto semelhante ao do final da canção anterior (“que-ren-do me na-mo-rar”): vai da nota sensível (que preparam sempre meio tom abaixo da nota fundamental) para a nota fundamental (que repousa/encerra o movimento melódico).

Por estar registrada como letra de canção dentro de um conto popular (que era transmitido oralmente e foi recolhido por escritores do mundo letrado), essa canção não tem autoria definida, nem uma música específica fixada. Encontrei, assim, algumas variações na melodia e na letra. (A mais diferente usa a melodia da canção “um pequenino grão de areia/ que era um pobre sonhador” –, fato que não é incomum nesse tipo de transmissão popular: muitas vezes utiliza-se melodia de outra canção popular, como “Se esta rua fosse minha”, para adaptar a uma letra específica.) As variações que ouvi são em geral de andamento (mais ou menos lentas) e do tipo do acompanhamento (instrumento e arranjo mais carregado ou mais simples). Mas, em geral, nas gravações a que tive acesso, usava-se um instrumento de corda como o violão para acompanhar, e o andamento de execução era mais lento.

Algumas variações de vocabulário também podem ser encontradas nessas várias versões da canção: “os cabelos” ou “os MEUS cabelos” (como aparece nos versos que reproduzi aqui); “minha mãe me penteava” ou “minha mãe me PENTEOU”; e assim por diante. Na verdade, nem do conto mesmo há somente uma versão. Isso se deve à própria natureza desse gênero e aos diferentes históricos de registro dessa narrativa em linguagem escrita. Há, por exemplo, disponíveis na internet, inúmeras gravações feitas por contadores de história, com suas maneiras de narrar oralmente e enfatizar diferentes trechos – podemos, através delas, ter alguma dimensão das alterações que cada transmissão provocava. Da mesma forma, a maneira de dar título a este conto também varia: “A menina enterrada viva”, “A menina e a figueira”, “A estória da figueira”, “Romance da história da figueira” etc. Resta-nos relembrar a todo momento como a tradição oral desse conto não pode, portanto, ser ignorada.

Retomo a análise da canção, para tentar entender um pouco mais a construção dessa personagem: menina do mundo rural. Nessa gravação (na versão que já indiquei), não há na pronúncia da cantora marcas de variação linguística diferente da que é genericamente considerada “padrão” para o português brasileiro; não estaria aí, portanto, a marca do universo caipira. Não há dúvida, porém, de que a canção apresente o universo rural – o

cerne do conto e da canção (a morte da menina) depende das relações que se estabelecem naquela propriedade rural (especialmente o que acontece com a plantação de figos). Vale ainda observar que, na peça em que ela aparece – nosso principal interesse aqui –, as marcas da cultura caipira são exaltadas pelo dramaturgo, e não só no uso do dialeto, sendo a madrasta a que mais acentuadamente traz esse registro.

A primeira parte da canção traz um centro narrativo, se concentrando em versos de mesma métrica (sete sílabas), de melodia que praticamente repete a mesma estrutura (com sequências ascendentes e descendentes de praticamente mesmo tamanho). Ao final, dois versos mais longos formam uma espécie de refrão: a menina muda seu interlocutor, deixando de falar com o jardineiro e passando a espantar aqueles que estão de certa forma envolvidos no conflito que causou sua morte.

Personagem de partida indefesa, a criança órfã da canção ganha a empatia do ouvinte contra a dureza da mulher adulta (a madrasta). Interessante notar como essas funções são invertidas na peça de Soffredini, o que faz com que a canção, que reaparece ao longo de vários momentos na peça, ganhe contornos irônicos. Na canção em si e no conto de onde ela se origina, não há ironia (Câmara Cascudo a nomeia inclusive como “cantiga tocante”), mas um misto de tristeza e de fantasia, já que a menina canta sua morte – pela voz, ela de alguma forma atualiza sua existência precocemente interrompida. A canção exteriorizaria um estado introspectivo da personagem, que se relaciona diretamente com a tensão do conflito presente nessa peça – recurso característico do melodrama195.

Para Tatit, “a voz que canta prenuncia, para além de um certo corpo vivo, um corpo imortal. Um corpo imortalizado em sua extensão timbrística. Um corpo materializado nas durações melódicas” (2002, p. 16). Refletir sobre a voz implica em pensar vida e respiração. Porém, nas especificidades da canção de Joana, ou melhor, da menina enterrada viva, não cabem os conceitos comuns de canto: não há corpo presente. Seria uma voz além túmulo que tenta se materializar na canção e na peça: parte da menina teria se transformado em um capinzal bonito que cresceu sobre sua sepultura; mas o mato só ganha sentido, só pode significar como cabelos da menina, quando ela canta e explica sua história, sua morte. Paradoxalmente, é a menina que foi “enterrada”, ou seja, que deixou de respirar, que entoa a

195

As interferências musicais corroboram a ideia dessa peça ter características de um melodrama – peças em que a música é “apoio para os efeitos dramáticos” (THOMASSEAU, 2005, p. 17) e “intervém nos momentos mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem silenciosa” (PAVIS, 2011, p. 238). O recurso do uso da música aqui não é comentário crítico, como ocorre muitas vezes em Na carrêra do divino. Aqui, o épico se dá por outros recursos.

canção aqui. No universo dos contos populares, é possível ela ter sido morta e depois ser retirada viva do fundo da terra. Na peça de Soffredini, que não ultrapassa os limites do verossímil, a personagem teria ficado presa em um porão.

Ainda segundo Tatit, a “voz não é nada mais do que a extensão metonímica do corpo do intérprete, como se a materialidade do som substituísse a materialidade fisiológica que caracteriza o sujeito da execução musical”. Dessa forma, ela se constitui “necessariamente como presente enunciativo – eu/aqui/agora” (2007, p. 146). Na “Estória da Figueira”, a voz que aparece cantando ali é de fato metonímia do corpo, já que este não pode aparecer como corpo (uma vez que foi enterrado). Não se tem a materialidade fisiológica do sujeito, fica então o som da voz como materialidade dessa menina que tenta resistir àquela violência. É pela sua identificação com o conteúdo do que canta que a narrativa se desenvolve.

Mais uma vez, é interessante o sentido “invertido” que se cria pelo uso da canção na peça de Soffredini: o comportamento realmente violento vem, na peça A madrasta, da menina, e não da madrasta Maria. Quando ocorre o sumiço da menina, é como se a madrasta tivesse conseguido pela primeira vez algo contra aquela que orientava sua vida. Os trechos da canção, que vêm ao longo da peça, são entrecortados em diferentes momentos, mas marcam sempre uma presença relevante, como que uma melodia de fundo para nos lembrar de um sentido que subjaz à cena principal ou ao que os diálogos expõem.

O refrão, que encerra a parte linguística da canção mas estende a sua melodia para a repetição infinita (a última nota não é exatamente a nota de repouso, mas deixa em aberto para retomar o mesmo verso do refrão, indefinidamente), traz melancolia total: espantar os passarinhos, mesmo após morta, é a tentativa de permanecer presente, como se ela tentasse evitar/espantar o que lhe causou morte (“xô, passarinho da figueira do meu pai”). Na canção, é como se a menina introjetasse o motivo criado pela madrasta para matá-la. Mas não se dá o mesmo na peça de Soffredini, já que a todo momento as atitudes opressivas de Joana não a fazem ter qualquer culpa.

As figuras centrais dessa narrativa (tanto do conto popular como da dramaturgia de Soffredini) são, portanto, essas duas personagens femininas: a menina e a madrasta. Todavia, o conflito e sua resolução não poderiam se dar sem a participação das duas personagens masculinas mencionadas: o pai quase não age na trama, mas sua ausência é condição para a morte da menina e ele (ou o que ele representa ali) é o pivô da disputa entre as duas mulheres; o jardineiro, que surge como resolução do afastamento pela morte, é o

receptor do canto da menina, já que ela não pode cantar para a própria assassina. No conto e na canção, é por meio da interferência de um elemento externo que a resolução acontece. Já na peça de Soffredini, o jardineiro é um coadjuvante no conflito central e na resolução, sendo maior a interferência do pai ao final. Sobre a punição para a madrasta, ao final das duas tramas, basicamente ocorre algo similar: ela perde sua moradia – sendo que na peça é mais terrível para a madrasta, que vai presa e termina com menos do que tinha antes. Vale notar, então, como esse aspecto da condução das ações também é alterado na peça de Soffredini, onde é a menina que conduz tudo na casa: além de administrar a propriedade, gere inclusive a vida do pai e do jardineiro.