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2.1. A impossibilidade da objetividade

2.1.4. A prioridade das liberdades e as necessidades humanas

Os autores deste grupo argumentam em favor da prioridade das liberdades no estabelecimento das regras da convivência coletiva. A sociedade, para eles, não deve

funcionar como um limitador das liberdades das pessoas, mas como um protetor e promotor dessas liberdades. Os limites possíveis são aqueles da própria convivência comum: não são toleradas posturas que violem as liberdades dos demais. O cálculo entre as restrições e as proteções deve, assim, preservar os benefícios da vida coletiva e favorecer as escolhas individuais.

A medida entre as proteções e intervenções, no entanto, representa diferenças importantes entre as propostas analisadas. Na teoria de Ronald Dworkin, por exemplo, a igualdade de recursos é defendida como uma fórmula fundamental para a proteção das escolhas das pessoas, como um mecanismo sem o qual não é possível garantir a igualdade e as liberdades de todos. Já para Friedrich August von Hayek e Robert Nozick, as perspectivas distributivas violam as liberdades na medida em que forçam algumas pessoas a custear objetivos de outras de forma compulsória. Para Hayek, a principal justificativa para essa consideração é a de que ela viola o caráter espontâneo da sociedade sobre o qual as pessoas se organizam para realizar suas escolhas. E longe de funcionarem para a promoção dos interesses de todos, distribuições compulsórias protegem apenas os interesses de algumas pessoas onerando deliberadamente as demais. Para Nozick, por sua vez, privar as pessoas de dispor de seus recursos como quiserem viola o direito fundamental da posse de si, onde cada pessoa deve ter o direito inalienável sobre tudo o que produz ou adquire. Assim, há variações profundas entre as teorias no que consideram proteção e/ou violação das liberdades.

Os três autores recusam-se a definir as necessidades humanas por acreditar que apenas as próprias pessoas podem defini-las para si. Determinar as necessidades para todos é compreendido como uma violação do espaço dos indivíduos, ainda que os autores divirjam entre si sobre as justificativas para essa consideração. No âmbito dessas teorias, a liberdade deve ter prioridade sobre outras dimensões da vida social, sendo para Hayek e Nozick uma prioridade que se estende inclusive sobre as provisões das necessidades das pessoas e, para Dworkin, uma prioridade em nome da qual se garantem os recursos para essas provisões, ainda que não se possa determinar o seu conteúdo. A impossibilidade da determinação das necessidades é apresentada dentro da diversidade das teorias como parte do respeito às liberdades e protagonismos individuais que defendem.

É possível afirmar, no entanto, que a construção dessas propostas não apenas protegem, mas pressupõe um protagonismo fundamental de todas as pessoas. Ou seja, ao sustentar que as necessidades remetem a um domínio individual ou privado da vida, estes autores supõem que todas as pessoas são dotadas de características que lhes permitem ser efetivamente responsáveis por elas. No que se refere às necessidades, esse é um empreendimento que requer, ao menos, um nível satisfatório de exercício da razão e de um exercício de produtividade. Tais teorias, no entanto, relegam as relações de dependência e ignoram o fato de que algumas pessoas não são capazes de lançar mão deste protagonismo, seja porque possuem impedimentos corporais, seja por barreiras sociais que impedem ou minam o desenvolvimento deste protagonismo (Kittay, 2005b; Kittay; Carlson, 2010; Nussbaum, 2007).

O protagonismo pressuposto considera as relações de dependência e os afetos interpessoais em termos que incrementa a situação de vulnerabilidade de pessoas dependentes, consideradas socialmente inferiores ou com impedimentos cognitivos - sugere que os sujeitos protagonistas devem se responsabilizar individualmente por suas necessidades. Há a exigência de que não apenas que as necessidades dos indivíduos estejam em um domínio privado das vidas, mas também as necessidades daquelas pessoas que não são protagonistas nos termos exigidos por estes autores, seja de forma temporária ou permanente. Isso trás alguns questionamentos importantes que não são adequadamente tratados abordados. É possível argumentar, por exemplo, que as pessoas dependentes e as pessoas que não possuem as características presumidas pelas teorias não gozam da mesma liberdade e, certamente, não compartilham a igualdade que as teorias acreditam conferir a todas as pessoas. Se estes autores acreditam que determinar as necessidades de alguém que não seja o próprio sujeito é uma violação de suas liberdades, como relegam de forma tão pouco elaborada as necessidades das pessoas dependentes às determinações dos seus supostos provedores? Como garantir que a determinação e provisão realizada no âmbito privados das vidas não impliquem violações para esses dependentes sem alguma noção pública de necessidades humanas?

Da forma como estão desenhadas, estas teorias não protegem igualmente as liberdades de todas as pessoas, submetendo as necessidades de algumas às determinações e provimentos das demais sem maiores cuidados com as necessidades das primeiras. Isso é ainda mais grave ao se considerar que essa submissão acontece em

momentos da vida ou vidas inteiras de pessoas que estão em situação de dependência, o que as torna ainda mais vulneráveis: precisam que outras pessoas assumam por si o protagonismo ao qual estão temporária ou permanentemente impedidas. Estes autores recusam uma determinação pública das necessidades para não violar liberdades, mas correm o risco da violação das liberdades de pessoas dependentes ou diversas nos âmbitos privados. Na medida em que relegam as necessidades dos mais fracos às decisões exclusivas dos sujeitos considerados protagonistas, deixam de proteger suas liberdades com a mesma intensidade que protegem as das demais pessoas. É uma postura que certamente favorece alguns sujeitos em detrimento dos outros.