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2.3. Necessidades Humanas como determinação histórica

2.3.1. Karl Marx

A noção de necessidades na obra de Karl Marx, apesar de fundamental para a sua teoria, não é trabalhada conceitualmente de forma unívoca (Heller, 1986). Na verdade, Marx dá sentidos diferentes para as necessidades em vários momentos da sua obra e, mesmo, dentro de uma única obra. Ainda assim, é possível afirmar que, de todos os autores aqui apresentados, Marx é o que mais confere às necessidades um caráter histórico e culturalmente determinado. Por meio da análise das relações sociais e econômicas da sociedade capitalista, Marx demonstra como as necessidades estão fundamentadas na estrutura da sociedade e no seu modo de produção. Nesse sentido, sociedades com estruturas distintas podem produzir relações e necessidades absolutamente diferentes, de forma que se torna obsoleta a tarefa filosófica assumida pelo grupo anterior, de determinar objetivamente tais necessidades em um nível transsocial.

As próprias necessidades naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, moradia, etc, são diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das assim chamadas necessidades básicas, assim como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depende, por isso, grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas também essencialmente sob que condições e, portanto, com que hábitos e aspirações de vida, se constituiu a classe dos trabalhadores livres. (Marx, 1988: 137)

Para Marx (1988), as necessidades surgem historicamente e não apenas biologicamente, de forma que são decisivos o elemento cultural, a moral e os costumes na sua determinação. A satisfação das necessidades é parte integrante da vida ordinária de pessoas em uma classe de determinada sociedade. Pode-se, assim, determinar as necessidades ao se perguntar aos membros de uma classe em determinado período histórico o que consideram que deve ser suprido para sentirem que sua vida é regular (Heller, 1986; Marx, 1988). O tamanho e o conteúdo dos requisitos podem ser diferentes nos distintos momentos e classes, de forma que nenhum produto em si tem a propriedade de ser ou não um produto de luxo ou uma necessidade. Determinar algo como uma necessidade significa que é utilizado ou possuído pela maioria da população, considerando-se sua posição na divisão social do trabalho. Assim, o que não pertence

por costume à classe trabalhadora é frequentemente considerado um artigo de luxo (Heller, 1986; Marx, 1988).

Mas para além desse sentido histórico e social das necessidades, Marx confere às necessidades um sentido também econômico e filosófico. As necessidades são centrais para ele porque são parte da condição humana e direcionam a atividade humana mais fundamental: o trabalho. Para Marx, o trabalho é o meio pelo qual os seres humanos se objetivam na sua relação com a natureza. Há um metabolismo eterno entre os seres humanos e a natureza que é mediado pelo trabalho e determina a totalidade das relações sociais (Marx, 1988). Isso significa que não há um objeto passivo do trabalho, como a modificação unilateral da natureza pelos seres humanos. O movimento do trabalho é duplo: os seres modificam a natureza para suprir uma necessidade e, ao mesmo tempo, modificam a sua capacidade produtiva, ou seja, a si mesmos. Ao modificar a natureza, os seres imprimem no objeto do trabalho sua força, suas habilidades e conhecimentos, de forma que, mais do que um objeto modificado, o produto é “um trabalho que se fixou em um objeto, faz-se coisal, é a objetivação”. (Marx, 2004, p. 80 - grifos no original).

Quando é destinado ao suprimento de necessidades, o trabalho humano produz valor de uso. E para além do suprimento das próprias necessidades, quando a finalidade da produção leva em conta o suprimento das necessidades dos outros, o produto adquire também valor de troca e pode tornar-se uma mercadoria (Marx, 1988). O valor de troca apenas se realiza na relação social da troca, assim como o valor de uso apenas se realiza no consumo. Segundo a distinção de Agnes Heller (1986), os valores de uso e de troca possuem, respectivamente, sentidos não econômicos e econômicos para as necessidades na obra de Marx. Para Heller (Heller, 1986, p. 22):

“a redução do conceito de necessidade a necessidade econômica constitui uma expressão da alienação (capitalista) das necessidades em uma sociedade na qual o fim da produção não é a satisfação das necessidades, mas a valorização do capital, na qual o sistema de necessidades está baseado na divisão do trabalho e a necessidade só aparece no mercado, sob a forma de demanda solvente”.

Daí decorre a ideia marxista contemporânea de que as necessidades das pessoas estão em contradição com as necessidades do capital (Gough, 2003). As necessidades das pessoas são múltiplas e complexas, enquanto as necessidades do capital são simples e quantificáveis (Gough, 2003; Heller, 1986; Marx, 1988), podendo ser resumidas em “expandir suas ganâncias... administrando o risco” (Gough, 2003, p. 32). Em detrimento da proteção às necessidades humanas, a manutenção das relações capitalistas de produção gera necessidades tais como: uma ordem jurídica que proteja a propriedade privada e que seja baseada no dinheiro, um aparato ideológico que legitime a ordem burguesa, uma infraestrutura que possibilite a produção e circulação de mercadorias, uma organização que favoreça a capacidade produtiva da classe trabalhadora e sua reprodução, dentre outras (Gough, 2003). Marx (1988) acreditava que tais necessidades solapavam as necessidades dos trabalhadores, mas a partir da leitura de Antonio Gramsci, os marxistas contemporâneos passaram a defender que a correlação de forças entre as classes se refletem no estabelecimento das prioridades entre tais necessidades. Isso significa, em vários momentos, que a proteção das necessidades dos trabalhadores ganha força porque pode favorecer ao capital. As políticas sociais, por exemplo, reduzem o descontentamento dos trabalhadores e criam a ilusão de que o sistema capitalista é bom para elas. Ou seja, as políticas sociais podem fazer parte do aparato ideológico necessário para manutenção do capital (Gough, 2003).

Mas para Marx (1988), a contradição entre as necessidades humanas e as necessidades do capital são ainda mais profundas do que a mera política vigente utilizada na sua satisfação, constituindo uma violação irremediável para a condição humana. Ele acredita que, ao retirar as necessidades e o valor de uso do centro da produção, a sociedade capitalista subverte a função humana do trabalho. Ao fazê-lo, a propriedade privada aliena as pessoas dos meios e dos produtos do seu trabalho e coloca a condição humana em contradição com a existência (Marx, 2004). Como o trabalho é a atividade humana mais fundamental, por meio da qual os seres se objetivam no mundo e suprem suas necessidades, uma produção que os aliena tanto da verdadeira função social do trabalho (produtor de valor de uso) como da objetivação de si no produto, torna-lhes estranhos ao próprio trabalho e o próprio trabalho estranho a eles (Marx, 2004). Tal estranhamento faz com que as pessoas se sintam desconfortáveis com sua atividade laboral, e a própria atividade vital no mundo torna-se fonte de lástima e

desprazer para a classe trabalhadora. Apenas para sobreviver as pessoas vendem sua força de trabalho no mercado, de forma que o trabalho deixa de ser a satisfação das necessidades tornando-se um meio para satisfazer necessidades fora dele (Marx, 2004, p. 83),

Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem [trabalhador] só se sente como um [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos, etc, e em suas funções humanas só se sente como animal. O animal se torna humano, e o humano, animal. ... Comer, beber, procriar, etc, são também, é verdade, funções genuína[mente] humanas. Porém, na abstração que as separa da esfera restante da vida humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são [funções] animais.

Para esse autor, assim, tanto as necessidades como as formas sociais e econômicas de seu suprimento se determinam dialeticamente e determinam, por consequência, a totalidade das relações sociais. Não é possível falar em necessidades humanas de forma dissociada dos meios e fins da produção de uma determinada sociedade, além das implicações de tais elementos na relação do trabalhador com o seu produto. Da mesma forma, não é possível analisar adequadamente quaisquer formas de relação social sem o componente econômico que as determina: a organização social em torno do trabalho e o lugar das necessidades nessa organização. Isso significa que o estudo das necessidades humanas é social, política e historicamente localizado. Mesmo em uma única sociedade, com o mesmo modo de produção ao longo do tempo, as necessidades mudam e se transformam. A única determinação objetiva possível é aquela que considera as necessidades para uma classe em determinado período histórico, sendo que as necessidades podem ser diferentes para a mesma classe em outro período histórico considerado. É a vida da pessoa típica que pode servir de referência para as necessidades, sem qualquer expectativa de permanência de tais necessidades no futuro ou em outras sociedades. A média dos elementos para uma vida típica é, assim, o único modelo possível de determinação das necessidades humanas (Marx, 1988, 2004).