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Capítulo III – A Superfície e o Subterrâneo

1. As Luzes e as Sombras da Razão

1.2. A Perene Filosofia do Subterrâneo

A essa imagem da razão como luz é pertinente associar as sombras dela derivadas, as quais, não podendo permanecer na superfície, infiltraram-se nos subterrâneos, dos quais eventualmente emergem para assombrar a sua contrapartida. Sua sobrevivência, ainda que nas catacumbas do ocultismo, da arte ou do inconsciente, revela que a razão não foi capaz de exterminá-las por um motivo muito simples: elas se constituem como o seu duplo, o adversário sem o qual a peleja cessa, extinguindo o discurso racional.

A esfera irracional – mágico-religiosa, hermética, espiritualista, astrológica, alquímica, esotérica, imaginativa, instintiva etc. – apenas deixou de conviver, sob o mesmo teto, com o pensamento racional, compartilhado por ambas até o Iluminismo. Antes da separação, referida por Weber,499 em esferas axiológicas distintas, razão e magia, mundo natural e sobrenatural, arte e ciência eram igualmente objetos legítimos da especulação intelectual, sendo seu pano de fundo a teologia e a filosofia. Paolo Rossi reconhece, ao discutir o declínio da astrologia, que:

individual da história, a primazia do coletivo sobre o individual, a ausência da ética individual. Ele rejeitou o conteúdo teológico, metafísico e qualquer conteúdo ético que o sistema tenha, sua tendências pan- psíquicas, a identidade da lógica e do ser – e traduziu a dialética em um princípio de revolução econômica e política.” HARTMAN, Robert S. Introdução. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op cit. p. 20.

496

Incluindo a natureza humana, objeto de estudo da biologia, da psicologia, da antropologia etc. 497

Vide: CAPELLARI, Marcos Alexandre. Op. cit. 498

Cf. projeções de Hegel. 499

De acordo com Rouanet, “A modernização cultural é o processo de racionalização das visões do mundo e especialmente da religião. Em conseqüência desse processo, vão se diferenciando esferas axiológicas (Wertsphären) autônomas, até então embutidas na religião: a ciência, a moral e a arte.” ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. Op. cit. p. 231.

Os resultados a que chega a nova astronomia, enquanto puras e simples ‘descobertas’ astronômicas, não foram suficientes para destruir a astrologia. A sua história continua bem além de Copérnico [...] e, por mais de um século, entrelaça-se profundamente com as pesquisas de astronomia e de ciência da natureza, com a reflexão filosófica e com os movimentos da cultura.500

Mencionando Copérnico e Kepler, os “dois grandes fundadores da astronomia”, o autor aponta a presença de “temas ‘solares’ ou hermético-ficinianos” no primeiro e o “pitagorismo e a astrologia” no segundo, considerando, por fim, que “essas cosmologias constituíam uma espécie de ‘etapa intermediária’ entre a antiqüíssima visão mágico- simbólica do mundo e uma consideração quantitativa e mecânica das forças presentes na natureza”.501

Descartes, um dos fundadores do método racional moderno, “identificava a causa do movimento (e a constância da quantidade total do movimento no mundo físico) com a vontade de Deus”, “contexto metafísico-teológico” que Newton expurgou, laicizando “radicalmente o princípio da inércia, tornando-o um axioma neutro, ametafísico”.502 Da “acolhida da física newtoniana ao longo do século XVIII” resultou, para Paolo Casini, “o declínio da metafísica”, do qual, “no plano epistemológico, Condillac, d’Alembert, Hume e Kant se encarregaram de tirar as conseqüências [...], denunciando a inanidade da pseudociência metafísica, doravante indefensável [...].”503 No entanto, ao próprio Newton não eram estranhas as especulações metafísicas:

Newton interrogou sem tréguas as relíquias veneráveis dos antigos sábios, investigou a realização das profecias de Daniel e do Apocalipse, aprofundou-se no turbilhão da cronologia sagrada e profana, experimentou os símbolos e as receitas dos alquimistas. Eram os restos de um saber que a sua própria ciência da natureza tornava obsoleto.504

500

ROSSI, Paolo. Op cit. p. 32. 501

Idem, p. 33. 502

CASINI, Paolo. Newton e a consciência européia. Op. cit. p. 55 503

Idem, p. 60. 504

Antes, portanto, do “corte epistemológico” desencadeado por sua física, o próprio Newton “se situou inicialmente no universo dos Adeptos” da alquimia, a qual “por sua exigência de coerência e de precisão, por seu culto à verificação experimental e quantitativa”, acabou subvertendo. A rigor, enquanto os “Adeptos recorriam de modo sistemático à imaginação simbólica, multiplicando as alusões codificadas e as analogias mais singulares”, método do qual “resultavam obras individuais, isto é, difíceis de decifrar, pois escapavam a um real controle coletivo”, para a nova “filosofia experimental” o discurso passa a ser público: “os conceitos e os enunciados deveriam ser exatos, capazes de serem compreendidos por todos e de ser testados através de um trabalho coletivo”.505

O discurso mágico-religioso, no limiar da modernidade, não era ainda ilegítimo para os “pais fundadores” da ciência; nem, a princípio, se encontrava de todo apartado dessa reflexão que, em seguida, constituir-se-ia como autônoma em relação a ele, monopolizando por fim o direito de explicar o universo. Sua ilegitimidade foi desencadeada por um processo que, em Galileu, por exemplo, reduziu “o texto sagrado ao plano das verdades morais”,506 ao passo que a natureza, na qual Deus escrevera o seu livro em “linguagem matemática”, seria passível de ser conhecido por intermédio de sua decifração lógica.507

As especulações “mágico-simbólicas” mencionadas por Paolo Rossi eram a expressão, no Renascimento, de uma tradição antiga “presente entre gnósticos e hermetistas” e que “no medievo pode ser encontrada entre diferentes grupos cristãos como, por exemplo os cátaros.”508 Uma tradição que enfatizava a “importância da iluminação interior ou sabedoria (gnosis): uma experiência reveladora do encontro do

505

THUILLIER, Pierre. De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 170.

506

ROSSI, Paolo. Op. cit. p. 109. 507

Matematização que marcou “as diferenças de perspectiva entre Bacon e Galileu” e que “seria seguida por Isaac Newton, na segunda metade do século XVII”. SOARES, Luiz Carlos. Op. cit. p. 21.

508

SILVA, Eliane Moura. O ocultismo do século XIX. Textos didáticos,IFCH/UNICAMP, n. 44, agosto de 2001. p. 4. A autora considera que “a tradição das correntes espirituais esotéricas ocidentais só pode ser compreendida dentro de um vasto conjunto greco-latino medieval no qual coabitaram as religiões judaica e cristãs, visitadas pelo islamismo durante muitos séculos e que se estruturaram no Ocidente desde o final do século XV. Somente então começou a ser reunida uma série de materiais antigos sobre formas de religiosidade helenísticas (estoicismo, gnosticismo, hermetismo, neopitagorismo, neoplatonismo) em um conjunto homogêneo com as três religiões abraâmicas.” Idem, p. 9. Especificamente sobre a heresia cátara, combatida pela “Cruzada Albigense”, vide: RIBEIRO JR., João. Pequena história das heresias. Campinas: Papirus, 1989.

verdadeiro ser pessoal com o Absoluto, o Ser Superior, Deus.” Tradição que, contudo, passou a ser combatida tanto pela Reforma e pela Contra-Reforma quanto pela racionalidade iluminista, fazendo “da Filosofia Hermética, em suas conexões com alquimia, magia e astrologia, uma abordagem sem suporte científico e sob suspeita religiosa.”Excluída da superfície da legitimidade, essas correntes continuaram, no século XIX, “em novas formas tais como o Rosacrucianismo e a Teosofia Cristã, florescendo também em associações secretas com a Franco Maçonaria.”, exercendo, sob novas roupagens, “profunda influência tanto entre filósofos, espiritualistas, místicos, ocultistas, mesmeristas como entre escritores, músicos e pintores.509

Nesse século, segundo Eliane Moura Silva, esses movimentos, por um lado “aproximaram-se mais do pensamento científico do que das tradicionais questões religiosas da fé, verdade e esperança” e, de outro “superaram a dicotomia entre criação e criador com uma nova concepção de Universo dividido em vários níveis no qual o Espírito atuaria dentro do mundo material [...]”510 distinguindo-se, portanto, e ao mesmo tempo, da visão religiosa e da ciência dominantes.

Constituíam-se assim, à sombra das luzes do cientificismo, veios subterrâneos, esotéricos,511 cuja explicação do mundo vinculava-se “a uma disciplina pré-existente, de natureza exegético-teológica, astrológica ou especulação alquímico-científica”, permeada pela “crença de ser a Prisca teologia, a philosophia perennis, vinda da imemorial antigüidade, da mais arcaica tradição, em plena época do progresso e da ciência.”512 Veios derivados do “saber construído lentamente no século XVI” que propunha “essencialmente, uma articulação da metafísica com a cosmologia” e por meio do qual estruturou-se “um corpo teórico multiforme com certas características fundamentais”, resumidas pela autora como segue:

1) Correspondências: existiriam correspondências simbólicas e reais entre todas as partes visíveis e invisíveis do universo. Encontramos a idéia de microcosmo/macrocosmo, o princípio da interdependência universal tal como foi expressado no Hermetismo. O universo inteiro

509

SILVA, Eliane Moura. O ocultismo do século XIX. Op. cit. pp. 4-5. 510

Idem, p. 7. 511

Ainda segundo a autora “As palavras ‘esoterismo’ e ‘ocultismo’ e seus cognatos apareceram, como derivadas de seus adjetivos, no segundo quartel do século XIX”. Idem, pp. 13-14.

512

seria um grande conjunto de hieróglifos a decifrar, de signos ocultos e misteriosos. Existiriam correspondências entre o mundo visível e o invisível, o celeste e o supraceleste, por ex., entre os sete metais e os sete planetas, os planetas e as partes do corpo, o caráter ou a sociedade (fundamentos da astrologia). Haveria também correspondências entre o Cosmo, a história e os textos revelados, uma verdadeira harmonia entre as Escrituras e a Natureza; 2) Natureza viva: o Cosmo como um complexo hierarquizado, multiforme, onde a Natureza ocupava um lugar privilegiado. O termo Magia evocava esta idéia de natureza viva, conhecida, habitada por um fogo ou luz circulando nela, estabelecendo uma rede de simpatias ou antipatias, perceptíveis, controláveis e modificáveis pelo conhecimento da magia naturalis; 3) Imaginação e Mediações: derivam da noção de correspondências, supondo uma forma de imaginação por mediações de todos os tipos: rituais, imagens simbólicas, talismãs, seres ou espíritos intermediários, angelologia. A imaginação seria um instrumento de conhecimento de si, do mundo, dos mitos, o olho de fogo furando a casca das aparências, fazendo brotar as relações e significados ocultos. 4) Experiência da Transmutação: no sentido de metamorfose através de um conhecimento iluminado, uma via mística por excelência em suas três fases: purgação, iluminação e unificação, tanto da Natureza como do próprio experimentador. É o ponto de contato com a alquimia.

Existiriam também mais dois elementos relativos ao lado dos quatro anteriores: 1) Prática da Concordância: o estabelecimento de denominadores comuns entre tradições diferentes para alcançar uma iluminação de ordem superior. Supõe a existência de um único e arcaico tronco do qual todas as tradições místicas, religiosas ou filosóficas seriam apenas ramos visíveis. Surge daí a idéia de Tradição Primordial, de Harmonia Universal, comum a todas as formas de pensamento indicando um caminho de iluminação; 2) Transmissão: ênfase na noção de transmissão de conhecimento entre mestre e discípulos bem como um processo de iniciação, a base, por exemplo, da gênese de sociedades iniciáticas e secretas modernas.513

Nesses veios subterrâneos, esotéricos, desaguaram as correntes filosófico-religiosas orientais, ainda no século XIX, sobretudo pelo “fato de que nem hinduísmo nem budismo na forma como foram conhecidos e divulgados, faziam divisão entre as dimensões espirituais e o mundo profano, apresentando uma espiritualidade sem o moralismo condenatório do cristianismo”, sendo “reinterpretadas no ocidente sem rejeitar a ciência e a mente, mas alternando explicações metafísicas com racionalismo”, do mesmo modo que “sufismo, hassidismo, cabala, alquimia, hermetismo, o misticismo cristão de

513

Böehme, Meister Eckhart, Hildegard de Bingen entre outros, foram absorvidos e dissolvidos em visões cósmicas e um poderoso simbolismo mítico.”514

À esfera pública, palco tanto das religiões dominantes quanto da ciência, se opunha a esfera subterrânea, esotérica, de um saber que, não obstante, em algumas de suas vertentes procurou se legitimar através da fusão de seus elementos religiosos com o conhecimento científico, como foi o caso, por exemplo, do kardecismo515 e de outras correntes espiritualistas fundadas entre o final do século XVIII e no decorrer do XIX.516

Opondo-se à rígida distribuição dos espaços da legitimidade e da ilegitimidade, o kardecismo, por exemplo, construiu um sistema que assimila, de um lado, o dualismo cartesiano, o “experimentalismo” e a predominante concepção evolucionista de Darwin, à sua versão do cristianismo, incorporando ainda os conceitos de karma e de reencarnação, oriundos do sistema de crenças indiano. O mundo é, para os kardecistas, um palco no qual se desenrola a evolução dos espíritos encarnados sob a lei universal de causa e efeito do karma; material e mecânico, em oposição ao puro espírito de Deus, com ele não se confunde, da mesma forma que o corpo não se confunde com o espírito individual e imortal que o habita; por fim, palco que é da evolução espiritual, nele se processa o aperfeiçoamento das instituições, cuja perspectiva é a progressiva libertação de todas as imperfeições e mazelas que, até então, caracterizaram a tragédia humana.

Depurando-se de seus veios místicos, o kardecismo procurou seu espaço na superfície da legitimidade pelo intercurso da racionalidade dualista e do ideal de progresso, sofrendo, no entanto, a obstinada oposição da ciência dominante que não vê, nas evidências apresentadas sobre a sobrevivência da alma e nos contatos de vivos e mortos, senão uma forma de mistificação consciente ou inconsciente do real.517

514

Idem, pp. 7-8. 515

Vide CAPELLARI, Marcos Alexandre. Op. cit. 516

Eliane Moura. O espiritualismo no século XIX. Textos didáticos, /IFCH/UNICAMP, n. 27, agosto de 1999.

517

Sobre o assunto vide: CAPELLARI, Marcos Alexandre. Sob o olhar da razão. Op. cit. e SILVA, Eliane de Moura. O espiritualismo no século XIX. Op. cit.