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Capítulo III – A Superfície e o Subterrâneo

1. As Luzes e as Sombras da Razão

1.4. A Tépida Corrente Oriental

Restaurava-se entre os poetas românticos a metafísica que, no discurso científico, fora relegada ao ostracismo; não, segundo Bowra, uma metafísica “profissional”,

536

NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. pp. 66-7. 537

Idem, pp. 67. 538

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 100. Para Schelling, “a verdade só existe no Absoluto e encontra-se nas representações particulares na medida em que participam do Absoluto”. Idem, p. 104.

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derivada da lógica e da análise racional, mas da introspecção e do êxtase.540 Sua metafísica e sua religiosidade, longe de seguir as trilhas da ortodoxia cristã, conduzia-se pelos lençóis subterrâneos que, ultrapassando inclusive as noções ocidentais do sagrado e da vida espiritual, e a exemplo das correntes esotéricas e ocultistas, eram alimentados também pelas idéias e conceitos oriundos da Ásia, valorizando “sobretudo a Índia, dando início a uma atitude não apenas exterior, mas voltada, respeitosamente, para a cultura e para a religião dos países asiáticos.”541

Na contramão do cientificismo representado muito particularmente pelo positivismo, o romantismo não apenas restaurou o discurso mágico-religioso, como também a ele associou concepções filosófico-religiosas asiáticas com base nas quais a contracultura, no seu tempo, construiria sua explicação alternativa do real. Concepções que, segundo Julie Stephens, não ficaram confinadas apenas à Europa, manifestando-se no transcendentalismo de vários autores norte-americanos, como Walt Whitman, Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson. Autores que, como seus contemporâneos e congêneres europeus, valorizaram a Índia como fonte de uma espiritualidade transformada em instrumento de luta contra o utilitarismo e as estéreis influências da industrialização, motivo pelo qual são considerados os pais fundadores do movimento

hippie.542

A guinada para o Oriente, entre ocultistas, românticos e transcendentalistas foi, ainda no século dezenove, compartilhada por outros autores ocidentais; os quais, uns menos, outros mais, adotaram pressupostos védicos, budistas e taoístas na composição de interpretações singulares do real. É o caso de Schopenhauer, por exemplo, que inaugura

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Segundo Bowra, os poetas românticos “were metaphysicians, but, unlike professional metaphysicians, they trusted not in logic but in insight, not in the analytical reason but in the delight, inspired soul which in its full nature transcends both the mind and the emotions. They were, too, in their own way, religious, in their sense of holiness of reality and the awe which they felt in its presence. But, so far as their central beliefs were concerned, they were not orthodox”. BOWRA, C. M. The romantic imagination. London: Oxford University Press, 1950. p. 22.

541

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. Op. cit. p. 106.

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Transcendentalismo foi o nome empregado pelo “movimento” literário, religioso e filosófico norte- americano que, em meados do século XIX, pregava a existência de um estado espiritual “transcendente” em relação à experiência física e perceptível apenas por intermédio da consciência intuitiva. Cf. STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. pp. 54-5.

uma metafísica na qual a vontade, e não o intelecto criador, é concebida como a origem última de todo o drama existencial:

Segundo Schopenhauer, o erro fundamental em que caíram todos os filósofos anteriores repousa na visão de que o todo da Natureza saiu de um intelecto [...]. Para ele, o mundo físico não é o resultado de um intelecto criador, mas o conhecimento já é um produto da Natureza. Fundamento de todas as coisas, a vontade se expressa no corpo e se afirma na busca das necessidades deste.543

É no organismo humano que a “tensão entre representação e vontade” ganha a conotação de um drama:

[...] esta [a vontade] explica aquela, mas só por meio da primeira se chega à segunda. E a representação, embora indispensável nessa relação, é secundária. Como a razão está no plano da representação, é fácil deduzir que ela será subordinada, também, à vontade, essência do mundo – uma atividade cega, sem fim, que permeia todo fenômeno.544

A vontade é, para o filósofo, o substrato de toda a realidade, manifestando-se no “querer viver” intrínseco a toda composição orgânica; impessoal, ela atua no indivíduo como um impulso de afirmação da própria existência, de conservação e reprodução, mas que, em última análise, não objetiva apenas a sua sobrevivência, mas da espécie. Sem saber, cada uma das singularidades que compõem uma determinada espécie age comandada pelo princípio geral, o da vontade, que em cada um se apresenta como impulso instintivo ou desejo; como títeres, as plantas, os animais e o próprio homem representam no palco da vida papéis cujo verdadeiro enredo, que desconhecem, está escrito na eternidade da vontade geral, sendo por ela manipulados.

Assim, mesmo as representações do real resultam da vontade, fruto que são da atividade orgânica, cerebral, presente tanto nos animais quanto no homem, nele atingindo, por ser “o fenômeno mais complexo da vontade”, a condição de

racionalidade:

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RAMOS, Flamarion Caldeira. Schopenhauer: vida e obra. Mente, cérebro & filosofia, São Paulo: Duetto, v.4, 2007, p. 11.

544

BRANDÃO, Eduardo. Schopenhauer e o conhecimento: a razão como instrumento da vontade. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 14.

[...] toda a capacidade de representação do sujeito do conhecimento, aí incluída a sua razão, é, para Schopenhauer, resultado da atividade cerebral, da atividade fisiológica do corpo – no limite, da atividade da vontade. Todo organismo é um fenômeno da vontade. Como só há representação porque há corpo, só há representação porque há vontade.545

A razão é aqui colocada entre aspas, como uma atividade condicionada e comandada por um princípio anterior a ela e sem que o saiba, pois “Schopenhauer coloca na base das operações da razão – criação de conceitos, palavras, julgamentos – uma outra instância que, justamente, é sem-razão, está fora da razão ou do domínio da consciência: a vontade é sem-consciência.”546

Enquanto para Kant a coisa em si é desconhecida e “inacessível ao conhecimento humano [...] que é regido pelas formas puras de apreensão do sujeito, a saber, o tempo, o espaço e as categorias a priori do entendimento”, sendo-lhe facultado lidar apenas com fenômenos, para Schopenhauer a coisa em si não é senão “a vontade, raiz metafísica de toda realidade”, passível de ser inferida, pois, no seu entender “o conhecimento [...] tem como condição necessária a existência de um corpo” o qual “é dado para o sujeito de duas maneiras distintas: como representação no conhecimento fenomenal e como princípio imediatamente conhecido, como vontade”, isto é, algo que se manifesta enquanto tal no homem e que pode, por analogia, ser estendido “a todos os fenômenos” pois “se eles são semelhantes ao corpo humano como representação, o resto, pela sua essência, deve ser o mesmo que em nós chamamos vontade, já que fora da vontade e da representação não podemos pensar em nada.”547 Ou seja:

Não somente as ações voluntárias do ser animal, mas também o mecanismo orgânico de sua vida corporal, sua figura e sua conformação, assim como a vegetação no mundo das plantas, a cristalização no reino mineral e, de uma maneira geral, toda força original que se manifesta nos fenômenos físicos e químicos, até mesmo o peso, tudo isso – tomado em si fora do fenômeno, isto é, do nosso cérebro e de sua representação – é perfeitamente idêntico ao que nós

545 Idem, p. 19. 546 Idem, p. 21. 547

encontramos em nós sob a forma de Vontade, da qual temos o conhecimento mais direto e mais íntimo que pode haver.548

Ao reconhecimento da vontade como a coisa em si, substrato e razão última de tudo, segue-se, no pensamento de Schopenhauer, as implicações éticas da descoberta, pessimista em relação à vida, uma vez que “a vontade consiste num esforço que jamais atinge um alvo verdadeiro, uma satisfação final, em nenhuma parte um lugar de repouso” e o homem, condenado a desejar sempre “conhece apenas a oscilação entre o tédio e a dor.”549 Assim, à sombra do budismo e de outras escolas filosóficas da Índia, no sistema de Schopenhauer “a felicidade e o prazer são considerados meramente negativos, pois residem em momentos transitórios de satisfação do querer, seguidos de imediato por novas solicitações do querer insaciável,”550 preservando o círculo vicioso que, no sistema hindu, é denominado samsara.

O qual pode, contudo, ser suprimido, a começar pela arte, considerada por Schopenhauer:

[...] uma forma de conhecimento que não serve apenas como instrumento para que a vontade atinja seus fins, mas também para a pura contemplação da essência efetiva das coisas, das idéias. Essa contemplação desinteressada das idéias seria um ato de intuição artística e permitiria que a vontade chegasse a conhecer-se a si mesma. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte-se, a inteligência passa a uma posição superior e deixa de ser mera escrava da vontade para ser sua espectadora.551

No entanto, o desmanche do nó que prende o indivíduo às dores do mundo é logo refeito, devido ao caráter transitório do distanciamento promovido pela contemplação artística. Por isso, é na conduta moral, não no sentido prescritivo, que ele vislumbra o meio pelo qual o véu de Maia, a ilusão na qual todos estão enredados, possa começar a ser desfeito:

548

SCHOPENHAUER, Arthur apud RAMOS, Flamarion Caldeira. Schopenhauer: vida e obra. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 11.

549

RAMOS, Flamarion Caldeira. Schopenhauer: vida e obra. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 12. 550

RAMOS, Flamarion Caldeira. Uma filosofia pessimista: a teoria da negação da vontade de viver. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 22.

551

Na conduta moral o homem se eleva ao ponto de vista metafísico da unidade essencial da vontade, conhecimento que se revela na experiência da compaixão. Com efeito, a compaixão é o reconhecimento de que todos os seres são na verdade um e o mesmo ser, é uma experiência mística de absorção da individualidade no todo do mundo.552

Experiência que resulta na superação da própria noção de morte, pois “[...] somente os fenômenos, isto é, os indivíduos, podem estar submetidos ao nascimento e à morte”, os quais “do ponto de vista da vontade [...] são meras aparências, e o que permanece é a espécie, manifestação da idéia eterna.”553

No entanto, se a noção de morte é superada pela redução do ser à vontade geral, da qual a “alma” ou o “próprio intelecto não passa de uma das figuras” pelas quais ela se manifesta, resulta que, garantida a vida, “também estará garantida a companhia de milhares de sofrimentos inerentes” a ela, não restando outra opção senão a da renúncia total à vida, não pelo suicídio, pois “aquele que se mata, em vez de negar sua vontade, a afirma de modo violento”, mas pela via quietista, pela “mortificação dos instintos” e pela “auto-supressão da vontade.”554

Via que não foi adotada pela contracultura, a não ser excepcionalmente. Entretanto, outras noções, além da própria legitimação filosófica conferida aos sistemas de pensamento orientais, e por caminhos transversais, alimentaram os afluentes que, nos anos sessenta do século XX, desembocaram no underground. Entre as quais, a de que a razão não é absolutamente autônoma, de que ela participa, as mais das vezes, como coadjuvante num palco comandado por forças que lhe são estranhas: “[...] a vontade é pois admitida como um elemento não consciente no aparato psíquico, incapaz de conhecer. Ao postular como essencial o querer viver, a racionalidade perde seu poder sobre si mesma [...] deixando entrever algo outro que se lhe contrapõe.”555

O outro da razão, transformado em sombra pela própria incidência das luzes, inicia sua peregrinação nos subterrâneos da consciência ao se admitir que ela “abriga em si esse

552

Idem, p. 13. 553

RAMOS, Flamarion Caldeira. Uma filosofia pessimista: a teoria da negação da vontade de viver. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 25.

554

Idem. pp. 27-9. 555

CACCIOLA, Maria Lucia. Atualidade de Schopenhauer: o “eu quero” abre caminho ao inconsciente. Mente, cérebro & filosofia. Op. cit. p. 34.

lado obscuro das paixões e das emoções”, tirando “da razão o papel predominante”, atribuindo-o “ao corpo e a suas tendências e necessidades.”556 Segundo Maria Lucia Cacciola, muito embora Freud negue a influência de Schopenhauer em sua obra, ele “admite a antecipação deste no que se refere à teoria do recalque”, com uma diferença:

No caso do recalque, o conteúdo não-consciente seria formado por representações indesejáveis, que teriam sido expulsas da consciência pelo querer-viver. Mas, na qualidade de não conscientes, poderiam ser ainda chamadas de representações? Para Freud, o inconsciente como sistema conteria as ‘representações das pulsões’, que dificilmente equivaleriam às representações em Schopenhauer. Ao pensar num inconsciente schopenhaueriano, este só poderia ser equivalente à própria pulsão, ao impulso do querer-viver como atividade cega, incapaz de receber um estatuto representativo, o qual pressuporia sempre, como pólo de conhecimento, o sujeito.557

A despeito das notórias diferenças, Schopenhauer e o romantismo como um todo lançaram, antes da psicanálise, a sombra do irracional sobre a superfície ensolarada da razão; uma sombra que não mais podia ser ignorada sob pena de tornar a própria racionalidade um instrumento de entendimento cego, porquanto incapaz de perceber a dinâmica de seu próprio funcionamento, projetando-se assim, não como luz, mas como um véu escuro sobre a realidade, tornando-a doente, como a definiu Nietzsche.