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A Comissão Provisória e a preparação do Club

2 O CLUB DE PALMARES: HISTÓRIA, REPERTÓRIO E METÁFORAS

3.1. O CLUB E SEUS FUNDADORES

3.1.1. A Comissão Provisória e a preparação do Club

As atividades de lançamento do Club de Palmares, registradas na edição comemorativa do décimo sexto aniversário, constroem um primeiro receptáculo de memória institucional, escrita por uma nova geração de sócios que relata o “heroísmo” e a “abnegação” dos fundadores de 1882, em oposição às dificuldades de manter a instituição, envolvida constantemente em descontinuidades e processos de retomada, conforme divulga seu editorial:

A primeira sessão preparatória do Club Litterario de Palmares teve lugar aos três dias do mês de Setembro de 1882, na sala da escola pública do sexo masculino desta cidade, sendo aclamada uma comissão (...), para o fim especial de incorporar a sociedade que teria por fim promover a instrução, fundando especialmente uma biblioteca para uso dos sócios. Até hoje, com heróicos esforços e abnegadas dedicações tem o Club Litterario atravessado fases eivadas de dificuldades, nunca, porém, tendo deixado de transpor estes períodos de desfalecimentos, abroquelado na vontade rija dos seus associados, que não conhecem sacrifícios para manter a instituição na altura e na dignidade de que ela se tem feito criadora há dezesseis anos.

O texto demonstra a permanência das dificuldades de se criar e manter a associação, confirmando o caráter efêmero e pulverizado destas sociedades de letras. Porém, a questão também reporta um dado particular. O principal objetivo que é promover a instrução, na primeira sessão preparatória (03 de setembro de 1882), ocupa-se da sala de aula do sexo masculino, revelando que a “progressista” cidade dona de máquinas a vapor e caldeiras, conta somente dois espaços públicos destinados ao ensino das primeiras letras. Uma sala para meninos e outra para meninas, demonstrando a imensa tarefa educacional comum às cidades da época, ainda que circule socialmente um discurso abnegado, creditando sua reversão às almas letradas e civilizadas que estes clubes tanto enaltecem.

Os enaltecidos 111 “corifeus modernos”, liderados pelos ilustres Souto Maior, Ferreira Mendes e Hilário Ramos, “abrem as sendas do atraso” e louvam a instrução, por compreenderem ser o único caminho digno para atingir o progresso oferecido pela civilização moderna. Não reivindicam a educação ou a alfabetização, mas, a elevação do grau de pessoas instruídas, civilizadas, bem informadas. Neste sentido, vários autógrafos do Álbum de Visitas, principalmente aqueles escritos nos primeiros anos, representam muito bem o cerne desta

contradição existente entre o discurso instrucional dos letrados e a realidade escolar da “progressista” cidade, ainda “bastante atrasada” 60:

Visitei a biblioteca de Palmares e vi a bravura que tiveram seus sócios pelo amor à instrução e à ciência (...) porque é grande em providencia uma biblioteca em uma cidade onde a civilização está um pouco atrasada (...) e o progresso dos bons livros a ajudará a cultivá-la.

Uma década após este comentário, um periódico local com um nome bastante sugestivo – A Cartilha – confirma que continuam funcionando os mesmos dois espaços destinados à escola pública de ensino primário. Os espaços que um dia serviram de abrigo para a reunião preparatória dos fundadores do Club. O incansável jornalzinho divulga a freqüência escolar que aponta 274 alunos matriculados e o nome dos respectivos mestres de meninos e meninas61. Realidade que demonstra o salto populacional que ocorre em duas décadas de estrada de ferro: de 7.854 “almas” para 25.228 habitantes. Número verificado no início dos anos noventa, quando o município politicamente emancipado, reproduz as mesmas elevadas taxas de analfabetismo. Ou mais claramente, em números absolutos, 21.279 de seus concidadãos que “não sabem ler nem escrever”.

Salas de aula destinadas a... Freqüentam “escolas” em 1872, cf. Censo do Império. Freqüentam a escola pública de meninos e meninas em setembro de 1884, cf. Jornal Gazeta de Palmares. Freqüentam a escola pública de meninos e meninas em setembro de 1893, cf. Jornal. A Cartilha. Meninos 66 132 172 Meninas 39 72 102 Total 105 204 274

QUADRO 3: Evolução da Freqüência Escolar na escola pública de Palmares, entre 1872 e 1893,

considerando dados do Censo de 1872 e notícias publicadas nos jornais Gazeta de Palmares (1884) e A Cartilha (1893).

Eis o resultado direto da estagnação local das taxas de freqüência da “população escolar de 6 a 15 anos” à escola primária, como se pode constatar na progressão de matrículas do ensino público local: na medida em que a quantidade de habitantes triplicou, a oferta de

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Nota do Álbum de Visitas do Club, escrita em 21 de outubro de 1883, durante as comemorações do primeiro aniversário da instituição.

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“A Cartilha” de agosto de 1893 indica a presença de três professores públicos na cidade: José da Hora Beda (Meninos) e Leonor Holanda Ferreira e Emídia Firmo de Oliveira (Meninas). Dez anos após a fundação do Club, são as mesmas salas de aula registradas nos documentos da Entidade.

educação não foi devidamente dimensionada. Aliás, a situação da educação primária que se projeta da Monarquia nas entranhas da República.

Outro aspecto importante, enraizado na mesma matriz de exclusão, é que nenhuma mulher aparece no elenco dos sócios que assinam a Ata de Fundação do Club de Palmares 62, muito embora tenham estado presentes à solenidade. Dado que notabiliza o perfil dos sócios mobilizados pela Comissão Provisória, cuja segunda reunião escriturada pelo professor Hilário Ramos, assim se registra: 13 de setembro de 1882, “primeira sessão do Club” responsável pelos preparativos finais de lançamento da biblioteca.

Na sala de aula do sexo masculino, estabelecida na Praça do Maurity, desta cidade de Palmares, (...) foi o Doutor Souto Maior aclamado presidente da reunião, e ocupando este a cadeira da presidência, convidou o Professor Sizenando e ao Senhor Ferreira Mendes para servirem de secretários. Em seguida expôs o fim da reunião que declarou consistir em tratar de obterem-se meios para se fundar uma sociedade que promova a instrução na comarca, fundando especialmente uma biblioteca, no dia 02 de outubro próximo no qual se procederá a eleição das pessoas que devem tomar parte na administração da sociedade...

Uma reunião de homens letrados e “bem colocados”, conforme se verifica na lista de assinaturas. Os 13 sócios protagonistas (que assinam a Ata da primeira reunião) e a identificação de suas profissões validam os argumentos de que os letrados são de origem e perfil social diverso, qualificados pelas insígnias da “posse”, “colocação” e “leitura”. O que ressalta abrigar segmentos urbanos e rurais oriundos da aristocracia e, também, cidadãos de “poucos recursos”, dependentes de empregos públicos ou serviços no comércio.

No rastro do tratamento destinado a mulheres, crianças e homens pobres, escravos e iletrados, por detrás deste perfil social dos que fundam o Club, pode-se verificar o registro de um sortido e articulado conjunto de práticas tradicionais – patriarcalismo, elitismo e erudição – mobilizadas para mediar as emergências da vida pública, que se ampliam com as transformações pelas quais passa a cidade. Pois, se por um lado articulam o encontro entre proprietários rurais e urbanos, profissionais liberais e servidores públicos, e mesmo o cidadão comum alfabetizado; por outro, refletem o consenso em torno do discurso que nomeia a instrução uma “qualidade” de homens “venturosos” (a mensagem do soneto de Ferreira Mendes). Os únicos que sabem conduzir o progresso e promover a civilização, especialmente numa cidade de tantos analfabetos e cidadãos incultos.

Na verdade, a instrução de que falam, é o acúmulo de conhecimentos segregados na distribuição social e equacionados como “quantidade” de leitura, sempre à disposição de citar

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autores e livros nas peças escritas ou nos meandros das conversas formais e informais, principalmente pelos sócios literatos. Daí, a lembrança da crítica à cultura, que F. Barth (1989) prestigia, e que muito contribui metodologicamente na tentativa de compreender o Club de Palmares e seu modus operandi decantado nos textos de auto-imagem de sócios e visitantes:

As estruturas mais significativas da cultura – ou seja, aquelas cujos efeitos sobre as ações e as relações dos indivíduos são mais sistemáticas – podem não residir nas suas formas, e sim nas suas distribuições, na maneira pela qual não são compartilhadas. 63

A estratégia aqui, portanto, é buscar compreender como a distribuição dos bens da cultura – no caso, o letramento – aparece represada entre os sócios, ainda que seus discursos apontem sempre na direção inversa de atividades compartilhadas e fraternas na busca da instrução do povo. Discurso que explica a similitude das falas dos fundadores de 1882, do Barão de Nazareth, na festa do primeiro aniversário (citada no capítulo de introdução), e dos continuadores de 1898; e mesmo depois, até 1910, quando o Club entra em declínio. Todos afinados pelo moroso diagnóstico contemplativo, sem nenhuma referência de distribuição urbana da cultura letrada, que demonstre uma única atividade concreta na direção de alfabetizar a comunidade, se bem que isto se projete, aliás, como fica demonstrado no quadro sobre o repertório do Club e suas metáforas prediletas declamando progresso, civilização e instrução.

O que reforça o eixo já verificado: não é por lidar com “estatutos”, que o fogo fátuo do Club – a autocontemplação letrada – venha pesar mais que as relações sociais produzidas na trajetória de trinta anos (entre 1882 e 1910). E não podia ser diferente. O “heroísmo abnegado” dos fundadores, que se constitui o principal enredo de memória, e que o acompanha durante décadas sempre justificando sua continuidade, é ele mesmo o exemplo significativo da experiência elitista vivida entre livros, tertúlias e banquetes reservados. O Club não é uma “ilha”, mas, também, não é um “porto” aberto para qualquer empreitada, conforme seus estatutos procuram antever e projetar, balizando o comportamento dos sócios e prescrevendo o uso do salão literário e da biblioteca. Ou seja, o convívio “civilizado” entre os pares letrados e o refinamento das atitudes tomadas nas “concorridas” seções literárias

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Cf. BARTH, F. The analysis of cultur in complex society. Ethnos, 54, 1989, citado por Paul-André Resental. in: REVEL, Jacques. Jogos de Escalas. Rio de Janeiro: FGV, 1998, pg. 156.

promovidas pela associação de pés calçados, que limpam discretamente no batente do Club o barro das ruas sem asfalto.