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2 O CLUB DE PALMARES: HISTÓRIA, REPERTÓRIO E METÁFORAS

2.1. HISTÓRIA E METONÍMIA: A ILHA DE LETRADOS

2.1.1. A “ilha” é escriturada

O Club de Palmares é a excitação de que literatos europeus assistem em outras cores de aventura e exílio. Os sócios do Club lêem as “viagens” exóticas de quando editaram Baudelaire e seus poemas modernos “deflorando” ilhas desconhecidas da cartografia ocidental, depois de flanar a moderna Paris. Símbolos que podem muito bem ser rogados na estrofe inicial do soneto “a uma dama crioula”. Uma senhora nomeada sob os olhos da civilização interessada por países e nativos estranhos, que o poeta não consegue disfarçar sobre o “dossel” de intenções sensuais, inferindo sutilmente que um homem terminou de conhecer uma mulher negra de “encanto ignorado”, interessada por “intimidades”. Senhora curiosa a respeito da civilização, que o poeta pretensamente carrega:

No país perfumado, a um sol de fogo e pena, Conheci sob dossel de árvores purpurado E de palmas de onde o ócio ao nosso olhar acena, Uma dama crioula de encanto ignorado. 40

O mesmo estranhamento que Daniel Defoe inventou nos domínios da prosa. O book club de Palmares, também lê o metafórico Robinson Crusoé41, herói da odisséia moderna e dos novíssimos navegadores ousados. Crusoé, mesmo perdido, deseja estabelecer a civilização no limite “ignorado” e distante de uma ilha tropical. E, por isto, não se refuta fabricar um guarda-chuva para caminhar como faz um aristocrata nas ruas de Paris ou Londres:

Havia já algum tempo que vinha pensando em fazer um guarda-chuva, que me defendesse do sol e do mau tempo. (...) Essa tarefa, contudo, foi deveras custosa, e só depois de muito tempo e muita paciência, consegui terminar um. Mas, ai! Era muito fácil tê-lo armado, mas não havia meios de fechá-lo, de modo que devia trazê- lo sempre aberto sobre a cabeça. Afinal, depois de muito custo, consegui fabricar outro, que não ficou nada mau e que correspondia às minhas necessidades. Podia, então, enfrentar o sol e as chuvas. Abria e fechava muito gostosamente, de modo que, com grande orgulho, a passeio, quando dele não precisava, metia-o debaixo do braço, ou, então, com ademanes, ia floreando-o, como um perfeito aristocrata.

Fragmento de onde se deslocam duas falas contemporâneas. Intertextualidades que assentam os letrados do Club de Palmares às demandas transculturais já percebidas: Edward Said (1995) – o Outro é a distância que precisa ser investigada, textualizada, subordinada e integrada, em nome das tradições, cuja comparação se vê estampada no protótipo do romance

40

Cf. BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Editor Martin Claret, 2002.

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moderno europeu: Robinson Crusoé, aquele que “cria para si mesmo um feudo numa distante ilha não européia” – e, Michel de Certeau (1994): o “espaço” virgem por onde caminha Crusoé, tanto no diário que escritura, no guarda-chuva que fabrica a bem da civilização que pretende “por em ordem”, na tentativa de superar o naufrágio. Missão tranqüila, até se deparar com uma surpresa: as pegadas de um nativo na praia inculta, incivilizada e agora desvirginada e perigosa.

Deduz-se, “o Outro, aqui, não constitui um sistema que se acharia escondido sob aquilo que o náufrago escreve” (CERTEAU, 1994, p. 248). Ora “a ilha não é um palimpsesto” aonde a história vai aos poucos se revelando camada a camada. A “ilha” é um lugar praticado neste encontro entre o Crusoé letrado (aquele que lê e escreve; homem do progresso) e o batizado Sexta-Feira (o iletrado; aquele da oralidade; homem do passado). A ilha é a mesma; porém, é como se começasse noutra substância capaz de mediar as distâncias e os estranhamentos do mundo.

O Club demanda, inevitavelmente, este encontro entre seus letrados e a gama de analfabetos da cidade, assumindo a promoção pública da leitura como um valor social. Uma insígnia que inicia a história pública da cidade nas artes de fazer ler e escrever. Por exemplo, no espaço urbano, o centro comercial é escriturado em pôsteres, placas, avisos, bilhetes de viagem, jornais e propagandas cada vez mais insinuantes e corriqueiras. O cartório, o mercado, o correio, a igreja, a prefeitura, a escola, todos se codificam, se inscrevem e escrevem textos que transbordam seus lugares, deslocados para o papel impresso. É comum recorrer agora aos órgãos noticiosos da cidade e evocar a condição moderna de falar ao leitor anônimo. Porém, a questão moderna não é mais somente nomear; dar nome as pessoas, situações e objetos; é, também, dominar a enunciação. Comunicar um destino, um percurso que exige acesso, portanto, transforma-se em poder. O que para Giddens (2002) é o efeito midiático da modernidade: “a instrução de eventos distantes na consciência cotidiana”. Poder moderno de quem escritura a cultura, que aparece nesta verdadeira “operação de caça” (CERTEAU, 1994) onde o leitor é envolvido toda hora na dependência crescente por textos ordinários.

FIGURA 1: Álbum de Visitas

do Club Litterario de Palmares (1882 – 1910).

O citado Álbum demonstra exatamente isto. Os versos de alguns de seus visitantes, claramente, aparecem grafados para leitura silenciosa posterior. Astúcia de quem escreve premido pela oralidade:

Não sou, linda terra, algum Poeta / Trovador ainda menos / Se essa filha dos céus, a Poesia / deusa ou fada de fecunda fantasia me declarar... /A lira que ganho nessa ora é para tecer-te uma canção sincera, pura/ Com prazer, dedicação e sem mais demora42.

O poema “declara” o poder de nomear “com dedicação” a poesia e a cidade. Uma para outra, ao destacar, na dedicatória do Club, o heroísmo de seus sócios em manter na pequena comunidade, espremida pelas tradições e costumes rurais iletrados, uma biblioteca que abriga os elevados “espíritos” da cultura moderna. Nuança muito bem reproduzida em prosa acadêmica, nesta dedicatória escrita por Clóvis Bevilácqua:

Faço os votos mais sinceros para que a biblioteca de Palmares prospere de mais em mais, jorrando sobre a cabeça do povo as torrentes de luz e vida que recebem do alto os grandes espíritos, cujas obras aqui acharam abrigo43.

Os “grandes espíritos” observados pelo jovem Bevilácqua são os autores que conectam o mundo civilizado. Aliás, várias notas sobre o movimento de doações e retiradas de livros da Biblioteca, durante os meses de novembro e dezembro do ano de 1882,

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Jorge Grassiano de Araújo, registrado no ÁLBUM DE VISITAS , em 13 de agosto de 1883.

43

publicadas no Diário de Pernambuco44, demonstram que os sócios acessaram Darwin, Comte, Baudelaire e Defoe, montando um “acervo com o índice de ilustres pensadores e literatos modernos”.

A própria necessidade de informar o movimento da Biblioteca, em jornal de grande circulação, assevera o que diz François Furet: “a modernização, a modernidade é a escritura”. O fato de publicar nota sobre a doação de livros, destacando o nome de seus doadores, autores e títulos doados, demonstra a importância de se associar a um book club. Estatutariamente, uma das condições para sócio benemérito, é doar uma coleção à biblioteca, permitindo um perfil da leitura pelos sócios e o acervo usado pelos leitores.