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Afirmando asfaltos, afirmando saberes

2 O CLUB DE PALMARES: HISTÓRIA, REPERTÓRIO E METÁFORAS

2.2. O REPERTÓRIO DO CLUB

2.2.2. Afirmando asfaltos, afirmando saberes

Este conceito de cultura afirmativa também está diretamente relacionado com as análises que elevam as visões de mundo da burguesia à condição de categorias universais; cindindo-se os conceitos de cultura e civilização; implicando novos valores morais e estéticos

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de produção e consumo que recepcionam, celebram e exaltam a universalidade da cultura eurocêntrica e seus novos protocolos de necessidade, beleza, produção e consumo:

Na época burguesa a teoria da relação entre o necessário e o belo, entre trabalho e prazer experimentou modificações decisivas. Em primeiro lugar desapareceu o modo de ver segundo o qual a ocupação com valores supremos seria apropriada como profissão por determinados setores sociais. Em seu lugar surge a tese da universalidade e validade geral da cultura. (MARCUSE, 1997, p. 94).

Resumidamente, para a burguesia do Iluminismo, a cultura fornece a alma à civilização e este conceito, antes tão dissolvido no apanágio erudito ou teológico, passa a significar o “todo da vida social”. Daí o universalismo constituir-se na perspectiva que, em tese, precede a idéia de modernidade e progresso. Atributos que diversas correntes de pensamento recepcionam para justificar o ponto de vista do europeu. Idéias que grassam diversos campos das atividades ditas civilizadas e modernas e que os homens de letras brasileiros assumem como tal (SCHWARCZ & SOUZA, 2000, p.15). Afinal, a percepção do contraste entre o “necessário” e o “belo”, ente o “trabalho” e o “prazer”, entre o “cotidiano” e a “história” são matérias em que se forjam os saberes (cognição) e as práticas modernas (ação); mas, também, os lugares e os textos de interpretação e auto-imagem (os discursos). Pois, desde o início, fica demonstrado aqui o vínculo indissolúvel entre modernidade e escrituração.

Eis o “asfalto”, sua beleza e conforto, que aparecem no artigo de Benjamin (1989, p.199). Metáfora que contribui para se verificar o quanto se processa, na distância tropical, a questão da “modernidade”. Motivo da reivindicação pública dos calçamentos e da “novidade” do asfalto comprimido, sua resultante em beleza, higiene e diminuição dos ruídos, encontrados também na pesquisa do Club de Palmares. Uma nota publicada no periódico Echo, em 1884, numa coluna denominada “Artes51”, onde o colunista, escondido no pseudônimo Jaldime Amoaqui, satiriza as condições das ruas do lugarejo e, de sobra, demonstra o poder de circulação das idéias e das “novidades” urbanísticas modernas, irradiadas do repertório europeu na direção dos trópicos, e de como estas idéias ganham as cores locais:

Não deixa de ser para a engenharia com especialidade, uma descoberta de grande importância a do calçamento “gastro sola”, introduzido na cidade de Palmares, pela real sociedade “gastro sapataria a vapor”. Superior ao macadam, do inglês Mac Adam e ao asfalto comprimido hoje usado em Paris e em algumas cidades da Suíça, ou de paralelepípedos usados no Rio de Janeiro (...), acha-se ou é o calçamento

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“gastro sola”, já pelas vantagens econômicas, e pela sua conveniência higiênica superior ao macadam, já no rolamento dos carros, na surdez produzida nas vibrações das carruagens, na beleza aparente.

Pode-se, daí, intuir a situação descrita. Primeiro, a “real sociedade gastro sapataria a vapor” que introduziu na cidade o asfalto “gastro sola” de sapato, é uma alusão ao episódio da Ferrovia Sul ter forrado algumas ruas da cidade com o cascalho utilizado na linha férrea. Segundo, as ruas são cortadas por charretes e carretas puxadas a cavalo e bois, ocasionando atritos, barulho e a inevitável lama misturando terra e esterco. A região é regularmente chuvosa e o cascalho cria buracos, mau cheiro e feiúra. Independente das afirmações, o colunista, com humor, faz a escrituração do espaço. Orienta e temporiza os percursos que registram o lugar. Ou seja, “o espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 1994, p. 202) e sua escrituração recebe o influxo da memória: orienta e temporiza um saber e uma ação. No caso, evidentemente, um letrado propaga um discurso moderno e possibilita que a leitura do “espaço” local participe da idéia de progresso, higienização e embelezamento de ruas que as grandes cidades do mundo processam. No Echo de Palmares, os ecos de Paris.

A idéia de progresso deixa seu repouso tranqüilo de representação mimética e envereda por categorias cognitivas, e propriamente táticas. A questão passa a ser como a cultura se vincula à experiência, e como seus códigos se tornam socialmente compartilhados. Inclusive rompendo fronteiras culturais imensas, feito o ocorrido na simpática coluna de um pequeno jornal, numa pequena cidade da América do Sul, sobre as vantagens dos calçamentos de Paris. Exemplo das posições de Geertz (1989), onde a cultura aparece como um conjunto de códigos manejados cotidianamente pelos agentes sociais. Algo que suscita também a definição de Said (1995):

Quando emprego o termo, ele significa duas coisas em particular. Primeiro, “cultura” designa todas aquelas práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante os campos econômico, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas, sendo o prazer um de seus principais objetivos (...) Em segundo lugar, e quase imperceptivelmente, a cultura é um conceito que inclui um elemento de elevação e refinamento.

A “cultura é um documento de ação”. Ela é “pública porque o significado o é” (GEERTZ, 1989). Deste modo, enquanto representação (presença de uma ausência ou exibição de fato) é pragmática e identitária, pois orienta ações e comportamentos sociais diante das emergências do cotidiano e do futuro (GIDDENS, 2002). Responde à vitalidade que códigos e símbolos exigem nas atividades de interação e comunicação. Contudo, Geertz,

por sua vez, numa apreciação mais antropológica, universaliza seu conceito a partir do autor cognitivo, cindindo propositadamente símbolo e representação:

O conceito de cultura ao qual adiro (...) denota um padrão, transmitido historicamente, de significados corporizados em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem o seu conhecimento e as atitudes perante a vida.

Tais posturas teóricas remetem a cultura para o campo da experiência, da construção e desconstrução. Afinal, também “comprovam a existência de um tráfego ininterrupto – da experiência – entre o que o mundo impõe e o que a mente exige, recebe e reformula” (GAY, 1992, p.19). Ou melhor, o colunista do Echo de Palmares experimenta, “participa dos objetos de interesse e da paixão; dá forma aos anseios ainda incipientes e levanta barreiras contra ansiedades ameaçadoras” (GAY, 1992, p. 19). Satiriza, informa e protege a idéia moderna de asfaltamento das ruas. Sua recepção no Club e nas várias situações daquele dia, intui-se, é experimentar que não se está tão “distante” do progresso, pelo menos no discurso de “elevado” teor de “refinamento” e bom gosto.

Aliás, esta tentativa de recepcionar, consagrar e exaltar o progresso está também presente nos escritos do Club de Palmares. Um improvisado soneto deixado na sessão natalina de 24 de dezembro, daquele mesmo ano de 1883, pelo chefe dos escritórios regionais da Ferrovia Sul, chamado Celso Duperron, demonstra o quanto circula entre os letrados a idéia de evolução, ciência e progresso enquanto leis que se levantam contra o mal, a ignorância e o atraso nestes cantos desbravados pelos novos valores ocidentais:

Ainda bem que é tempo de acabar. Novas vitórias conquistando, Vai o mal aos poucos deliberando. Eis que um dia, neste caminho de findar, Vai o facho da ciência a difundir, Por sobre a ignorância em profusão, Há de o fim tão desejado produzir, Derramando sobre o povo a instrução. Far-se-á, sem demora, então,

Sentir os efeitos da lei da evolução.

Mas, o que há de comum entre a notícia sobre os “asfaltos” e o soneto do chefe dos escritórios da Ferrovia Sul, sócio do Club e, quiçá, um dos responsáveis pelo cascalho “improvisado”, derramado nas ruas de acesso ao centro da cidade? Os textos trazem o mesmo diapasão das discussões feitas pela grande imprensa naquela década de 1880! Ou seja, o

decantado “progresso não é apenas um mito para pessoas respeitáveis” (GAY, 1992, p. 43). É uma promessa. Existe na intenção pública de conquistas e partilhas de seus frutos. E, acessoriamente, carrega o discurso da instrução, da educação dos sentidos, da formação das almas, que preocupa a minoria letrada diante da multidão de analfabetos. Lembrando, além de tudo, que o discurso da instrução é uma “quantidade” de elevação e refinamento. O desejo de vê “derramando” a erudição entre os letrados, todos aptos na decodificação de mensagens que chegam do Rio de Janeiro, Londres e Paris. Contudo, sabendo proteger as antigas tradições, que traçam a linha divisória entre brancos e pretos, pobres e ricos, civilizados e não civilizados.