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2.3. Necessidades Humanas como determinação histórica

2.3.2. O Enfoque das Capacidades de Amartya Sen

O enfoque das capacidades de Amartya Sen propõe que uma distribuição justa é aquela que garante às pessoas um conjunto de capacidades. Para Sen (2001, 2007), as propostas de justiça como distribuição de recursos, oportunidades ou bens-primários não permite a consideração do que as pessoas podem efetivamente ser e fazer com tais meios. Apenas pode-se garantir que as escolhas das pessoas são genuínas se garante-se a elas um conjunto de capacidades que lhes permita deliberar sobre quais funcionamentos querem ou preferem realizar. As capacidades, assim, são um reflexo das liberdades que as pessoas efetivamente têm para poder fazer suas escolhas e deliberar sobre os seus estilos de vida. A proposta para o autor é que suas combinações devem permitir uma série de funcionamentos para cada pessoa, sendo este os vários tipos e objetivos de vida socialmente valiosos.

Para Sen (2010), as teorias de justiça normalmente assentam-se em um conceito estreito de liberdade, em que sua garantia é identificada com a proteção contra imposições injustas. Quando também estão preocupadas com a igualdade, tais teorias propõem a garantia de meios para que cada pessoa possa alcançar os seus objetivos de vida. Essas dimensões da liberdade e da igualdade, para o autor, são insuficientes porque ignoram em uma dimensão fundamental as desigualdades sociais existentes. Dadas essas desigualdades, é razoável supor que as pessoas podem estar acostumadas a uma situação de subalternidade e ter suas escolhas limitadas por suas características ou posições desvalorizadas (Sen, 2001, 2007). O exemplo típico de Sen (2001) é o caso das dona-de-casa, que afirmam ter escolhido abrir mão de uma carreira para cuidar da casa e dos filhos. Nesse exemplo, não se é possível confiar no caráter livre da escolha, visto que vive-se em sociedades nas quais as mulheres são oprimidas e condicionadas a escolher funcionamentos menos valorizados socialmente, sem ter garantidas capacidades que lhes permitam outros funcionamentos. A liberdade, assim, também diz respeito às condições e habilidades individuais para escolher os próprios objetivos. Para Sen (2010), apenas se é possível garantir a liberdade se a garanta acontece também no âmbito das possibilidades de vida.

O enfoque das capacidades implica um deslocamento dos meios para as oportunidades reais de escolha (Sen, 1993, 2001, 2007, 2010). Diferente das outras teorias, as vantagens individuais são julgadas segundo a capacidade de uma pessoa para fazer coisas que tenha razão para valorizar.

A capacidade é principalmente um reflexo da liberdade para realizar funcionamentos valiosos. Ela se concentra diretamente sobre a liberdade como tal e não sobre os meios para realizar a liberdade, e identifica as alternativas reais que temos. Na medida em que os funcionamentos são constitutivos do bem-estar, a capacidade representa a liberdade de uma pessoa para realizar bem-estar. (Sen, 2001, p. 89)

Para Sen (2010), o centro da distribuição deve ser as capacidades, e não os funcionamentos, por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar, embora se possa argumentar que as realizações sejam mais mensuráveis do que as capacidades em si, a dimensão da escolha é fundamental para a perspectiva de liberdade que ele defende ser: uma que abarque tanto as oportunidades de escolha como as capacidades das pessoas de realizar as coisas que valorizam. E, segundo, porque uma proposta que foque os funcionamentos em detrimento das capacidades pode funcionar como um limitador das liberdades em si, ao contrário do que se propõe. Cada pessoa deve ser capaz de realizar suas próprias escolhas, tendo garantidas as condições sociais e um rol amplo de oportunidades que as suportem (Sen, 2001). O autor é um liberal ao sugerir que é parte fundamental da proteção das liberdades garantir que apenas as próprias pessoas determinem quais funcionamentos pretendem realizar. No entanto, difere do liberalismo ao propor que as capacidades sejam garantidas como parte da proteção às liberdades, ainda que no entendimento liberal isso possa ser considerado uma violação. No debate com o liberalismo, Sen (2010, p. 330 – grifos no original) defende que “temos que distinguir entre dar certa prioridade à liberdade ... e a exigência extremista de conceder uma prioridade lexicografica à liberdade.

O enfoque das capacidades, para o autor, deve ser amplo o suficiente para cobrir várias dimensões da vida. É um enfoque geral, que propõe as vantagens interpessoais sejam julgadas desde a perspectiva das liberdades e oportunidades em um sentido amplo, e não dos recursos, ingressos ou utilidades. Todavia, não há propostas sobre

como deve ser o funcionamento da sociedade, como em John Rawls (2000), e não há a exigência de que as políticas sociais sejam orientadas para a igualdade de capacidades, como se pode inferir do grupo das necessidades objetivas. Mas embora não apresente propostas sobre as decisões políticas, o enfoque se fundamenta amplamente na importância do exercício racional individual para a realização das escolhas, e no exercício da razão pública compartilhada para o delineamento do justo (Sen, 2010). Determinar a garantia das capacidades e as possibilidades de sua avaliação e mensuração é uma tarefa coletiva, e por isso Sen (2010, p. 142) se recusa a fornecer uma lista de capacidades:

“Em verdade, a conexão básica entre o raciocínio público, por uma parte, e as exigências das decisões sociais participativas, pela outra, é chave não só para o desafio prático de fazer mais efetiva a democracia, mas também para o problema conceitual de fundar uma ideia articulada de justiça social sobre as exigências da escolha social e da equidade.”

O autor sustenta, assim, que as discussões democráticas são centrais tanto para a garantia das necessidades como para a formação dos valores públicos compartilhados. É por meio do discurso público que surgem novas normas e prioridades, bem como sua difusão nos diferentes espaços, de forma que a conjuntura histórica e social é central para qualquer proposta que se pretenda justa. Os valores fundamentais para a democracia não estão fechados, mas são parte de um processo de construção coletiva constante que tem maior chance de ser compartilhado se construído no contraste público das demandas e necessidades de todos. Nesse sentido, tanto a justiça como as capacidades possuem um caráter discursivo importante. Para Sen (2010, p. 367), a “avaliação necessária para a ponderação da justiça não é um exercício solitário, porém mais bem uma prática discursiva (...) A ‘justiça sem discussão’ pode ser uma ideia opressiva”. A tentativa de determinação objetiva das necessidades, deslocada da construção coletiva tem, assim, um caráter paternalista e opressor. A deliberação pública, para Sen (2010), é a única instância legítima para as decisões relativas à justiça e distribuição.

Sen não fala diretamente em necessidades humanas, mas seu enfoque é bastante próximo das teorias sobre necessidades. Suas reflexões sobre as necessidades compartilham com as capacidades a característica de possuir valor intrínseco, não servindo meramente como meio para as realizações individuais. Diante do abandono liberal das necessidades das pessoas à dimensão privada, tanto o debate sobre necessidades como sobre capacidades buscam funcionar como parâmetros da distribuição para favorecer as escolhas e realizações livres. A teoria das necessidades de Len Doyal e Ian Gough, por exemplo, foi amplamente influenciada pelo enfoque das capacidades de Sen e tem o resultado próximo da promoção dos funcionamentos e escolhas livres ao colocar a autonomia e a saúde como as necessidades básicas (Doyal; Gough, 1994; Gough, 2003). A teoria de Braybrooke (1987) também se coloca de forma semelhante, embora apresente um arranjo teórico diferenciado, na qual é possível identificar que as capacidades funcionam como critérios: a capacidade de funcionar adequadamente nos papéis sociais é o Critério para o suprimento das necessidades. Assim, as capacidades possuem semelhanças importantes com as necessidades, podendo ser entendidas ora como sinônimos e ora como critérios para o suprimento das necessidades.