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Capítulo III – A Superfície e o Subterrâneo

1. As Luzes e as Sombras da Razão

1.3. O Matrimônio do Céu e do Inferno

Além dos veios esotéricos que se constituíram como a contra-face da razão dominante e que, insinuando-se pelos subterrâneos, alimentaram a contracultura dos anos 60-70 do século XX, a sombra do romantismo espraiou-se sob o foco luminoso da ilustração desde fins do XVIII, o primeiro sinal a céu aberto de que o desencantamento do mundo, para usar uma expressão de Weber, não se daria senão através da peleja com o seu obstinado adversário, o duplo surgido do processo de decantação científica do XVII.

À progressiva exclusão de temas mágico-religiosos da superfície ensolarada da ciência, à dessacralização do mundo e da existência, à entronização da razão como rei-sol absoluto da natureza humana e da matemática como sua fiel escudeira, o romantismo opôs a tematização do misticismo, o re-encantamento do universo, a restauração da intuição e, com ela, é claro, a poesia como linguagem universal.

É assim que, segundo Benedito Nunes:

Para o poeta romântico, as formas naturais com que ele dialoga, e que falam à sua alma, falam-lhe do elemento espiritual que se traduz nas coisas, ao mesmo tempo signos visíveis e obras sensíveis, atestando, de maneira eloqüente, a existência onipresente do invisível e do supra- sensível. A Natureza transforma-se numa teofania.518

O processo de cisão entre sujeito e objeto, mencionado por Luiz Carlos Soares e unanimemente aceito pelos historiadores da ciência como ponto inaugural da revolução científica; o declínio da metafísica e da visão organicista do universo e a aceitação de uma natureza mecânica e passível de ser descrita matematicamente; a ascensão da argumentação pautada na experimentação controlada, entre outros determinantes da visão de mundo científica não se consolidaram, como aponta Paolo Rossi, ao fim e ao cabo do século XVII, a não ser, é claro, no segmento intelectual que doravante se intitularia

científico, monopolizando o direito de explicar o real.

518

NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1985. p. 65.

À visão de mundo desse segmento, mesmo no interior do movimento que se transformou em seu porta-voz, isto é, o Iluminismo, algumas vozes manifestavam-se contrárias, em maior ou menor grau, como foi o caso de Rousseau.

Em primeiro lugar com relação à questão da dualidade, pois:

O subjetivo é ponto de partida, tanto do racionalismo cartesiano como do pensamento de Rousseau [...]. Em Descartes, como na filosofia que dele derivou, a interioridade esgota-se em uma dimensão racionalista, expressa no cogito [...]. A interioridade de Rousseau é bem outra, pois para ele interioridade é sinônimo de sentimento, e este é considerado superior à razão.519

Ao contrário da subjetividade que, no pensamento racional e científico dominantes, se opõe, por assim dizer, ontologicamente ao mundo objetivo, constituindo a brecha para a denominada neutralidade, em Rousseau a interioridade confunde-se com a própria natureza: “[...] a esse sentimento interior chama Rousseau de natureza [...]. Uma natureza que se opõe, portanto, à da concepção cartesiana e enciclopedista, que via nela algo de exterior, de objetivo, de matematizado e racional.”520

Enquanto para a mentalidade racional, inaugurada pela revolução científica e louvada pela Ilustração, a natureza pode e deve ser explorada pela engenhosidade humana, porquanto dela se encontra apartada, em Rousseau “trata-se [...] de uma natureza com a qual o espírito tende a confundir-se, desenvolvendo uma espécie de volúpia cósmica” que, não obstante, também pode ser conhecida, pois “[...] a partir dessa interioridade podemos compreender a natureza, e uma natureza isenta ainda da mácula de mãos humanas, estranha e anterior à cultura, de uma pureza divina e que nos pode revelar o Absoluto”.521

Inspirados nas idéias de Rousseau, os jovens filiados ao pré-romantismo alemão, o

Sturm und Drang,522 “levam a sério a oposição [...] entre natureza e cultura, exagerando- a a ponto de se entregarem a uma rebelião frenética a todos os valores estabelecidos”,523

519

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 80. 520

Idem, p. 81. 521

Idem, p. 81. 522

Tempestade e Ímpeto, título de uma peça teatral de Maximilian Klinger, e que passou a designar o movimento pré-romântico dos poetas alemães.

523

precedendo em dois séculos a movimentação juvenil contrária aos valores ocidentais que caracterizou a contracultura e que, como seu antecessor, também questionava a primazia da razão, pois, segundo Gerd Borheim, para os proto-românticos:

Não é a razão que define o gênio, e sim o berço último de nossas idéias, aquela região subterrânea que nos habita e que logo mais será batizada pelos românticos de inconsciente. Essa zona obscura é que deve ser explorada, pois ela é a zona original, raiz coincidente com o divino, verdade última e ponto de partida do homem. “Só o conhecimento de nós mesmos, essa descida aos infernos, nos abre o caminho da divinização” diz Hamman. A salvação está, conseqüentemente, na irracionalidade. [...] Introduz-se assim a crença, à qual todo o Romantismo permanecerá fiel, de que a irracionalidade é uma força positiva: o caos constrói, compõe. [...] A ordem, a virtude, a moral são substituídas pelo caos criativo, pela força do gênio, pelas paixões vitais além de toda medida.524

À sombra da racionalidade dualista, pois, medrava uma outra concepção de subjetividade, na qual o “eu”, esse foco minúsculo da percepção e do pensamento, nada mais é do que o broto quase visível de um solo mais extenso e ao qual a própria natureza se filia, uma vez que:

O Eu transcende a Natureza física – o exterior mecânico disperso dos fenômenos – mas para encontrar-se [...] com o entendimento interno da Natureza viva e animada. “O que está fora de mim está justamente em mim, é meu – e inversamente”. O universo a que se chega através do Eu, ainda é, conforme a doutrina de Novalis em Os discípulos de Sais, o próprio Eu, que se espelha nesse entendimento interno da Natureza.525

Destilada pelo pensamento de Fichte, Schlegel e Schelling, entre outros, a filosofia monista dos românticos foi o resultado, segundo Gerd Borheim, da tentativa de superar as antinomias kantianas que opõem sensibilidade e entendimento, realidade fenomenal e realidade numenal, ciência e moral ou, trocando em miúdos, mundo da natureza e mundo da espiritualidade.526 Para Fichte, por exemplo, “só há, em última análise, um único

524

Idem, p. 82 [Grifos meus]. 525

NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 58. 526

Oposição sobre a qual é fundada a cientificidade pois “o real sensível é objeto de ciência. Nele não existe liberdade: tudo acontece dentro de um rigoroso encadeamento de causas e efeitos perfeitamente previsíveis.” A esse determinismo que inclui o homem, enquanto ser psicofísico, Kant “constrói um outro

mundo que é o do Eu puro. A esfera do Não-eu é derivada da do Eu e todo dualismo é superado pela consideração do Não-eu como mero produto do Eu puro”. Concepção que entusiasmou os românticos uma vez que “uma das categorias básicas, fundamentais, que permitem compreender o Romantismo é a da Unidade. Podemos mesmo dizer que todo o movimento se desdobra sob o signo da Unidade.”527

Mas não só por isso, pois o Eu, tal como acima concebido, além de ser o fulcro comum a todos, a “árvore da qual somos as flores em botão”,528 é na verdade Deus, o eterno criador: “No fundo, pois, da consciência individual há algo de absoluto, há uma presença eterna, uma Liberdade total e infinita, que é o Eu puro [...]. Não há aí distinção real, mas um único todo, uma realidade indivisa. [...] Deus é eternamente criador, sempre criou e sempre criará.”529 Ou seja:

[...] este Eu se apresenta com traços simpáticos aos românticos em muitos de seus aspectos: um Eu dotado de enorme força criativa, a ponto de fazer do mundo exterior um derivado da imaginação produtora do homem; um Eu, no mais, que vence resistências, obstáculos por ele mesmo produzidos, em sua marcha para o infinito definitivamente distante – uma marcha, contudo, redentora do homem.530

É justamente a criatividade artística, e não a racionalidade matemática, o “instrumento” de acesso a esse eterno jogo de esconde-esconde de Deus consigo mesmo,531 pois, segundo Hamann “a arte representa, mais do que as matemáticas e outros conhecimentos ditos exatos, a forma mais acabada do conhecimento, porque evita as

mundo: o da realidade espiritual, da liberdade, dos valores morais [...], cuja dinâmica Kant denomina ‘imperativo categórico’”, isto é “um princípio que não conhece condicionamento, que nos diz que devemos fazer o nosso dever pelo dever mesmo”. BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 85.

527

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 91. Na esfera política, o “signo da Unidade” manifestou-se no crescimento do nacionalismo. Sobre as ambigüidades políticas presentes no romantismo, vide: SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Brasiliense, 1991 e RENAUT, Alain (Dir.). Luzes e romantismo. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. 528

NUNES, Benedito. A visão romântica. Op. cit., p. 66. 529

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 91. 530

Idem, p. 92. 531

pálidas abstrações que a razão pode dar-nos, e revela a personalidade do artista e ao mesmo tempo a riqueza e a totalidade do mundo.”532

É nesse ponto que, para Gerd Borheim, Schlegel avança em relação a Fichte, pois, enquanto o último “afirmara um Eu que é Liberdade infinita, pura, absoluta” mas que, em função da oposição entre Eu e Não-eu, não se traduz em “triunfo da liberdade” humana, restando ao homem viver sempre “dentro da dimensão do dever ser”, para o primeiro a liberdade se torna exeqüível pela arte:

Na criação artística, o homem serve-se do sensível para dominá-lo e, através desse domínio, o Não-eu, o mundo sensível, como que se espiritualiza, se idealiza. [...] Na arte, o homem aceita o mundo sensível, mas transfigurado por um sentido que lhe foi emprestado pelo espírito.533

Perspectiva enunciada pela idéia de Goethe, segundo a qual o “artista, unindo o ideal e o real, a razão e o instinto, realizaria uma síntese superior”, possível ao artista “porque sua intuição pode atingir o fundo último da natureza, a idéia divina que existe nela – uma concepção inspirada ao poeta por Spinoza: ver Deus na natureza e a natureza em Deus.”534

Ao invés de um universo composto por corpúsculos sem vida, cuja atividade, atômica, pode ser descrita unicamente pelos números, o organismo vivo dos românticos fala por si só: “o universo inteiro fala e os corpos são os signos de sua linguagem”.535 O diálogo entre a inteligência humana e a natureza da qual é parte integrante e inalienável, opera-se de tal sorte que:

Os objetos, que já condensam a percepção sentimental e emotiva do sujeito neles projetado, são como abreviaturas dos estados de ânimo e das coisas, do interior e do exterior, do subjetivo e do objetivo, núcleos de correlações cambiantes, ordenadas pelas afinidades e pelos contrastes da imaginação. E sendo dialogante a atitude do poeta, para

532

SOSOE, Lukas K. Superar a antinomia das luzes. In: RENAUT, Alain (Dir.). Luzes e romantismo. Op. cit. p. 278.

533

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. Op. cit., p. 93. 534

“[...] Goethe opunha-se a toda e qualquer tendência mecanicista e defendia uma concepção organicista da natureza, considerando-a como um grande animal vivo, um organismo que jamais poderia ser traduzido matematicamente, a não ser pela sua desfiguração.” Idem, p. 93.

535

NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 59 [Cf. Novalis. Encyclopedie. Fragmento 479, Lês Éditions de Minuit].

quem os objetos passam à categoria de segunda pessoa – o tu diante do Eu – é o nexo de simpatia que o ligará às coisas, num mundo em que tudo pode ser analogicamente compreendido.536

Saltando sobre o corte epistemológico da razão ou, por outro ângulo, deslizando pela superfície rochosa do racionalismo moderno, “a natureza [...] voltou a ser contemplada pelos românticos através da perspectiva de coesão mágica, de envolvimento analógico entre palavras e coisas, da compreensão pré-clássica do mundo, dominante do Medievo à fase renascentista.”537

Uma natureza orgânica que, segundo Schelling, é habitada, tanto quanto o homem, pelo mesmo Espírito;538 uma natureza que se distingue não só da concepção mecanicista como também do precedente alargamento da cisão entre mundo espiritual e material efetuada por Lutero; uma cisão que, em Jacob Boehme, foi novamente estreitada, inspirando o retorno dos românticos à sua visão de mundo:

O sobrenaturalismo de Lutero afirmava a natureza – e também a razão que a conhece – como fonte de mal e pecado. Em Jacob Boehme, o maior místico protestante, encontramos um primeiro protesto contra essa doutrina, uma primeira tentativa – e que será seguida por tantas outras, inclusive pela romântica – de redimir a natureza e, em decorrência, também o homem. Para Boehme, o mal não pode ser tão definitivo, tão radical a ponto de afastar irremediavelmente a natureza humana de Deus; se assim fosse, a regeneração do homem se tornaria impossível, porquanto impossível seria a sua aproximação da graça divina. Boehme procura solucionar a questão dentro de uma linha panteísta: a natureza é divina, Deus lhe é imanente.539