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A ação de civilizar: prosa e verso dos fundadores

4 A CIDADE LETRADA MANDA NOTICIAS: O CLUB E A IMPRENSA

4.1. A ação de civilizar: prosa e verso dos fundadores

O anúncio da Casa La folie faz uma referência implícita à civilização. O que é? Que significado moderno guarda a palavra exaustivamente citada? Para responder é preciso voltar às análises do sociólogo Norbert Elias, trabalhadas no capítulo anterior. Afinal, a expressão é forjada no ancien régime. O lugar da sociogênese do conceito é a França. A fonte de inspiração para muitos freqüentadores dos salões literários:

Conceitos como politesse ou civilité tinham, antes de formado e firmado o conceito

civilisation, praticamente a mesma função que este último: expressar a auto-imagem

da classe alta européia em comparação com outros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, e ao mesmo tempo caracterizar o tipo específico de comportamento através do qual essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgava mais simples ou mais primitivo80.

Analisando escritos de Mirabeau, o pai, (1749-1771), Elias encontra o termo associado aos verbos cultivé – “metáfora” de cultivar o próprio comportamento – e policé – de policiar o “padrão” de boas maneiras – objetivando sempre a comparação com aqueles indivíduos mais simples e socialmente inferiores. Neste sentido, o nobre fisiocrata compreende que “o homme civilisé deriva uma característica geral da sociedade: a civilização” (ELIAS, 1994, p.55).

Conceito moderno que é desdobrado pelos interesses franceses e ingleses nos tempos da expansão capitalista. Ali a palavra passa a ser sinônimo de aprimoramento e desenvolvimento dos povos. Assim, passa a ser utilizada segundo pretensões eurocêntricas, acoplada às expressões cultura e progresso. Fato que acentua o neologismo e realça seus inúmeros usos, por exemplo, transformado agora em jargão político pelas lideranças da reação pós-colonial. Ou seja, os letrados latino-americanos ao questionar as sobrevivências da antiga

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ordem, absorvem, no entanto, “as convenções de estilo, as formas de intercâmbio social, o controle das emoções, a estima pela cortesia, a importância da boa fala e da conversa, a eloqüência da linguagem” (ELIAS, 1994, p. 52). Etiquetas que as academias e salões modernos consagram. Intercâmbios que a Casa La Folie, o Echo e o Club traduzem na pequena cidade, condenando in verbis os “homens brutos” e seu apego ao obscurantismo do passado.

Sobre a idéia de civilização ligada à cultura, Victor Hell (1989:4) observa um artigo onde o positivista Émile Littré (1801-1881) declara que a palavra só aparece no “Dictionnaire de l’Academie a partir da edição de 1835, bastante empregada apenas pelos escritores modernos, quando o pensamento público se fixou no desenvolvimento da história”. Assim, as palavras “cultura” e “civilização” deixam o campo estrito das “boas maneiras” e “etiquetas” e passam a significar “o conjunto das opiniões e de costumes que resulta da ação recíproca das artes industriais, da religião, das belas-artes e das ciências” (LITTRÉ, apud. HELL, 1989). Surge daí a tensão entre incluir homens refinados e excluir homens brutos.

A publicidade da casa La Folie, portanto, possibilita a exibição da “etiqueta”, das “boas maneiras” e o acesso à civilização, no sentido novo que a Belle Époque amalgama. O Club Litterario vai mais adiante. Pretende-se depositário desta nova tradição que cultiva e policia o homme civilisé, em nome da ciência e do progresso. Enquanto, o jornal Echo escritura as demandas que afetam o cotidiano da “civilização” local. Ambos adotam esta tensão que inclui e exclui em nome do mais elevado e refinado das convenções modernas. Neste intento afirmativo, cultura, progresso e civilização passam à condição de sinônimos. Numa acepção plenamente antropológica, que tanto abriga posturas miméticas, como, também, evocam ações criadoras e inventivas de uma identidade brasileira.

A cultura configura, neste caso, a expressão legítima da busca da nacionalidade. Fato que resulta na oposição entre o “conflito social interno” e a “auto-imagem nacional”. Ocorrências comuns nas sociedades pós-coloniais. Querelas difundidas na imprensa e associações envolvidas com os embates e polêmicas sobre nacionalidade e identidade. Principalmente, quando rogadas a língua nacional e sua textura literária, diante dos desafios do iletramento.

AUTÓGRAFO ANO DO TEXTO QUESTÃO 1 QUESTÃO 2 QUESTÃO 3

Francisco Sodré Pereira 1883 Instrução

Pedro Afonso Melo 1883 Instrução

Clóvis Bevilacqua 1883 Povo Instrução

Fernando Paes Barreto 1884 Abolição Instrução

Carlota Eugenia Vilela 1885 Povo Instrução

Samuel Correia Vasconcelos 1886 Civilização Ciência Instrução

Leonor Porto 1886 Abolição Progresso Instrução

Joaquim Nabuco 1887 Liberdade Autonomia Biblioteca

Davino Pontual Filho 1888 Povo Civilização Instrução

Silva jardim 1889 República Povo

Pedro Celso Uchoa 1889 Civilização Biblioteca

Gaston de Orleans (Conde d’Eu) 1889 Ilustração Biblioteca

Martins Junior 1891 Cultura Trabalho

Alexandre José Barbosa 1893 Povo Município

Alcedo Marrocos 1894 Progresso Civilização

Virgilio Galvão 1895 Ciência Civilização

Gaspar Guimarães 1896 Ciência Civilização

Joaquim Correia de Araújo 1897 Povo Instrução

Estácio Coimbra 1897 Pátria República Instrução

José Francisco Góes 1898 Progresso Biblioteca

Eugenio Fialho 1899 Pátria Instrução

Adelmo Costa 1899 Instrução Clubes

Luiza Leonor 1900 Instrução

Moreira Vasconcelos 1900 Cultura Biblioteca

QUADRO 6: Relação de autógrafos do Álbum de Visitas , escritos pelos visitantes

considerados ilustres, entre os anos de 1883 e 1900.

O Club de Palmares encontra-se exatamente nesta encruzilhada pedagógica: ora evoca as reformas debatidas pelos papas intelectuais do movimento de 1870, ora o ufanismo das imagens de uma nação progressista, abençoada pela natureza e forjada pelo panteão de heróis que constroem uma pretendida identidade ao gosto dos românticos. A mensagem deixada pelo tribuno Silva Jardim, em palestra republicana que proferiu na cidade, dia 06 de julho de 1889, reflete bem esta preocupação “pedagógica” e patriótica; antes de tudo, retórica. Inclusive quando relaciona o nome do lugar à presença da flora que se observa exuberante:

Creio bem que, ao impulso do ensino de bons livros, como os que deve possuir uma biblioteca para o povo, conseguirá esta tão gentil cidade de Palmares, cujo nome é já uma canção da natureza, chegar ao grau de desenvolvimento digno de todo o nascido em terra Pernambucana – terra de Mathias, Teotônio, Caneca, Nunes: Terra de liberdade.

O uso retórico de Silva Jardim constitui, portanto, um apanágio para outras palavras- chave como instrução, nação e pátria. Apresentam uma suposta civilização letrada impulsionando sempre o “ensino de bons livros”. Surge indefectível o ideal de “civilizar por cima”. O drama civilizatório que envolve os homens de letras da época, crentes e seduzidos

pelas promessas do progresso. Tempo assimilado como a vitória da ciência sobre o atraso e a ignorância.Um distante sopro das idéias positivistas que formatam o pensamento dos letrados de Palmares, muito mais propensos à retórica ufanista que “patrulha” os salões requintados, as ruas centrais da cidade, praças e confeitarias. Sentimento que a coluna Generalis Extractus expressa na edição do Echo de 15 de junho de 1884:

Civilização é uma coisa difícil de definir. Um nobre japonês, que foi convidado a fazer uma visita a um Club Inglês, instalado em sua terra, não deu boa idéia desta palavra; os anfitriões tendo-lhe oferecido champanhe, duas vezes pediu que enchessem mais uma vez o cálice, dizendo: gosto muito de civilização, gosto muito de civilização... E assim a civilização no entender de muitos entre nós, é o vinho e a luxúria.

Advertidos os leitores, fale-se agora de um visitante do Club que não incorreu neste tipo de embaraço provinciano. O homme civilisé Joaquim Nabuco deixa, em 11 de março de 1887, dois anos antes de Silva Jardim, um autógrafo que diz da civilização numa dimensão política: “é por instituições desta ordem, e somente por elas, escolas, bibliotecas e associações, que poderemos ver Pernambuco, em toda a sua extensão, tornar-se o Estado autônomo e florescente que todos desejamos que ele se torne”. Questão federativa à parte, a palavra de Nabuco, na saudação a Palmares, é retirada da tensão entre kultur e bildung. Ou seja, a identidade particular do grupo (Pernambuco) e o mais elevado e conspícuo representado pelo modelo de autonomia dos modos existentes na França, Inglaterra ou Estados Unidos, louva a iniciativa de associações, escolas e bibliotecas como redentoras da situação de iletramento e ignorância.

Tudo para o proveito do lugar e de sua população. Afinal, a civilização está onde o progresso é aquele modelo já alcançado pelos anglo-saxões. A mesma idéia que aparece no clássico Minha Formação81 (1895), onde Nabuco não se expressa muito diferente da “pontinha de iceberg” que deixou anos antes no Club de Palmares, à época, envolvido pela campanha da Abolição e pela política de “p” minúsculo das eleições parlamentares, constatando, somente alguns anos depois, o que é de fato ser civilizado:

Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo.

O que interessa para o “modernista de 1870” é o que chama política com “P” maiúsculo. Aquela que é história, a “atração do mundo” que ainda mais extenso, é ligado pela

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máquina fantástica (o telégrafo). Portanto, o que “prende” sua inteligência civilizada é a missão que vem de fora, que o Brasil busca traduzir para seu modo de ser em pleno “teatro da humanidade”. O que é uma reserva moral na Formação, uma espécie de auto-elogio tácito, é o mesmo sentimento comum entre os homens de letras e às instituições literárias de final de século. Por exemplo, Nabuco e muitos outros inspiram uma gama de letrados destes clubes à clivagem entre identidade e civilização, para exatamente não cometer-se a “gafe” daquele nobre japonês, observando-se com polidez as lições vindas da Europa. Ou seja, a identidade nacional deve arrastar todos à conquista comum da pátria; enquanto a civilização espelha o mais elevado da humanidade. Elogio e veneração entre os cultores das ciências e letras universais. O modelo de homem instruído que o Club de Palmares almeja alcançar.

Talvez, por isto, o visitante de 1887, defenda a Abolição e concorde imediatamente com o europeu na lavoura tropical. Porém, discrimina a introdução de chineses; considera que o negro livre do cativeiro precisará educar-se para evitar o perigo daquela degeneração e selvageria asiática82. Palavras invertidas para dizer do perigo de não se embranquecer e civilizar a raça no “teatro” nacional, sem o que não se conquista o requisito civilizatório do progresso.

Nas páginas do Echo, seu redator-proprietário, Severino Pereira, diz desta mesma matriz a action de civiliser no “teatro” local. Denuncia o escândalo de cavalos soltos invadindo as ruas centrais. O jornalista cobra providências da Câmara Municipal e considera que o fato acarreta vários prejuízos:

É de imprescindível necessidade que se ponha ordem ao abuso de andar pelas ruas da cidade cavalos a solta. Diariamente se vê entrar matutos tangendo entre aboios os cavalos que se precipitam galopando na rua, atrapalhando assim a vida dos que passam. Hoje é uma criança que pode ser pisada, amanha é um lampião que se quebra, depois uma casa que é invadida, podendo causar estrago às mercadorias que se têm expostas à venda. Palmares é uma cidade e não uma estrada, é uma cidade que tem foros de civilização, cumpre por não consentir por mais tempo este escândalo. (Echo de Palmares, nº. 17 - 02 de dezembro de 1883).

Apesar dos cavalos, chama atenção o uso da expressão “se vê entrar matutos”. Fala que repete o mesmo movimento do anúncio La Folie: “só não entram lá matutos”. O que demonstra a proibição expressa da casa comercial e o desejo de interdição do centro urbano à circulação de tipos mal vestidos, descalços e sem instrução. Pode ser um escravo, mas a alcunha remete mais à figura de um homem livre, mestiço pobre e residente nos arrabaldes da cidade, sítios e estribarias. Se a grande imprensa trabalha com fervor o ideário da

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Regeneração na cidade do Rio de Janeiro – a metáfora urbana para o “embranquecimento” da raça – alarmando nos jornais que “a civilização abomina justamente o mendigo”, ocorre processo similar nos centros urbanos das capitais e, fica evidente, também, o papel das pequenas folhas noticiosas pelo interior do Brasil, na defesa da interdição urbana de tipos descalços, matutos, mendigos e desocupados, em nome do asseio público, da ordem e da beleza do centro comercial, praças e monumentos. Enfim, do processo civilizador inspirado na belle époque tropical.