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Capítulo III – A Superfície e o Subterrâneo

1. As Luzes e as Sombras da Razão

1.5. A Caverna de Dionísio

Para Nietzsche, a doença da modernidade é o niilismo.

Não é, como afirma a filosofia de Schopenhauer, da renúncia à vontade que deve resultar a libertação do ser humano; pelo contrário, a renúncia a ela é, segundo Nietzsche, a história do processo civilizador cuja dinâmica se esgotou com a “morte de Deus”, instaurando a decadência da cultura ocidental.

A renúncia à vontade originou-se, para Nietzsche, quando “começamos a representar-nos como um animal diferenciado, superior aos demais”, pois, para tanto, “tivemos de inventar um ‘outro lado’ da animalidade – um espírito, uma alma, uma razão

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Idem. p. 35. 557

– e afirmá-lo contra a animalidade, recusando e negando tudo aquilo que, em nossas vivências, constituísse este nosso lado ‘natural’: instintos, afetos, desejos etc.”558 Para ele, toda civilização que tenha se distanciado da animalidade formou-se com base no ideal ascético, de negação da vontade de potência, dos impulsos naturais que levam o homem não apenas a “querer viver” como, sobretudo, a “querer mais”. Distanciamento liderado não pelos fortes, mas “por aqueles que, na Natureza selvagem, eram sobrepujados e dominados” por eles, ou seja, os mais fracos.559

Daí a diferenciação que ele faz entre “moral de senhores” e “moral de escravos”, pois ao contrário dos fortes, que valorizam “a luta e a conquista”, considerando os “inimigos como ruins”, os fracos “inventam um padrão de medida artificial, a igualdade universal, para servir de critério de ‘bem’”, considerando os “impulsos naturais o ‘mal’ sobre a terra.”560 Das duas, a “moral de escravos” se fez dominante desde os primórdios da civilização, traduzindo-se no dualismo “entre alma e corpo, entre bem e mal, entre o ‘reino dos céus’ e o ‘reino da terra’.”561

A despeito da predominância dessa moral e do dualismo dela resultante, segundo Fernando Costa Mattos “o processo civilizatório não é visto por Nietzsche como unicamente negativo: embora tenha aprisionado o homem na jaula da consciência, ele teve a virtude de proporcionar um sentido à nossa existência [...] a partir do qual puderam surgir nossas grandes realizações culturais”, pois “[...] embora negando a vida, a humanidade ao mesmo tempo a afirmou, pois ter uma ‘justificativa’, um ‘ideal’, significa ter algum padrão de medida [...] para a partir dele exigir mais do homem [conferindo-lhe] um movimento ascendente, de ‘auto-superação’ e incessante crescimento.”562

O problema é que, com a “morte de Deus”, isto é, a destituição da religião de seu posto dominante na sociedade européia do século XIX e a própria secularização da vida humana, “os grandes ‘ideais’, as grandes ‘justificativas’, os grandes ‘sentidos’ perderam a credibilidade e se instalou a crise dos valores chamada de niilismo.”563 Ou seja:

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MATTOS, Fernando Costa. A doença da civilização. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 72. 559 Idem, p. 73. 560 Idem, Ibidem. 561 Idem, p. 74. 562 Idem, Ibidem. 563 Idem. p. 75.

[...] o maior problema da modernidade ocidental, a causa de sua atual doença, não seria tanto o pertencimento à tradição judaico-cristã, mas o fato de ela representar a decadência dessa tradição, aquilo que seria o seu melancólico final. Como, por outro lado, a origem remota da moléstia estaria naquela forma paradoxal pela qual o ideal ascético desde o princípio deu sentido à vida – recorrendo a um outro mundo, inteiramente artificial, como seu padrão de medida –, então fica claro que a “cura” da doença, se houver alguma, jamais poderá consistir no reavivamento dessa mesma tradição, no resgate dos seus valores ou algo do gênero.564

Em oposição ao pensamento niilista, essa “espécie de lógica, que consiste em negar este mundo em que existimos em nome de outra coisa (um reino moral à moda de Kant ou um mundo inteligível ‘platônico’)”,565 Nietzsche prescreve a postura dionisíaca, de afirmação da vida, como única saída possível para a decadente civilização ocidental:

Daí que o princípio dionisíaco, isto é, o princípio de uma “afirmação incondicional da vida”, possa ser visto como o novo critério, o novo fio condutor a orientar nosso pensamento criador [...]. Se o erro fundamental do princípio oposto – o apolíneo ou ascético – estava em assumir uma perspectiva externa ao mundo e à vida para julgá-los, é preciso inverter essa ética e assentar no interior do próprio mundo, nos elementos naturais de nossa existência, as bases valorativas a partir das quais possamos não exatamente julgá-la, mas antes justificá-la, reafirmá-la e reassegurá-la de suas mais elementares prerrogativas – como, por exemplo, o “querer mais” do “forte”, aquele egoísmo saudável e aquela natural sede de dominação que se encontravam sufocados, reprimidos, sob a tirania universal do igualitarismo cristão [...].566

A “afirmação incondicional da vida”, ou seja, dos elementos naturais da existência, como os instintos, implica, para Nietzsche, a autonomia do indivíduo na elaboração dos valores a eles associados, pois a cura do niilismo não significa a substituição do ideal ascético pela animalidade. Não podendo mais contar, pois, com as verdades universais, nem com os valores intrínsecos a elas, resta ao novo ser humano a alternativa de ser, ele próprio, o criador dos novos valores, ou seja, para “curar-se de sua doença, que é a doença da época, o indivíduo não tem a quem recorrer, senão a si próprio [...].”567 A

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Idem, Ibidem. 565

BRANDÃO, Eduardo. Nietzsche: tipos psicológicos. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 56. 566

MATTOS, Fernando Costa. A doença da civilização. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 76. 567

liberdade, para Nietzsche, não é um presente que, uma vez recebido, conserva-se para todo o sempre intacto; ela é a resultante provisória da perpétua luta contra toda e qualquer forma de sujeição; razão pela qual, segundo ele “[...] o tipo de homem livre é guerreiro. A conquista da liberdade é um constante lutar por ela, jamais sua cristalização – o que ocorre, por exemplo, nas instituições liberais (que, assim, nivelam os homens, como no socialismo).”568

Com Nietzsche, assim como no existencialismo entendido de forma extensa, o indivíduo é concebido como responsável por seu destino, não podendo se refugiar na crença de que, acima e abaixo dele, Deus, a história ou o mundo natural determina suas ações. A autonomia do indivíduo, contudo, não é herdada; ela deve ser conquistada, uma vez que a própria subjetividade, como o mundo na qual está inserida, é fluida e escorregadia. O “eu”, para ele, é um construto que, muito embora necessário, não deixa de ser uma ilusão criada pela linguagem:

[...] ao fazer de uma palavra – “eu” – um objeto a ser investigado, teríamos incorrido numa espécie de armadilha da linguagem, graças àquilo que ele denominou “crença na gramática”. Induzidos pelo uso que fazemos das palavras no dia-a-dia, somos levados a substituir as circunstâncias concretas da vida pelas relações que estabelecemos, segundo as regras da gramática, entre as palavras da linguagem, criando assim a idéia de que a cada uma deveria corresponder algum objeto real no mundo.569

Uma ilusão na qual tanto Descartes quanto Schopenhauer se enredaram, pois ambos “embora caminhando em direções aparentemente opostas, incorreram no mesmo tipo de simplificação grosseira” ao conceberem o “eu” de forma análoga aos demais objetos representados pelas palavras. Para Nietzsche, quando “dizemos ‘eu penso’, há um processo em andamento que envolve toda uma variedade de elementos, inclusive impulsos fisiológicos de caráter volitivo; e onde dizemos ‘eu quero’, há também um complexo processo que envolve elementos diversos, inclusive os chamados ‘pensamentos’.”570

568

BRANDÃO, Eduardo. Nietzsche: tipos psicológicos. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 58. 569

MATTOS, Fernando Costa. Novas imagens do “eu”. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 66. 570

A linguagem, matriz da ilusória crença na capacidade de compreender o “eu” e, por extensão, as verdades últimas, deriva seu poder do fato de ter sempre funcionado como um instrumento privilegiado de domínio da natureza e do homem, sendo essencial na organização social. Para Nietzsche, contudo:

[...] o fato de termos controle sobre algo não significa que temos conhecimento desse algo, no sentido forte de saber o que esse algo “realmente significa”. [...] Não se trata, note-se bem, de questionar a validade do “conhecimento científico” [...], mas de salientar seu caráter interpretativo e suas limitações no que diz respeito às perguntas últimas da filosofia [...].571

Para ele tudo não passa de interpretação promovida pela linguagem, que não é senão um sistema simbólico constituído de “metáforas e metonímias” por intermédio das quais lidamos com o mundo, fato que não reduz sua importância, pois é através de sua instrumentalização que a realidade é controlada e também por seu intermédio que, “à revelia de sua própria indecifrabilidade” é conferido “o tal significado último”, o sentido para a contingência e a fluidez intrínseca ao real. Entender a linguagem como sistema simbólico que impõe sentido ao caos da realidade converte-se, além disso, na interpretação da própria subjetividade como plural, isto é, como um “eu” formado por “uma variedade incontável e cambiante de impulsos, desejos, pensamentos etc.” hierarquizada de forma análoga ao universo social, “com alguns impulsos dominando outros impulsos, alguns pensamentos dominando outros pensamentos e assim por diante.”572

É por essa razão que, para Nietzsche, a liberdade é um troféu que deve ser continuamente conquistado; dormir sobre os louros implica, no seu entender, baixar as guardas no interior de um campo de luta perpétua: a própria realidade, entendida como essencialmente conflituosa. Daí a configuração do homem livre como guerreiro, ou seja:

[...] um tipo que não se prende a nenhuma perspectiva fixa, a um modo único de ver o mundo, mas transita por vários deles acumulando experiências, materiais que lhe permitam tornar-se um “indivíduo soberano”, capaz de “dar leis a si mesmo” e “criar a si mesmo”. Ou

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Idem, p. 67. 572

seja, um indivíduo capaz de libertar-se, em alguma medida, da condição de mero reflexo das condições exteriores, e capaz de exercer assim algum controle sobre a sua própria “estrutura social dos impulsos e afetos”.573

Desse homem, que “perdeu as velhas certezas metafísicas e não quer ceder ao mais tosco relativismo” e que, portanto, é ciente de que sua autonomia depende da luta interior contra os condicionantes externos, devem brotar, segundo Nietzsche, novos valores e novos sentidos para um mundo sem Deus.

Novos valores que, no universo underground da segunda metade do século XX, ganharam a conotação de revolução cultural, isto é, de ruptura com a cultura dominante, centrada na sujeição dos sentidos e da sensibilidade ao senhorio da razão.

Às normas e valores sociais impostos de cima e reproduzidos pelas várias instituições que, a exemplo do Deus judaico-cristão, encontravam-se esclerosadas, a contracultura apostou na rebelião, a partir de dentro, das forças dionisíacas adormecidas para, com elas, imantar o real de um sentido outro; um sentido que, tão fluido quanto o descrito por Nietzsche, deveria ser constantemente reformulado, conferindo ao sujeito, portanto, a responsabilidade de, com suas próprias mãos, estabelecer ad infinitum os rumos de sua existência e do próprio mundo, em uma revolução permanente, uma vez que o seu refluxo implicaria uma nova estratificação do real: uma cultura, isto é, uma nova dominação; sentido que, dependente da total autonomia do sujeito na sua elaboração e re-elaboração constantes, liberta-o nesse processo da alienação, quer dizer, da condição de mero reprodutor dos valores e das idéias que, alçando-se sobre ele, dominam-no desde fora.