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Capítulo II – O Discurso Underground

1. O Veículo

2.3. A Difícil Síntese do Real

A realidade “tal como lhe parece”, que para a contracultura não é senão um

construto cultural, sedimentou-se durante a modernidade. Nesse período, das várias

interpretações existentes sobre o real, tornou-se dominante a concepção mecanicista, segundo a qual o universo funciona como um relógio cujas engrenagens podem ser conhecidas pelo engenho humano; conhecidas e ajustadas, inclusive as engrenagens econômicas, políticas e sociais, além das que presidem o funcionamento do corpo e da mente humana.

Desencantados, homem e universo foram reduzidos à condição de máquina, símbolo máximo do processo civilizador ocidental, de domínio da razão sobre as forças hostis da natureza, que culminou com o modelo capitalista de organização econômica e social; modelo que, burilado pelo espírito iluminista e reparado pelas concepções socialistas, aponta na direção da vitória progressiva do gênero humano sobre todas as limitações impostas pelo reino da necessidade, entronizando a idéia de um horizonte róseo para a humanidade – no futuro.

Enquanto ele não chega e, inclusive para que se torne possível, o sacrifício do presente foi elevado à condição de virtude. Esse ânimo que, no entender de Norbert Elias, paulatinamente se universalizou a partir do crepúsculo da Idade Média e que “se orienta sempre para um autocontrole mais ou menos automatizado, para a subordinação de impulsos de curto prazo aos comandos de uma enraizada visão a longo prazo”,469 tem suas raízes na fé judaico-cristã na imortalidade da alma e na justiça divina,470 ganhando, primeiro com o Iluminismo e, em seguida, com as doutrinas socialistas, uma conotação secular e materialista.

O futuro, esse alvo difuso para o qual a história se encaminha retilineamente como uma flecha disparada pelo arco do tempo, transformou-se no porto seguro sem o qual o olhar de cada um quedaria perdido, sem chão, da mesma forma que as esteiras e engrenagens fabris silenciariam sem a perspectiva de seu produto final, sua raison d’être. O futuro, representado pela arte renascentista com a emergência da “perspectiva

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ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2. p. 208.

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científica”, pela música polifônica e pela narrativa horizontal e linear da literatura moderna, corrige a evanescente percepção do imediato, desencadeando o fluxo mental sobre o qual, como um surfista, o ego se equilibra. Nomeado piloto da embarcação que singrou o “mar tenebroso” dos descobrimentos, foi ele, o ego, quem assumiu a responsabilidade de enfrentar as vagas do desconhecido, pois sua perspectiva, a de todo o Ocidente, é a de um futuro glorioso para a espécie que, criada à imagem e semelhança do criador ou, pela perspectiva cientificista, ápice da evolução da vida, é destinada a sobrepujar todas as forças que brotam do imponderável.

Com o olhar fixo no horizonte, o desconhecido foi reduzido, no interior do laboratório mental, à descrição lógica, por via de regra matemática, transformando-se na visão dominante sobre o homem, a vida e o universo, uma descrição cuja eficácia depende da fragmentação analítica do todo em segmentos estanques. Imóveis e, portanto, passíveis de serem estudados pela observação treinada dos cientistas – para quem a neutralidade, isto é, a resultante da separação ontológica entre observador e objeto observado, é condição sine qua non – os fragmentos foram logicamente ajuntados formando mapas da realidade, as teorias.

São elas que dizem aos herdeiros do Iluminismo como o universo natural e humano funciona, quais são suas leis e as maneiras, ou métodos, de conhecê-las. Leis que, aplicadas ao mercado, dele fizeram um sistema cuja lógica de funcionamento, segundo o liberalismo, é tão natural quanto a que preside o mecanismo do real; e que, aplicadas ao Estado, destituíram a irracionalidade do capricho pessoal, entronizando regras na divisão dos três poderes emanados, segundo a mesma ideologia, unicamente do povo.

Se as engrenagens mencionadas ainda não funcionam adequadamente, gerando exclusão social e arbítrio político, é porque a seta do tempo ainda não atingiu seu ponto

ótimo, quer dizer, porque a racionalidade ainda não penetrou o suficiente, como já o fez

na esfera da ciência e da técnica, no mundo das relações de produção e do poder. É, pois, ainda no futuro que a partida será decidida: pela lógica do laissez faire, segundo o liberalismo, ou em decorrência da luta de classes, segundo o socialismo.

Nesse ínterim, o ego se equilibra sobre o movediço presente como se ele fosse tão estável quanto o porto seguro vislumbrado no futuro e, para evitar a vertigem e os possíveis tombos, ao invés de usar seu aparelho sensorial, testemunha que é da fluidez e

da transformação, finca os pés nos quadros mentais estáticos, projetando-os sobre a realidade e, por conseguinte, enrijecendo-a.

Distorcida pelo engessamento do que é, em si, fluido, a realidade tornou-se cada vez menos encantadora e cada vez mais estéril, merecendo constantes reparos por parte do engenho humano e também de sua labuta, encerrando a liberdade no interior do círculo vicioso do progresso, o qual é concebido como o verdadeiro propósito da existência humana; propósito ao qual a humanidade como um todo e cada um individualmente devem devotar-se, sacrificando o presente – que, a rigor, não passa de um nome bonito para esse espaço vazio entre passado e futuro – em prol do amanhã. Lá está o farol da liberdade e da felicidade prometidas por Deus ou pela ciência; mas lá se encontra, especificamente, a realização dos sonhos que cada um sonha no aqui e agora pela simples razão de não poder vivê-los concretamente.

Assim, feito sonâmbulos, a maioria segue pelas trilhas pavimentadas de um real que leva do nada a lugar nenhum, do domesticado e artificial ambiente familiar ao insosso e alienante ofício profissional, cuja rotina depende, para que não se rompa, da constante injeção de ânimo do consumismo, das drogas, legais ou ilegais, do infalível recurso à fé ou, como regra geral, da submissão da consciência ao universo dos sonhos despejados pela indústria cultural.

Temendo encarar a inanidade de uma vida que somente se justifica em função do não-ser, isto é, do futuro, a consciência humana abrigou-se no interior de uma narrativa cujo epílogo é sempre o mesmo. O desconhecido e o imponderável dela foram alijados para além das paredes de concreto no interior das quais a razão se encerrou e a porção que não pôde separar de si foi sepultada nos subterrâneos do inconsciente, alimentando, contudo, os lençóis freáticos dos quais, eventualmente, emerge, rompendo a superfície da normalidade como um gêiser contracultural.

A contracultura dos anos 60 e 70 foi a irrupção, a céu aberto, dos anseios e visões de mundo historicamente soterrados pela cultura dominante. Através dela, os veios do proibido e do ilegítimo se encontraram, alçando-se sobre a superfície da normalidade e trincando o pavimento de concreto zelosamente protegido pela ordem objetiva; através dela, os veios dos desejos recalcados que, contorcendo-se, envenenavam a consciência com o mal-estar descrito por Freud, foram expostos como gozo e também como loucura;

através dela, os veios nos quais a concepção monista do universo se abrigava das represálias da razão dualista, foram expostos como viagem e como êxtase divino; em suma, através dela, o universo da combatida irracionalidade e subjetividade voltou à tona para assombrar as virtudes da decência e do adiamento e as luzes da razão.

Às convenções e ritos sociais da cultura dominante, a contracultura opôs a subversão comportamental e a espontaneidade; à virtude do adiamento, o gozo no aqui e agora; ao sedentarismo e à monogamia, a vida nômade e a liberdade sexual; à produção industrial e ao trabalho alienado, o artesanato e o jogo; ao álcool, os psicodélicos; à racionalidade dualista e ao pensamento discursivo, o monismo e o silêncio; ao ego, a

consciência cósmica.

Oposição que não se restringiu simplesmente ao discurso; partindo do sonho, com as movimentações da juventude, sobretudo dos hippies e simpatizantes, foi intentado o próprio assalto ao real. A esse novo real, por oposição ao dominante, denominou-se

alternativo. Um real que, para a contracultura, transforma-se ao sabor da “metamorfose

ambulante” pela qual a própria consciência se define; e que, por isso mesmo, não pôde condensar-se em certezas inamovíveis, características da cultura dominante, transitando caoticamente pelas incertezas do presente sem estruturar-se em ideologia. O real, afinal, não podia ser aprisionado em um tubo de ensaio, no aquário ou em conceitos: seu caminho era o do próprio imponderável, da transitoriedade, do vento forte que, varrendo a superfície terrestre à noite, esvai-se com o amanhecer – não há como descrevê-lo, a não ser fixando-se na agitação que provoca na copa das árvores, muitas vezes desfolhando-as. O vento, porém, cessou e, das árvores desfolhadas fizeram-se pinturas, compuseram-se canções, recitaram-se poemas que, reproduzidos pela indústria cultural, puseram novamente a juventude no caminho do bem, da luz, do futuro saudoso de seu filho pródigo.

Emergindo, pois, dos lençóis freáticos e penetrando nas fissuras pavimentadas da realidade, o underground se espraiou pela superfície, regando o solo árido no qual as poucas sementes plantadas deveriam aos poucos desabrochar em flores, no flower power; à primavera e ao verão, contudo, sucedeu o inevitável outono, completando-se o ciclo das

estações com o tenebroso inverno do novamente rochoso e árido real. Pelas fissuras novamente decantava-se o sonho, submergindo à espera de um novo despertar.471

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Capítulo III