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2.2. Necessidades Humanas Objetivas

2.2.1. Len Doyal e Ian Gough: necessidades como autonomia e saúde

Len Doyal e Ian Gough (1994) apresentam uma proposta teórica que pretende determinar parâmetros transculturais objetivos e universais para as necessidades

humanas. Para além do que as pessoas desejam individualmente, Doyal e Gough acreditam que há objetivos universalizáveis, sem os quais as pessoas podem sofrer graves danos ou prejuízos na busca pelos seus objetivos de vida. As aspirações variam de pessoa para pessoa, mas as necessidades básicas são iguais para todas elas. Os autores argumentam que tanto para escolher os fins individuais como para realizá-los, as pessoas necessitam de alguma capacidade de escolha e de uma forma existencial apta a permitir seu desempenho nesses processos. Nesse sentido, Doyal e Gough (1994) propõem que as necessidades básicas de todos os seres humanos são a saúde e a autonomia crítica.

Estabelecer a saúde e a autonomia crítica como necessidades humanas visa impedir que as pessoas sofram danos na busca de seus objetivos de vida, garantindo as condições necessárias para a participação em todas as formas de vida (Doyal; Gough, 1994; Gough, 2003). A autonomia possibilita a capacidade de agência (agency), ao escolher seus objetivos e determinar os meios necessários para a sua concretização, bem como a responsabilidade individual pelas próprias escolhas. Permite que se reconheça e seja reconhecido como alguém “capaz de fazer algo e responsável por fazê-lo” (Doyal; Gough, 1994: 82). E a saúde física promove a funcionalidade regular dos corpos de forma a promover a participação. Mais do que a mera sobrevivência, a satisfação da necessidade de saúde física, permite aos indivíduos a realização das atividades cotidianas e permite que aprendam novas habilidades (Doyal; Gough, 1994).

A promoção da participação é, assim, um fim importante, mas não final, para a teoria. Para Doyal e Gough, a participação tem dois níveis de consolidação. No primeiro nível, as pessoas estão aptas a participar adequadamente da vida em sociedade, sendo autônomas na determinação e realização dos seus fins de forma considerada normal em uma sociedade. No segundo nível, as pessoas conseguem questionar as próprias formas de vida disponíveis na sociedade em que vivem e dedicar-se à transformação de determinadas normas em um nível mais sofisticado de escolhas que corresponde à autonomia crítica. Há, assim, duas concepções de autonomia para os autores, a autonomia como liberdade de agência e a autonomia crítica, que “leva à participação democrática no processo político em qualquer nível” (Doyal; Gough, 1994, p. 100). O objetivo final da teoria é mais uma espécie de liberação que só pode ser alcançada após os níveis importantes, porém mais baixos, de participação.

A liberação é, então, a referência principal para o padrão estipulado por Doyal e Gough (1994) na satisfação das necessidades. Tal padrão deve ser o que chamam de “padrão ótimo” e se constitui em um “padrão de níveis ótimos críticos de saúde e autonomia” (Doyal; Gough, 1994, p. 206). O padrão ótimo não pode ser fixo porque os avanços democráticos e tecnológicos permitem seu incremento ao longo do tempo. Diferente das necessidades básicas, que são fixas e transculturais, os padrões de provisão mudam quando se mudam as exigências sociais para o seu suprimento e as tecnologias disponíveis. Assim, para viabilizar a identificação desses padrões, os autores propõem que a satisfação ótima das necessidades seja empiricamente vinculada aos melhores rendimentos disponíveis nas nações com mais altos níveis de saúde física e autonomia crítica (Doyal; Gough, 1994). Ou seja, o padrão ótimo não representa o padrão máximo, mas aquele socialmente viável no momento histórico em que o padrão é implementado.

Um outro aspecto cultural e histórico da teoria de Doyal e Gough (1994) diz respeito aos satisfatores das necessidades humanas. Cada cultura possui satisfatores diferenciados, como habitação, comida, que podem variar substancialmente entre si. Tais satisfatores, no entanto, devem possuir características de satisfação universais, de forma que constituam necessidades intermediárias (necesidades intermédias). Doyal e Gough (1994) propõem uma lista dessas necessidades, mas ressaltam seu caráter arbitrário, acreditando que os elementos da lista são meras etiquetas que apenas direcionam a provisão do que é efetivamente fundamental. São as necessidades intermediárias:

Alimentos nutritivos e água limpa

Alojamentos adequados à proteção contra os elementos Ambiente de trabalho desprovido de riscos

Meio físico desprovido de riscos Atenção sanitária apropriada Segurança na infância

Relações primárias significativas Segurança física

Educação adequada

Segurança no controle de nascimentos, gravidez e parto (Doyal; Gough, 1994, p. 202 e 203)

Para os autores, ainda, há a exigência de pré-condições políticas e materiais importantes para a satisfação das necessidades (Doyal; Gough, 1994). As primeiras são as condições de procedimento que permitem a identificação racional e coletiva das necessidades, possibilitam a utilização do conhecimento prático das pessoas nas suas vidas cotidianas e favorecem a resolução democrática dos conflitos que resultam do contraste entre as duas condições anteriores (Gough, 2003). Assim, tanto as descobertas científicas recentes como os parâmetros culturais das pessoas são fundamentais na satisfação das necessidades, sendo o procedimento para sua consideração uma condição para tal satisfação. No nível econômico, por sua vez, a produção e distribuição adequada dos satisfatores, a transformação desses satisfatores em meios efetivos para provimento das necessidades e a garantia da sustentabilidade desse processo ao longo do tempo são também pré-condições para as necessidades humanas (Gough, 2003). Ou seja, tanto a produção como a distribuição deve destinar-se às necessidades de forma sustentável para que sua satisfação seja possível.

Na teoria de Doyal e Gough, as necessidades humanas básicas pretendem-se universais e objetivas: são aquelas que todos os seres humanos precisam para ter uma vida adequada. No entanto, é possível identificar que tais necessidades, antes de serem meios para as realizações humanas, são também características humanas que os autores pretendem promover. Segundo eles, a autonomia crítica permite às pessoas o protagonismo nas suas escolhas e a saúde o funcionamento regular para alcançar os seus objetivos de vida. Há uma circularidade na teoria: considera-se necessidade universal dimensões ou características que, se protegidas, corresponderão a um modelo único de ser humano. As necessidades da autonomia e da saúde – considerando-se por saúde as características corporais consideradas típicas ou ordinárias das pessoas – representam valores ou expectativas sobre como os seres humanos devem ser.

Já no âmbito dos satisfatores, ou necessidades intermediárias, há uma lista que supõe o que cada pessoa necessita para tornar-se o sujeito universal proposto ou presumido pelas necessidades básicas. A necessidades intermediárias, diferente das

primeiras, são históricas e suscetíveis às mudanças culturais e tecnológicas, bem como à deliberação pública e às decisões coletivas. O parâmetro para o suprimento de cada uma, chamado padrão ótimo, é aquele mais elevado disponível no momento histórico considerado. Os satisfatores, assim, que parecem corresponder mais diretamente ao que as pessoas necessitam para realizar seus planos de vida, não podem ser considerados universais porque as possibilidades históricas sempre se alteram. Ou seja, a objetividade e universalidade proposta pela teoria só está clara até os limites dos contornos de seres humanos, desenhados como necessidades básicas.

2.2.2. David Braybrooke e a distribuição entre necessidades e