• Nenhum resultado encontrado

4. A caipira desiludida no fim do século XX: análise da peça A Madrasta

4.5 Considerações finais: aspectos do melodrama

JOÃO - (de repente e incisivo) Toda história... cada personagem tem que cumprí o seu papel. E cada vez que se conta de novo a história, todo rei volta sempre pro seu trono, toda Maria volta sempre pro seu borralho.

(A madrasta, 1995, p. 18) MARIA - (diretamente para o público) Agora é que piorô! Hum... por baxo desse rio calmo tão correndo umas água bem turvinha... E não devia sê ansim... já que sô eu que conto a história, num divia de tê acontecidos que eu iguinore, né verdade?

(...) Sô pegada nessas história, viu? Assassino é talqualzinho aquele que conta, sem tirá nem pô: no momento que ele quisé, ele pode cortá a história do vivente!

(A madrasta, 1995, p. 23; e p. 34)

Gostaria de encerrar propondo uma reflexão sobre o gênero em que essa peça poderia ser classificada. Apesar de apresentar momentos cômicos e de alguma forma acabar retratando os costumes de um grupo, A madrasta não é um texto de comédia. O conflito central da trama nos faz pensar em drama, mas os diversos recursos épicos utilizados e a própria natureza do conflito para a protagonista afastam essa trama de um drama burguês ou psicológico. Os personagens, que se aproximam de tipos, ao assumirem papeis específicos dentro da organização que entre eles ali se estabelece, muitas vezes representando alguns dos papeis “cristalizados” mais comuns nas narrativas populares, não podem, todavia, ser reduzidos a tipos, já que a peça flerta com essa ideia de fixação, mas questiona exatamente a possibilidade de trânsito entre papeis pré-definidos e “esperados” de cada grupo social.

O autor avalia, ainda na abertura, esta peça como sendo “a reinvenção de um melodrama” (1995, p. 3). Vale lembrar que em 1988 ele havia recebido uma bolsa de

198

Robson Camargo (2005, p. 304) comenta essa cumplicidade explícita com a plateia ao discutir aspectos dos melodramas contemporâneos.

pesquisa com um projeto chamado “Melodrama Resgatado”, desenvolvido com o Núcleo ESTEP. Houve, portanto, um empenho do escritor (muitos anos depois do sucesso de Vem buscar-me que ainda sou teu, de 1979; e poucos anos depois de De onde vem o verão) nos estudos desse gênero e do jogo maniqueísta que é uma de suas características199. Esta dedicação parece ter sido retomada na forma da peça de 1995. De fato, melodrama é mesmo uma das classificações com as quais nos deparamos ao avaliar o trabalho realizado em A madrasta, um bom ponto de partida para começamos a aferir essa composição. Há, porém, aspectos que desconcertam/questionam o uso dessa categoria, como pretendo apontar.

Parece que esse texto dramatúrgico tenta reinventar, de alguma forma, o melodrama que beira, muitas vezes, os contos populares. Especialmente na especificidade do conflito entre as duas personagens mulheres e os diversos papeis mobilizados ali (rainha/princesa/madrasta/vilã). Dessa forma, para o centro da trama (nos conflitos entre as personagens Maria e Joana) parece-me que a avaliação pode ser precisa. Entretanto, os diversos recursos épicos que o dramaturgo utiliza e a própria caracterização dos personagens – principalmente na questão da narração, da protagonista que tenta conduzir sua vida mas que não consegue enfrentar barreiras sociais200 mais amplas que seu desejo – impedem que consideremos essa peça como um melodrama clássico (THOMASSEAU, 2005, p. 39). Ou ainda por conta de outros recursos, como a quebra do realismo em cena, por exemplo, na sugestão de cenário: se o autor indica na abertura da peça que haja no espetáculo “os velhos telões pintados do teatro clássico”, estes deveriam, todavia, ser “trocados às vistas do público” (1995, p. 3). Ou seja: há o referente do realismo clássico, mas há também o recurso de quebra201 de qualquer possível ilusão202, evidenciando que se trata de pinturas.

199

Sobre essa pesquisa, Soffredini tem diversas anotações, dentre elas um caderno no qual, por cerca de 20 páginas, anotou reflexões de estudo onde consta a ideia de uma peça sobre o embate melodramático entre uma indígena e os jesuítas e anotações sobre “brincar” com as posições fixas de galã e vilão, de bem e mal (nas palavras dele: “o bom fica mal, o mal, bom”). A tentativa, segundo essas anotações, seria de questionar aspectos que estão na base da mentalidade da cultura ocidental cristã, problematizando “os próprios valores estruturais do melodrama” (nas palavras dele).

200

Segundo Pavis, o melodrama “oculta os conflitos sociais de sua época, reduz as contradições” (2011, p. 239). Nesse sentido, em mais este aspecto, o texto de Soffredini se afasta do gênero, não podendo ser aproximado do melodrama se não como recriação da forma.

201

O mesmo ocorre nas cenas em que Maria chama o contra-regra para tirar-lhe o vestido, ou pega com ele uma cerveja para seguir contando a história enquanto bebe.

202

Robson Corrêa de Camargo discute em sua tese como o melodrama na modernidade e na cena

Cabe considerar ainda as enormes diferenças existentes se feita a comparação com outra peça do próprio autor: em Vem buscar-me que ainda sou teu diversos elementos do melodrama (e seus reaproveitamentos pelo circo-teatro) são estruturantes da trama. Já em A madrasta, não se mantêm os papeis fixos, que foram incorporados do melodrama em parte do teatro popular brasileiro (FARIA, 2013, p. 473), nem há, por exemplo, punição do vilão. Aliás, é exatamente essa questão que a peça problematiza: a tentativa de subverter uma ordem pré-estabelecida, de reelaborar as posições de cada personagem definidas nas narrativas populares dos contos. Porém, mesmo com essa tentativa de reordenação dos papeis, a ideia de universalidade dos conflitos203 vividos ali e das reflexões apresentadas (que também são características dessas narrativas) se mantém.

Nesse sentido, a estrutura de tempo e espaço da peça reforça essa ideia de universalidade, já que não localiza especificamente os acontecimentos. Na descrição inicial dos elementos que situam a trama, temos: “LOCAL: Qualquer um, entre a realidade e a fantasia. / ÉPOCA: Sempre” (1995, p. 4). É nessa esfera de indefinição (que acaba por generalizar e ampliar as situações para outros locais e momentos) que a peça se inicia. Assim, a abertura da peça leva o título de “Era uma vez...” (1995, p. 6) e a primeira fala do texto começa retomando a estrutura de contos populares, nessa narração e indefinição temporal/espacial204, com personagem falando diretamente para o público: “Diz que era...”205

(1995, p. 6).

matrizes distintas o melodrama se reorganiza, inclusive na remontagem de elementos épicos e líricos (2005, p. 298 e p. 304).

203

A ideia de universalização dos conflitos nessa peça é quase oposta à ideia que Pavis aponta como marca do melodrama, que seria, segundo ele, um “gênero traidor da classe à qual parece querer dirigir-se – o povo” por chancelar “a ordem burguesa” ao universalizar os conflitos e valores e produzir uma catarse que desestimularia qualquer reflexão ou contestação (2011, p. 239). Como procurei apontar, não é o mesmo que ocorre em A madrasta, já que os conflitos centrais da trama são exatamente em relação à ordem social engessada ali, que impede a criada de assumir outros papeis e o controle de sua vida. O foco da peça sendo exatamente nessa personagem e em suas reflexões e tentativas frustradas de se reposicionar naquela casa (microcosmo da sociedade) afasta o movimento catártico que encerraria a chance de uma reflexão crítica. Como dito, não há solução do conflito nem punição em prol da protagonista, portanto não há aprovação ou valorização da ordem burguesa, mas sim uma dura exposição de seus alcances enquanto manutenção do poder e das desigualdades sociais.

204

O roteiro de Hoje é dia de Maria, escrito por Carlos Alberto Soffredini, manteve essa escolha: o texto não deixa clara uma localização específica, nem temporal nem espacial. As diversas referências aos contos populares acentuam essa busca por uma indeterminação.

205

O recurso de atribuir a origem da narrativa a um outro foi usado por Cornélio Pires, em Conversas ao pé do fogo, e por Mário de Andrade em Contos de Belazarte.

Não há, portanto, marcas que permitam localizar especificamente onde ou quando se passa a história. Os vários elementos de composição dos personagens e dos cenários vão caracterizando a cultura popular e rural brasileira na trama criada (principalmente os traços da cultura caipira), mas sem nos permitir localizar alguma cidade em especial, por exemplo. As falas das personagens, principalmente da protagonista, indicam uma região identificada com as marcas do caipirismo, porém os traços de indeterminação temporal e espacial seguem fortes nessa obra.

Dessa forma, é interessante notar como esse texto da década de 1990 também traz uma valorização do universo caipira, mas de maneira muito diferente do que Soffredini havia feito na peça Na carrêra do divino, de 1979, cujo intuito é apresentar variados traços da cultura caipira das famílias do interior paulista, de um período determinado. Em A madrasta, trata-se muito mais dos conflitos sociais da personagem protagonista ao tentar questionar as limitações do lugar definido para ela naquele grupo – centro a partir do qual vários elementos do mundo rural brasileiro vão sendo incorporados para o desenvolvimento das ações. Inclusive no número de personagem essa concisão se mostra: não há mais a extensa lista de figuras como foi o caso da peça de 1979, nem a divisão do foco entre mais de um protagonista. Aqui, a peça toda se centra em cinco personagens, e não há dúvidas sobre o foco na protagonista Maria, claro desde o título. É nesse jogo, que há no conflito entre se aproximar da particularidade e ampliar as reflexões para o dado universal, que A madrasta se constrói.

Muito do que Soffredini pesquisou e aprendeu sobre o universo dos caipiras quando escreveu Na carrêra do divino foi aproveitado em seus trabalhos posteriores que também representam de algum modo a figura caipira. Porém, as reflexões aqui apresentadas parecem mostrar como muito do que ele experimentou na primeira peça dessa temática, em 1979, é retomado já a partir de outro lugar nos trabalhos posteriores. Em Na carrêra havia um desejo em criar uma referência artística que se diferenciasse do paradigma negativo tão estigmatizado com os textos de Monteiro Lobato sobre o Jeca Tatu. Nos trabalhos da década de 90 (no Auto de Natal caipira e em A estrambótica aventura da música caipira, mas também no roteiro de Hoje é dia de Maria e na peça A madrasta) esse já não é mais exatamente o ponto central. Especialmente nas duas últimas produções, a pesquisa de Soffredini mergulha no universo da cultura popular, registrado por Câmara Cascudo e Sílvio Romero a partir das narrativas orais e trabalhado literariamente por Valdomiro Silveira em seus contos. Isso inclui referências que não são apenas do universo do caipira paulista, como

foi antes o foco em Na carrêra do divino, conforme comentei no capítulo 2 – o estudo de Antonio Candido, a pesquisa linguística de Amadeu Amaral, e ainda obras como a de Cornélio Pires. Talvez essa ampliação do horizonte para outros referentes brasileiros que tratam do homem rural já estivesse presente nas duas peças que nomeei como intermediárias, comentadas no capítulo 3, que incluem referências a músicas e personagens que extrapolam a região do sudeste, mas ainda tratam das relações sociais e culturais do homem não urbano.

Sobre o trabalho com a linguagem, o cuidado de Soffredini com a composição das falas de cada personagem se mantém: ele procura representar o dialeto popular rural claramente, mas não de maneira ridicularizada ou estereotipada. Por mais que haja, às vezes, humor ligado à linguagem. Notamos o aproveitamento nesse texto de algumas palavras ou frases que ele utilizou na caracterização de seus primeiros personagens caipiras (por exemplo: “bota tenção no que le digo”, “ansim”, “qu’isperança”, “ponha”)206

. O que parece haver menos, nessa peça de 1995, são os registros de oralidade para a pronúncia de algumas palavras – o que era uma marca constante em Na carrêra, aqui aparece em menor quantidade, marcando especialmente mais em alguns casos, como a pronúncia dos verbos, do que em outros207. De toda forma, o trabalho alcançado com a sintaxe das falas e as variações características entre os personagens parece ter se mantido, como se nota na variação linguística usada pela personagem Purnica, ou pelo jardineiro, ou mesmo nas alterações da fala da Maria, ao final da peça. Nota-se também que o escritor incorporou ao seu texto diversas expressões comuns nos contos populares, resultado do seu estudo dessas obras208: vocabulário mesmo ou expressões típicas da descrição da passagem do tempo nesses contos, como é o caso da formulação “o sol já pendia” (1995, p. 36; anotações do escritor, p. 3), ou termos populares para se referir a algo do mundo letrado, como “de tinta e papel”, que Maria usa duas vezes (1995, p. 19 e p. 59; anotações do escritor, p. 2).

206

Luiz Fernando Carvalho manteve muitas dessas marcas na gravação da minissérie, inclusive nessas expressões mencionadas.

207

A marca de acentuação no final de verbos no infinitivo se mantém, para indicar a força no som da vogal e não a pronúncia do R final (como em “falá”). Porém algumas vogais que em Na carrêra do divino eram registradas na grafia, para marcar a oralidade específica com que devia ser dita, em A madrasta, às vezes, são mantidas (é o caso de “siguro”, para a primeira peça, e “segurá” para a segunda).

208

Soffredini tem diversas páginas com anotações de estudo para a criação dessa peça; especificamente sobre vocabulário há uma lista com 5 páginas de termos retirados dos contos populares.

Outros elementos descritivos da cultura caipira são também retomados para caracterizar o modo de vida dos personagens de A Madrasta, como a relação entre alguns elementos da flora e traços da religiosidade. Mas a caracterização dessa cultura popular é feita de maneira mais “vaga”, difusa, do que em Na carrêra, ou seja, sem determinações que localizem historicamente e geograficamente onde se passa a história. As referências aos contos populares, nesse sentido, são muito marcantes para essa diferença no tratamento do universo rural e popular entre essas duas obras. A estrutura narrativa dos contos é muito aproveitada para a construção da peça A Madrasta, na qual Carlos Alberto Soffredini registrou, inclusive, um agradecimento no início do texto a Luiz Fernando Carvalho, por lhe ter estimulado a revisita aos contos populares.

Apesar dos referentes externos estarem mais difusos, há, nas formas poéticas e populares escolhidas, uma interessante crítica aos modos de organização da sociedade brasileira. Entendo que não seja um teatro descompromissado com o social, como já se disse. Na carrêra do divino e A madrasta, para mencionar as duas peças nas “pontas” do meu recorte, são textos em que o autor vai explorar à exaustão as possibilidades de inter- relação da ação dramática com a narrativa, unindo essas duas formas em um todo complexo, de lógica própria – que, como procurei defender aqui, vale ser investigada pela crítica.