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A Ética Capitalista e o Espírito da Contracultura

Capítulo III – A Superfície e o Subterrâneo

2. A Ética Capitalista e o Espírito da Contracultura

O discurso romântico, entendido em sentido lato, e demais correntes filosóficas nele inspiradas durante os séculos XIX e XX, foram uma resposta à cisão do ser humano e da natureza perpetrada pelo mecanicismo e, como é óbvio, pelas correlativas transformações no plano social desencadeadas pelo advento do capitalismo.

As duas coisas estão intimamente ligadas: em detrimento da qualidade, a quantidade passou a predominar na descrição do universo e também nas formas pelas quais a economia e a política se organizaram; mundo e homem passaram por um processo de desencantamento do qual, ao fim e ao cabo, restaram os números, entidades abstratas e sem vida. A razão, reduzida que foi a uma entidade no interior do psiquismo humano, do qual deve se assenhorear, de preferência mantendo uma distância segura, traduziu-se na única forma de conhecimento legítima; conhecimento que costura sua infalibilidade pelo desprezo do imponderável tanto nas equações matemáticas quanto nas próprias relações humanas.

Não foi, é claro, meramente contra a descrição do mundo mecanicista que tais correntes se posicionaram, pois o processo de sedimentação da razão não se deu apenas na esfera do labor intelectual stricto sensu; trata-se, antes, de um processo que se estendeu do universo político ao econômico, do jurídico ao educacional, do social ao psíquico, não necessariamente nessa ordem; um processo de racionalização da existência que Norbert Elias, por exemplo, denomina “civilizador”.574

Para ele, sua dinâmica teve início na Baixa Idade Média, com a paulatina centralização política e, a ela associada, a formação das cortes. Foi no seu interior que a nobreza “civilizou-se”, pois, para manter seus privilégios e conquistar outros, teve que, em primeiro lugar, abdicar da espada como fiel da balança de suas querelas habituais, confiando-a ao monarca que, entre outras novidades, monopolizou a violência legítima.

A espada deixou de ter grande valia em uma conjuntura na qual a dispensa de favores pelo potentado, aparentemente arbitrária, pautava-se em uma “ética” cujo conhecimento e obediência, pela nobreza, traduzia-se, por via de regra, na sua conquista. Ser bem-sucedido econômica e politicamente passou a implicar muito menos o arrojo e a

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destreza bélica e muito mais a paciência, a persuasão, a intriga, a diplomacia; ser bem- sucedido no alvorecer da modernidade passou a implicar, antes de mais, o sacrifício do presente em prol do futuro, do ímpeto em prol da moderação, em suma, dos instintos em prol da civilidade, conferindo um poder cada vez maior ao superego, a contrapartida psíquica de um rei que, ao dispensar a justiça e também favores, recebia em troca a obediência absoluta de homens que, pouco antes, prefeririam a morte a sujeitar-se a outrem.

O adiamento, a paciência, a autocensura e a sublimação, características do processo civilizador nas cortes, estendeu-se paulatinamente à burguesia ansiosa em participar dos círculos de poder dos quais, em função de seu sucesso econômico, se considerava merecedora, mimetizando e incorporando, ao seu modo, a polidez e a etiqueta aristocráticas, com as quais pretendia perfurar as muralhas da segregação.575

Disseminação que se estendeu, sobretudo a partir da revolução industrial, para as demais camadas sociais concentradas na urbe: a classe média e o proletariado, pela “universalização” da educação elementar fomentada pelo projeto iluminista ou através da disciplina do corpo e das ações no interior das fábricas – em ambos os casos, com a perpétua vigilância da esfera jurídica e policial. De uma ou outra forma, o comportamento passou a ser guiado pelo superego, pelo controle internalizado, racional, sobre as pulsões naturais, coagindo a espontaneidade a retirar-se para os subsolos do inconsciente, da prisão ou do manicômio e instaurando a estandardização comportamental, em outras palavras, a homogeneização do que, in natura, é diferente e singular – o ser humano.

Homogeneização que, sob uma perspectiva crítica, não se definiu meramente como a igualdade jurídica decantada pelo liberalismo, mas, sobretudo, como redução do que, em si, é único, à condição de um número na série imensa denominada humanidade e passível, portanto, de ser estudada e manipulada estatisticamente, de acordo com os fins racionalmente definidos pela razão de Estado.

Max Weber lida com o mesmo problema ao apontar, entre outras coisas, o ascetismo religioso da Reforma como uma das raízes remotas do capitalismo, pois dele

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emergiu o “espírito” que passou a governar as ações econômicas na modernidade.576 À ética da dissipação, encarnada principalmente pela nobreza e sancionada pelo tradicional menosprezo público ao “vil metal”, a nova mentalidade, cognominada burguesa, foi uma decorrência, segundo o autor, do fulcro doutrinal calvinista, a tese da soberania absoluta de Deus, que desloca o livre-arbítrio para o papel de coadjuvante no interior do drama da salvação ao elevar a predestinação ao papel principal.

Ao destino entendido como imutável e conhecido em sua integridade apenas pelo criador, vincula-se, contudo, a crença de que Deus gratifica os eleitos com sinais de sua escolha, entre os quais a prosperidade e a vida santificada que, na vida prática, correspondem ao progresso profissional e econômico associado à moderação e à parcimônia.

Inaugurava-se uma prática na qual o rogo ao criador, por ineficaz, deu lugar à labuta e à acumulação; isolado de um Deus que, desde priscas eras, afastou-se de sua obra para do alto contemplá-la, restava ao crente glorificá-lo cumprindo com alegria a sentença proferida no momento da expulsão da humanidade de seu convívio, qual seja, “com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado.”577 O trabalho, de maldição, transformou-se sob o calvinismo em bênção e a acumulação, de pecado, em sinal de eleição – sinal que, na intimidade do crente, se traduz em certeza quando acompanhado por uma vida santificada, ascética.

Para Weber, uma vez inaugurado o espírito que passou a presidir a mentalidade capitalista, ele aos poucos se difundiu dos grupos calvinistas para os demais grupos religiosos, inclusive o católico, perdendo nesse percurso sua conotação teológica; conservando, porém, a glorificação do trabalho, do adiamento do prazer e da acumulação econômica, cuja lógica passou a ser concebida como racional e, portanto, independente da destinação divina: no lugar da roda da fortuna, a competência e o esforço individuais aos poucos se consagraram como a única explicação do sucesso e do insucesso profissional e econômico, inaugurando um novo teatro em cujo palco os principais papéis seriam representados pela meritória burguesia.

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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 12ª ed. São Paulo: Pioneira, 1997. 577

Desencantado pelo afastamento de Deus, o universo social passou a ser governado pela lógica econômica, segundo a qual a competência e não a origem é que determina a condição de cada participante no drama da existência; ao contrário da sociedade tradicional, na qual cada ordem vinculava-se organicamente com as demais, na nova hierarquia cada um é responsável por si e a solidariedade deve, na sociedade complexa, resultar do planejamento racional, a cargo de especialistas convocados e liderados, novamente, pela burocracia estatal.

Para Marx, o processo do qual resultou o mundo no qual “tudo o que era sagrado foi profanado”578 foi liderado pela vitoriosa burguesia revolucionária surgida dos estertores do modo de produção feudal. Foi ela que, nos alvores do capitalismo, implantou novas formas de produção nas quais a divisão do trabalho substituiu a tradicional produção artesanal, destituindo os novos operadores das máquinas de sua condição autoral no processo produtivo, fetichizando as mercadorias e reificando o ser humano.579

No interior da dinâmica capitalista, cada objeto produzido “herda” seu valor monetário do labor despendido pelo conjunto da labuta do proletariado, passando, contudo, a obedecer à lei da oferta e da procura, isto é, ao “valor de troca”; a essa dinâmica, o próprio trabalhador foi inserido ao se transformar em um item substituível pela racionalização da produção no interior da fábrica e pela divisão social do trabalho. Perdeu, por conseguinte, sua “humanidade”, seu valor intrínseco, metamorfoseando-se em mera peça de uma engrenagem cujo funcionamento obedece a uma racionalidade que lhe escapa, por ter sido expropriado de sua condição de sujeito no processo produtivo, instaurando uma lógica que define o grau de sua alienação.

A condição de coisa, de mais um item no interior de uma dinâmica que funciona com base no valor de troca, não é, no capitalismo, apenas do proletariado; ela se desdobra, desde sua base material, enquanto produção e enquanto produto, na mentalidade que se transformou na ideologia por excelência, o liberalismo e outras correntes dele derivadas. Ideologia que, ao falar das liberdades individuais, a rigor camufla o fato de que a única liberdade existente é a da circulação de mercadorias, incluindo a humana e que, ao falar de igualdade, jurídica, escamoteia a real diversidade

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MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 579

MARX, Karl. A mercadoria. In: O capital: crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. V. 1. pp. 43-78.