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2.2. Necessidades Humanas Objetivas

2.2.2. David Braybrooke e a distribuição entre necessidades e preferências

David Braybrooke apresenta uma proposta de justiça onde as necessidades devem ser supridas em um padrão mínimo e, após tal provimento, é possível determinar também o provimento das preferências (Braybrooke, 1987). Para ele, uma teoria liberal das necessidades deve também prever qual o lugar das preferências quando as necessidades tiverem sido supridas. Isso requer um método que possibilite diferenciar o que são necessidades e preferências, além de um padrão mínimo de provisão que permita identificar o momento em que se pode considerar que as necessidades estão adequadamente supridas. A proposta de Braybrooke se assenta em uma Lista de Necessidades, em Padrões Mínimos de Provisão (Minimum Standarts of Provision), no Princípio de Precedência, em uma População de Referência, uma Selfgovliset (abreviação para self-governing linguistic subset, ou um subconjunto linguístico auto- governado) e um Critério (Criterion) (Braybrooke, 1987).

Em primeiro lugar, Braybrooke (1987) estabelece uma diferença entre necessidades de curso de vida (course-of-life needs) e necessidades fortuitas (adventitious needs). As segundas baseam-se nas preferências e, as primeiras, no que as pessoas efetivamente necessitam para suas vidas, mesmo que não reconheçam. Para Braybrooke (1987), são as necessidades do curso de vida que devem fundamentar a as políticas sociais, em detrimento das necessidades fortuitas. As necessidades do curso de vida correspondem a uma família de necessidades que podem ser listadas, sendo

associadas a um Padrão Mínimo de Provisão. A Lista de Matéria de Necessidades (List of Matters of Need) é assim desenhada por Braybrooke (1987, p. 36):

“1. A necessidade de ter uma vida apoiada na natureza (life- supporting relation to the environment)

2. A necessidade de comida e água 3. A necessidade de excretar 4. A necessidade de exercitar-se

5. A necessidade do descanso periódico, incluindo o sono

6. A necessidade (para além do que já é coberto pelas necessidades anteriores) por qualquer coisa que seja indispensável à preservação do corpo intacto em questões importantes

7. A necessidade de companhia 8. A necessidade de educação

9. A necessidade de aceitação social e reconhecimento 10. A necessidade de atividade sexual

11. A necessidade de estar livre de assédio (harassment), incluindo não ser continuamente ameaçado

12. A necessidade de recreação”

A lista pretende representar o que cada ser humano “deve ter se quiser continuar a viver e funcionar” (Braybrooke, 1987, p. 40). Para ele, enquanto as condições humanas de vida na Terra permanecerem, sua lista não precisará de alterações, e pretende, assim, ser uma referência objetiva e universal sobre as necessidades humanas. A primeira parte da lista está fundamentada em noções de funcionamento físico e a segunda em noções de funcionamentos como um ser social (Braybrooke, 1987). Cada uma dessas necessidades está associada com um Padrão Mínimo de Provisão sensível às variações entre as pessoas, considerando-se as diferenças de temperamento, diferenças psíquicas e de circunstâncias. O Padrão Mínimo de Provisão possui uma média, um mínimo e um máximo considerando-se a População de Referência. Assim, a provisão mínima pode ser mais alta ou mais baixa, desde que atenda ao Critério (Criterion). O Critério determina que as necessidades devem ser supridas a fim de permitir um funcionamento normal nas funções sociais que as pessoas exercem. Segundo o Critério, pode-se considerar que as necessidades estão supridas quando as pessoas possuem o que

é "indispensável para a mente ou o corpo na execução das tarefas atribuídas a pessoa com uma determinada combinação básica de papéis sociais, ou seja, os papéis de pai, chefe de família, trabalhador e cidadão" (Braybrooke, 1987, p. 48).

A População de Referência é aquela a qual o Princípio da Precedência se aplica. O Princípio da Precedência requer que as necessidades sejam atendidas antes das preferências, tendo absoluta prioridade na proteção pelas políticas públicas. Mais do que isso, o Princípio demanda um compromisso mínimo das pessoas com as necessidades das demais. Quando as pessoas aceitam o Princípio da Precedência, estão concordando que as necessidades de todos devem ser supridas com prioridade, inclusive sobre suas próprias preferências. A noção de necessidades deve, assim, ser compartilhada pela População de Referência para que seja possível a aplicação do Princípio da Precedência. Sem essa noção compartilhada de necessidades, não é possível concordar com uma proteção comum, já que se perde o aspecto comum e compartilhado que fundamenta as proteções. Um sentido comum das necessidades é requerido até mesmo em termos linguísticos. Por mais que outras culturas possam ter termos equivalentes às necessidades, a exigência da compreensão comum das necessidades deve refletir a linguagem comum utilizada cotidianamente (Braybrooke, 1987).

Para identificar a População de Referência, a Lista e o Padrão Mínimo, Braybrooke (1987) determina a importância de um subconjunto linguístico auto- governado (self-governing linguistic subset), o Selfgovliset. Tal subconjunto garante, inclusive em termos linguísticos, que a noção de necessidades é efetivamente compartilhada. Ele nos desafia a imaginar que cada membro da Selfgovliset proponha uma lista das necessidades, dos padrões mínimos e da população pela qual acredita ser responsável (população de referência). Ao se estabelecer um ranking, do membro menos para o mais generoso, Braybrooke sugere que seja selecionada como referência as sugestões do sujeito em relação ao qual 90% das demais pessoas podem ser consideradas mais generosas. As listas desse sujeito, posteriormente chamado de The Legen (Brock, 1994), servirão como referência de forma a garantir que praticamente todas as pessoas que se incluirão na População de Referência concordem tanto com a Lista, como com o Padrão Mínimo e a aplicação para todos do Princípio de Precedência. A lista, assim, não poderá ser vista como fraudulenta ou abusiva por nenhum membro da População de Referência (Braybrooke, 1987).

O autor acredita que sua teoria é uma versão melhorada do utilitarismo2, a qual nomeia utilitarismo sem utilidade ou quase-utilitarismo. No lugar da felicidade, coloca as necessidades, e no lugar do cálculo utilitarista, Braybrooke propõe um Censo (Census Notion) sobre como cada política pública está protegendo as necessidades das pessoas. Devido ao Princípio da Precedência, sempre deverão ser priorizadas as políticas de provejam as necessidades do maior número, mesmo que algumas pessoas

prefiram políticas diferentes. Tal base quase-utilitarista poderá permitir a satisfação das

preferências, mas o Princípio da Precedência não permite que isso seja realizado sobre o sacrifício de qualquer necessidade. As necessidades são criadas por comunidades aprovando projetos e considerando os meios para a realização de tais projetos como necessidades, o que não impede que tais comunidades aprovem projetos mais extensos que vão além das necessidades de todos (Macintosh, 2006). Quando as necessidades estão providas e ainda há recursos, o respeito à liberdade das pessoas requer que as preferências também possam ser supridas (Braybrooke, 1987).

A teoria de Braybrooke apresenta uma lista do que considera que sejam necessidades fundamentais para todas as pessoas, quer elas assim as considerem, quer não. Argumenta, ainda, que tais necessidades possuem prioridade sobre os demais bens sociais em todas as políticas públicas, ainda que algumas pessoas prefiram outras configurações para essas políticas. Cada uma das necessidades deve ser suprida de acordo com o Critério do funcionamento de uma pessoa normal, com várias funções na sociedade, de forma que o suprimento lhe permita exercer adequadamente todas essas funções. A teoria de Braybrooke, assim, próximo da teoria de Doyal e Gough, apoia-se tanto na ideia de um sujeito universal como na de uma pessoa típica, com funções regulares na sociedade. Ou seja, as necessidades são uma condição humana estrutural e são as mesmas para todas as pessoas, mas o suprimento de cada uma delas tem como parâmetro as funções humanas típicas na sociedade, que possuem um componente histórico e cultural na sua determinação.

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O utilitarismo é uma corrente teórica que mensura tanto o aspecto moral como o justo das ações individuais e decisões políticas por meio do cálculo de utilidade dessas ações e decisões. De forma resumida, a utilidade é determinada por dois princípios: o da maximização do prazer e o da redução da dor. Para o utilitarismo, uma ação é moral ou justa quando os seus resultados produzem a maximização do prazer ou a redução da dor geral. Fonte: Kymlicka, Will. Filosofia Política Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.. e