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3.2 As propostas feministas de justiça

3.2.2. O cuidado e as feministas da diferença

3.2.2.2. A ética do cuidado

A demonstração empírica das diferenças entre homens e mulheres por Gilligan (1987,1993) desafiou o debate feminista a imaginar em que medida a moralidade feminina poderia contribuir para noções de justiça e igualdade para ambos os sexos. O seu estudo levantou a questão fundamental sobre se seria possível produzir teorias morais e políticas relevantes a partir da experiência das mulheres e em que medida tais teorias poderiam impactar a hierarquia entre os gêneros. Se por um lado a diferença entre os sexos era decorrente de uma sociedade patriarcal, por outro lado a situação de subalternidade poderia conter indicadores importantes sobre as possibilidades de superação da desigualdade de gênero. A moralidade em “uma voz diferente” (Gilligan, 1993) passou a inspirar as produções de uma parte significativa do feminismo acadêmico. E a ética do cuidado passou a ser uma nova linha de debates teóricos e políticos.

Para Joan Tronto (1987), os achados de Gilligan indicam a necessidade de se estender as evidencias também a outros grupos minoritários, indicando a necessidade de novas pesquisas para a construção de uma ética alternativa à ética da justiça. Para Tronto (1987), permanecer em torno das diferenças sugerindo que as mulheres possuem uma moralidade complementar a dos homens as mantém em uma situação de subalternidade. Afirmar que as mulheres possuem uma orientação ética para o cuidado e os homens para a justiça apenas justifica as desigualdades já existentes, que tem servido à hierarquia já estabelecida (Tronto, 1987). Nesse sentido, uma série de feministas rejeita a proposta teórica de Gilligan, afirmando que tal leitura apenas reforça os estereótipos de gênero e podem representar um retrocesso na luta feminista por

igualdade (Mackinnon, 1987; Okin, 1991). Tronto (1987), no entanto, acredita que as evidências conduzem à possibilidade de construção de uma ética alternativa à tradicional, que esteja mais fundamentada no contexto das demandas morais e menos nos aspectos universais dessas demandas.

Segundo essa autora, uma ética do cuidado pressupõe que nem sempre há uma decisão correta que remeta a um indivíduo universal. Pelo contrário, a postura ética deve buscar a satisfação das necessidades de uma outra pessoa específica ou preservar as relações de cuidados existentes. Para Tronto (Tronto, 1997, p. 191), “Dessa forma, a teoria moral torna-se bem mais intimamente associada às necessidades concretas dos outros”. A capacidade moral fundamental não se trata da compreensão das normas universais decorrentes do exercício racional, mas de estar atento às reais necessidades de um outro e de contrabalanceá-las com as próprias. O cuidado é um empreendimento suscetível tanto em tempo quanto esforço às necessidades específicas da pessoa que é objeto do cuidado, sendo difícil sua universalização. Tronto (1997: p. 196) argumenta, assim, que “o particularismo do cuidar desafia a teoria moral contemporânea”.

Para Virginia Held (1987), por sua vez, as evidências encontradas por Gilligan não deveriam ter tamanha centralidade no debate. Para ela, pode-se traduzir o problema sem adentrar a pertinência da generalização empírica, utilizando um argumento mais forte: a igual importância da experiência das mulheres para as definições da moralidade. Definir se as evidências disponíveis são ou não suficientes para a necessidade de uma ética feminista é algo secundário, uma vez que o desafio de valorizar igualmente a experiência das mulheres já indica esta necessidade (Held, 1987). Diferente de Tronto, Held desconfia da possibilidade de apenas uma construção moral dar conta da pluralidade de demandas existente. Para ela, deve-se aprender com o fracasso do debate sobre distribuição em abarcar a diversidade, evitando cair no erro de uma meta-ética alternativa. Ela defende que a ética feminista deve ser pluralista e fundamentada em uma divisão do trabalho moral. Considera que “uma divisão do trabalho moral deve ser esperada a fornecer teorias morais diferentes de diferentes contextos da atividade humana” (Held, 1997, p. 112).

Uma das maiores expoentes do debate sobre a ética do cuidado, Eva Feder Kittay (1999, 2002, 2005b) assume o cuidado como uma dimensão central das relações

humanas e propõe não apenas que seja considerado em termos morais, mas também como um fundamento para a justiça. No entanto, não sugere que o cuidado ganhe centralidade por expressar a diferença da moralidade feminina. A teoria de Kittay fundamenta-se principalmente na compreensão de que a dependência é um fato na vida humana e requer cuidado, seja em alguns momentos da vida como no caso de idosos, crianças e pessoas doentes, seja como uma condição permanente para pessoas com impedimentos corporais e cognitivos graves (Kittay, 1999, 2002; Kittay, 2005b). Para ela, determinar quem deve prover o cuidado, as condições do trabalho do cuidado e a qualidade do provimento das necessidades da pessoa cuidada é uma questão social e política (Kittay, 1999). Assim, para Kittay (1999, p. 01), a forma como uma sociedade organiza a questão do cuidado é uma questão de justiça e determina “se o fato da dependência humana pode ser compatível com a igualdade plena de todos os cidadãos – ou seja, se a cidadania plena pode ser estendida a todos os cidadãos”.

A autora propõe, então, uma noção de igualdade baseada nos vínculos interpessoais (connection-based) das pessoas, em uma perspectiva relacional. Para ela, as pessoas são iguais em termos das propriedades que compartilham na conexão com as demais pessoas: a necessidade de cuidar das pessoas próximas e de ser cuidado em situações de dependência. Para preservar tal igualdade, Kittay recomenda a implementação do que chama de princípio de doulia, que sugere que o cuidado despendido deve ser recompensado por todos. Como as pessoas dependentes nem sempre podem retribuir o cuidado que recebem e os cuidadores investem a própria energia no bem-estar de outras pessoas, a coletividade deve providenciar elementos para sua compensação. Diferente da noção liberal do benefício mútuo, Kittay (1999) sugere que a reciprocidade nas relações possa também ser indireta: a sociedade que se beneficia do cuidado de algumas pessoas é obrigada a retribuir. O cuidado, assim, passa a ser responsabilidade de toda a sociedade, e não apenas das mães ou outras mulheres cuidadoras.