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O CLUB POST-SCRIPTUM: ORALIDADE E LITERALIDADE

6 CONCLUSÃO: A REPRESENTAÇÃO DA DECADÊNCIA DO CLUB

6.1. O CLUB POST-SCRIPTUM: ORALIDADE E LITERALIDADE

Para efeito da intriga que movimenta os sucessivos processos de “decadência” e “retomada” da associação literária de Palmares, percebe-se claramente a influência de conjunturas nacionais importantes repercutindo na trajetória final do Club que deixou de escrever. Ele esfria durante a Primeira República, mantém sua biblioteca no ostracismo ao longo dos anos vinte e é retomado na condição de recreio familiar nos anos trinta, assim que iniciada a segunda fase republicana. O jornal A Notícia informa na edição de sábado, 08 de julho de 1933, este esforço de retomada: “reinstalada a biblioteca, inaugurada a seção de jogos de salão, a sala de danças e diversão, o salão de conferências e recitais, Palmares ficará com um ambiente de rara elegância, onde se reunirá a sociedade local para passar algumas horas de agradável convívio”.

Uma leitura dos periódicos impressos na cidade, antes do diário A Notícia, demonstra a repercussão de muitos cortes conjunturais nas práticas letradas da cidade que ressoam do Club que escreve. O Echo e a Gazeta de Palmares (1882 – 1885) são representativos dos textos contestatórios; A Semana e o Novo Echo (1892 – 1896) trazem os textos boêmios; O Progresso e o jornal Gazeta (1900 – 1911), a construção simbólica da República, interessada na assimilação da ordem pública, do poder local, da família e da nação republicana. A Notícia, depois destes todos, trata de construir uma memória do Club Litterario adequada às novas demandas dos anos trinta, passando para posteridade a impressão de que a associação fora sempre um “recreio”, um espaço apolítico, somente interessado em festas e lazeres eruditos.

A pergunta sobre o Club que deixa de escrever é, portanto: que mutação da cultura letrada ocorre atingindo os objetivos literários surgidos na segunda metade do século XIX, a ponto de transformá-lo em clube de recreio?

Neste percurso de tempo sobrevém uma circularidade cultural importante. As aproximações e distanciamentos entre oralidade e literalidade marcam as letras no chamado

período “pré-modernista”. Ou seja, as intersecções entre a cultura oral e a cultura letrada se manifestam dinâmica entre os literatos, principalmente em centros urbanos menos desenvolvidos. No traço de sua produção textual pretensamente “erudita”, por exemplo, terminam sedimentando elementos da oralidade e das tradições agrárias do lugar. Afinal, o contexto ideológico onde escrevem não deseja uma cidadania em pé de igualdade com o Estado. Prevalecem, no país, os ditames de uma estadania liberal (CARVALHO, 1980) cujas características marcantes projetam uma sociedade de maioria analfabeta, presa à cultura auditiva muito mais apta ao autoritarismo de coronéis, interventores, militares e governadores. Talvez por isto, nos anos trinta, o mapa do analfabetismo continue inflado e a educação um bem social extremamente elitizado e seletivo, enquanto a literatura contorna as fronteiras da oralidade, apropriando-se de muitos de seus elementos expressivos do folclore e da tradição.

A exceção do costumeiro discurso oral fica por conta dos homens de letras. Movidos pela literalidade (demandada pela difusão do letramento urbano) reivindicam um público leitor mais instruído. Porém, nesta direção, esteticamente extraem da oralidade o estilo rapsodo e informal dos textos em prosa e verso, presentes em muitos escritos brasileiros do inicio do século XX. Afinal, neles surge o cotidiano das populações silenciadas, aparecendo um Brasil mais remoto, ancestral, rural, enraizado, como nos textos de Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato e tantos outros.

Os autores boêmios também são particularmente adeptos desta “oralidade” popular (VELLOSO, 2006), inclusive no grupo de Palmares, na segunda fase do Club Litterario, utiliza-se largamente este recurso estético no arsenal de sátiras, glosas, quadrinhas e trocadilhos publicados na cidade entre 1890 e 1910. Há na produção de Fernando Griz, Fabio Silva e outros a presença marcante da tradição oral, que coloca a “natureza” e o “progresso” frente a frente. A linguagem dos periódicos aqui pesquisados, deste modo, contempla as tentativas de representação da realidade cosmopolita, muitas vezes como uma realidade literal, autônoma, desgarrada dos acontecimentos políticos provincianos. Porém, entre estes elementos transportados para a escrita, apelam abundantemente à intertextualidade que se projeta dos escritos de Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Silva Jardim, Machado de Assis, etc. e da literatura estrangeira mais recepcionada nos círculos intelectuais cariocas e recifenses.

Percebe-se, portanto, que esta estratégia da escrita pré-modernista nada tem a ver com qualquer “imitação” ou “cópia”. Trata-se da manifestação letrada que põe autor e leitor numa rede de práticas e textos onde quer que se reúnam expressões da cultura letrada, independente de ser uma metrópole, cidadezinha, vilarejo, campo ou cidade.

Este corte moderno revela que além de consumidores, muitos dos sócios do Club de Palmares se dispuseram como produtores, movidos pelas necessidades da vida urbana, cuja temática central é a experiência de choque entre a civilização moderna em contraste com o atraso representado pela descrição do pequeno centro urbano, esperando sempre o discurso da “instrução”, do “heroísmo”, do “asseio” e “elegância” daqueles que defendem o progresso das letras e das ciências contra os absurdos da ignorância e do atraso.

O Club é, portanto, parte desta experiência de choque que aparece representada em poemas, contos, anúncios, artigos e charadas escritas no coração da cidade. Metáforas que saem da verve do poeta, passa pelo verbo do cronista e anima o leitor ordinário. Todos eles consumidores que assimilam o verbete “progresso” na sua abundância de sentidos. Afinal, na marcha da história está a civilização; e a modernidade é seu maior empuxo.

A conquista que faz a história acelerar sempre. O sentimento da velocidade do tempo presente na metáfora do trem que embala os sócios do clube de letras e que chega até os versos da rapsódia de Ascenso Ferreira, em1927: “O sino bate, / o condutor apita o apito, / solta o trem de ferro um grito, / põe-se logo a caminhar... // Vou danado pra Catende / vou danado pra Catende / vou danado pra Catende / com vontade de chegar!”.

Neste ritmo privado, individualizado e, apesar do barulho do trem, silenciosamente concorrente, os espaços de convívio urbano e seu lazer pretendem desacelerar, coletivizar e intercambiar os indivíduos, cada vez mais premidos pela diferenciação social e intelectual. Assim, as horas de ócio tendem a quebrar as fronteiras domésticas e comunitárias, para se realizar nas praças e ruas centrais da cidade. Nos endereços temáticos oferecidos privativamente pelos clubes de índole aristocrática, burguesa ou popular. Ali os lazeres tornam- se mercadorias e, como tais, mediadas pelo dinheiro e pelo status de seus freqüentadores. Alguns destes clubes dedicam-se ao ócio benemérito, à transformação das horas de “folga” em proveito de uma finalidade nobre. A criação de bibliotecas, salões literários e científicos acompanham estas tendências. Surgem da doação de bens e recursos para beneficio da “comunidade” letrada.

Práticas que vinculam o livro e a leitura à idéia de passaporte da civilização moderna. Mas, o importante é verificar que tudo isto muito segrega, exclui e hierarquiza: os analfabetos

ficam à margem, e dentro do espectro social letrado, formam-se vários segmentos de produtores e consumidores de linguagens que movimentam a agitada máquina de vapor dos impressos. Novas linguagens e novos suportes procuram representar estes ritmos e ritos da vida moderna. O que é propriamente um lazer fortuito e efêmero – freqüentar estes clubes – passa a se constituir na tarefa de ofício e profissão de fé de propensos literatos.

O Club Litterario de Palmares mistura, deste modo, expectativas letradas que animam a consagração da vida urbana: ali se imprimem textos, acessam-se os livros, promovem-se conferências, concursos, tertúlias e festas que oferecem poesia, música e banquetes. Mas que isto, possibilita a interação dos informes, das estratégias e táticas da mocidade literária e boemia em busca de consagração. A formação de “rodas literárias” onde prosperam a crítica das letras nacionais, o intercâmbio e a assimilação de gêneros e estilos. Contudo, nos clubes literários, os limites regimentais, burocráticos e aristocráticos impedem a manifestação de muitas sociabilidades e sensibilidades, que logo se espraiam para praças e ruas e se agrupam em locais públicos como os cafés e livrarias. Assim, o ethos aristocrático dos antigos salões literários não dá conta destas novas sociabilidades.

O clube de letrados é somente reaprisionado depois na figura ímpar da Academia Brasileira de Letras e de suas sessões estaduais (a Academia Pernambucana de Letras é fundada em 26 de janeiro de 1901). Instâncias que herdam as inúmeras associações que as precederam nos ideais literários, agora canonizados definitivamente sob o manto da cultura letrada: a defesa da norma culta gramatical e do vernáculo nacional, da obra e do autor imortais, das cadeiras e dos patronos que certa vez começaram as tradições letradas do país. Ali a circularidade entre oralidade e literalidade é escamoteada, fazendo prosperar da mesma matriz dos preconceitos étnicos, lingüísticos e culturais, a idéia, um dia, erudita; outro dia, ilustrada. A suposta superioridade do discurso acadêmico sobre outras falas, palavras e gestos. Afinal, a memória do Club Litterario de Palmares está “academicamente” disposta assim, porém, aflorada sempre numa pequena esperança de um dia todos os cidadãos saberem ler e aproveitarem da leitura.

Como recitava um de seus poetas, o Pirilampo, recordado na “Margem das Lembranças” de Hermilo Borba Filho, muito próximo da fala do povo “que não come” das letras, quando o Club Litterario de Palmares não escreve mais, adormece post-scriptum. Foi a tentativa de deixá-lo realengo, sem dono, conhecido do público que sopra sua memória. O Club, uma ilha de letrados, marca a história do lugar onde tudo transita:

Do rio eu faço um açude, Faço uma ponte no mar, Deixo tudo realengo Para quem quiser passar, No lugar onde eu habito Tudo pode transitar.

7 REFERÊNCIAS