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A Abolição da Religião

No documento Friedrich Engels e a ciência contemporânea (páginas 183-190)

O materialismo histórico não criticava apenas a religião. Avançando um passo da crítica iluminista, decretava o fim da religião quando a sociedade não mais precisasse dela. Quando a alienação econômica fosse abolida, o homem não mais precisaria da auréola para suportar o vale de lágrimas, da ilusão sagrada para amenizar a exploração impingida pelos sistemas econômicos.

Em 1877, Engels começou a publicar textos que criticavam o

livro Curso de Economia Política de E. Dühring. Os textos

engelsianos tornaram-se conhecidos como Anti-Dühring e mais uma vez o autor retornou à religião; e como Marx já havia feito no texto Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, preconizou o fim da mesma, quando as condições materiais determinariam a morte dos deuses e os seus poderes. Em palavras do próprio autor: ...Quando a sociedade, pela apropriação e utilização planificada do conjunto dos meios de produção, se tiver libertado e tiver libertado todos os seus membros do servilismo em que presentemente os mantêm esses meios de produção, produzidos por eles próprios, mas erguendo-se em face deles como uma potência estranha opressora; quando, pois, o homem deixar simplesmente de pôr e passar a dispor – só então desaparecerá a última potência estranha que ainda se reflete na religião e, portanto, desaparecerá o próprio efeito religioso, pela simples razão de que nada mais terá para refletir38.

A profecia de Engels não se cumpriu historicamente. A persistência de movimentos messiânicos e milenaristas no Brasil e em outros países provam que a religião continua a ser “uma forma de colocar o problema” e as questões sociais, especialmente para os segmentos mais pobres de determinadas sociedades. O messianismo é um movimento social que

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se desenvolve em torno de um líder religioso carismático, que funda uma comunidade de eleitos, esperando um messias e mil anos de paz e prosperidade, um Reino de Deus na terra, o milenarismo. Segundo Jean Delemeau, um historiador da escola francesa, “há em geral uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise.”39Ao analisar a forma

secularizada que o milenarismo tomou ao longo do processo histórico, este autor chega a citar o marxismo e outros movimentos libertários do século XIX, ocorridos na Europa, como uma espécie de milenarismo político.40

Na sociedade brasileira encontramos movimentos milenaristas desde o período colonial, como o mito da terra sem males, vivido pelos indígenas e registrado por diversos cronistas, denominando-os de

santidade, a exemplo do Padre Fernão Cardim41. No século XIX podemos

citar: o Movimento da Serra do Rodeador, em Pernambuco; o Movimento de Canudos, na Bahia; A Revolta dos Mücker, no Rio Grande do Sul. No século XX outros movimentos com caráter messiânico desenvolveram-se no país, por exemplo: a comunidade do Padre Cícero, no Ceará; a Guerra do Contestado, nos limites do Paraná e Santa Catarina; o movimento de Pau de Colher, na Bahia; a comunidade de Pedro Batista, também na Bahia; o movimento de Santa Dica, em Goiás e os Borboletas Azuis, na Paraíba. Os seguidores desses movimentos fundaram verdadeiras cidades santas, separadas do mundo, estabeleciam novas relações sociais pautadas em rigorosa ética religiosa, onde a igualdade e a justiça prevaleciam, enquanto aguardavam os mil anos de felicidade prometidos na tradição judaico-cristã. As fantasias quiliásticas, como dizia Engels, produziram nesses fiéis uma vigorosa resistência contra as autoridades constituídas tanto eclesiásticas quanto governamentais; as exceções apenas para o movimento de Pedro Batista que fez alianças políticas e não foi reprimido e os Borboletas Azuis que se desenvolveu em área urbana em Campina Grande, entre as décadas de 60 a 80 do século passado.

Segundo François Houtart, um neomarxista estudioso dos fenômenos religiosos, a religião “possui uma função simbólica de ruptura ou protesto social, o que pode ser evidentemente considerado como a

outra face da ideologia.”42 Os milenarismos e os messianismos, que

também ocorrem em tradições religiosas não cristãs, provam de forma clara, que em determinadas sociedades estratificadas, onde a sociedade civil não está satisfatoriamente organizada, ou há ausência de estruturas representativas de poder, a religião cumpre um papel de canal de expressão social e organização coletiva.

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Engels e a abordagem científica da religião

A Teologia da Libertação é um verdadeiro movimento social de caráter religioso, que se desenvolveu na América Latina, Brasil e alguns países periféricos da Ásia, a partir da década de 60 do século XX. Convém ressaltar que este cristianismo radical, além da sua face católica, também se apresentou em algumas denominações protestantes. Ao assumir uma ação preferencial pelos pobres, tomava, ou toma como referências teóricas e instrumentais de análise da realidade categorias marxistas. A leitura da Bíblia passa a ser feita na perspectiva da visão profética libertadora e não mais na ótica sacerdotal legitimadora da ordem social. O diálogo entre marxismo e religião deu-se de forma conseqüente e criativa, um dos motivos que levaram posteriormente à sua condenação pelo Vaticano e no campo protestante os progressistas foram expurgados de suas comunidades.

As Comunidades Eclesiais de Base constituíam-se em fulcro organizador de vários movimentos sociais que despontaram ou se reorganizaram no Brasil, tendo como motivação central a fé. Segundo Michael Löwy:

Os próprios pobres tomam consciência da sua condição e se organizam para a luta enquanto cristãos, vinculados à Igreja e inspirados por uma fé. Considerar essa fé e essa identidade religiosa, profundamente enraizada na cultura popular, como um simples ‘invólucro’ ou ‘roupagem’ de interesses sociais e econômicos, é cair em um tipo de atitude redutora que impede compreender toda a riqueza e autenticidade do movimento real.43

A Teologia da Libertação e seus desdobramentos se configuram como um testemunho eloqüente que, ainda atualmente, a religião pode ser um instrumento catalisador do protesto social, uma forma de referência.

Conclusão

Como considerações finais, e não conclusões definitivas, podemos afirmar que um outro prognóstico equivocado de Engels é o de que a religião seria abolida quando ocorressem as mudanças na base econômica e a conseqüente revolução do proletariado. A religião continuou a existir mesmo nos países que fizeram revoluções comunistas, ou que viveram o socialismo real. Em alguns, de forma conflitiva, as autoridades quiseram extirpar o sagrado através de decretos infrutíferos, pois mesmo proibidas, as instituições religiosas e a religiosidade, enquanto elementos integrantes da cultura, persistiram e manifestaram-se de variadas formas. Em outros países, passado os primeiros momentos de tensão, a religião sobreviveu, inclusive institucionalmente.

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O profetismo religioso continua vigente e atuante. Os textos proféticos continuam a ser lidos e reinterpretados a partir do lugar social de amplos setores marginalizados que povoam os países periféricos do mundo. A religião ultrapassou o chavão reducionista do ópio do povo e tem servido como um verdadeiro cimento de movimentos sociais e políticos contemporâneos. Em tais situações o pensamento engelsiano é revisitado e se atualiza de forma concreta. Questionando os teóricos defensores da secularização, presencia-se um reencantamento do mundo, um avivamento das expressões do sagrado, coexistindo como num processo de superposição de uma religiosidade difusa, onde a convivência de tradições religiosas e recriações inovadoras ganham espaço e visibilidade social. Segundo Gilles Keppel, é a revanche de Deus num mundo globalizado que parecia ter enterrado os seus deuses.

A realidade em que vivemos está pejada de religiosidade. Segundo S. Martelli, “a religião passa a ser reconhecida como um fator relevante da mutação social e política que está rapidamente mudando o rosto do

mundo contemporâneo.”44 Na raiz dos grandes conflitos internacionais

encontram-se também fatores religiosos e concepções religiosas conflitantes, a exemplo da luta entre o Ocidente cristão e o mundo islâmico. Os conflitos alimentam-se, além da cobiça pelas reservas de petróleo sob o poder dos seguidores de Alá, do fundamentalismo religioso do protestantismo norte-americano, configurado na prepotência do presidente Bush e do fundamentalismo islâmico avesso a tudo que tenha origem ocidental. Convém salientar que o fundamentalismo é uma criação protestante que toma forma entre 1875 e 1914, como um protesto contra o modernismo religioso, é a ratificação dos fundamentos da fé, o conservadorismo biblicista, que posteriormente ganhou terreno também entre outras expressões religiosas, como o Islã.

Podemos observar ainda a religião como um canal de expressão alternativo para amplos segmentos sociais, que ainda lutam por justiça e uma nova ordem social, guardando similaridades com os despossuídos do cristianismo primitivo ou com os camponeses anabatistas estudados por Engels no século XIX.

No que pesem as críticas, a contribuição de Friedrich Engels para a construção de uma teoria da religião foi substancialmente positiva, haja vista que ainda predominava no século XIX o primado da religião onde a Teologia se confundia com a Filosofia. A ruptura com tal paradigma foi de fundamental importância para constituir-se uma perspectiva científica dos fenômenos religiosos. A historiografia sobre a religião e os movimentos sociais que se fez posteriormente, em muito bebeu e se inspirou na fonte engelsiana. Comungando com o seu estilo, tão pródigo

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Engels e a abordagem científica da religião

em paráfrases bíblicas, podemos afirmar que as muitas águas da crítica não poderão apagar a contribuição de Engels para os estudos sobre o sagrado e seus desdobramentos. Trata-se de um campo aberto para novas pesquisas e reflexões.

Notas

* Doutora em História. Professora da UEFS e UFBA.

1 COGGIOLA, Osvaldo. Engels o Segundo Violino... p. 10.

2 ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. p. 29.

3 MARX. Karl. Critica da Filosofia do Direito de Hegel. p. 45 4 HEGEL, G.W.F. El concepto de Religion. p. 64.

5 Idem p. 64.

6 BORGES, Maria de Lourdes. Moralidade e Protestantismo em Hegel. p. 114 7 MARX, K. ENGELS, F. Sobre a Religião. p. 272.

8 Idem, p. 272 9 Ibidem, p. 287.

10 Coggiola, Osvaldo. Engels Segundo Violino, p. 108. 11 MARX, K e ENGELS, F. A Sagrada Família, p. 268. 12 Idem p. 17. O texto bíblico é João 1: v.14. 13 MARX, K e ENGELS, F. Sobre a Religião p 110.

14 ENGELS, F. As Guerras Camponesas na Alemanha, p. 7.

15 MARX, K. e ENGELS, F. Guerra dos Camponeses, p. 115.

16 Idem p. 116. 17 Ibidem p. 117

18 LÖWY, M. Marx Engels como sociólogos da Religião, p.161. 19 MARX, K. e ENGELS, F. Sobre a Religião, p. 303.

20 Idem, p. 361. 21 Ibidem, p. 353. 22 Idem ibidem, p. 46.

23 LÖWY, MICHAEL. Marx Engels como Sociólogos da Religião, p. 162.

24 MARX, K e ENGELS, F. Sobre a Religião, p. 353. 25 Idem p. 355.

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26 ENGELS, F. As Guerras Camponesas na Alemanha, p. 48.

27 Idem p. 48.

28 DROZ, Jacques. História Geral do Socialismo, V. 2 p. 572. 29 MARX, K e ENGELS, F. Sobre a Religião, p. 57.

30 Quiliasmo é uma palavra de origem grega que significa milenarismo.

31 LUXEMBURGO, Rosa,opus cit.p.25

32 MARX, K. e ENGELS, F. Sobre a Religião, p. 334. 33 HILL, Christopher. Opus cit. p.29.

34 Idem, p. 329.

35 NEGRO, Antonio Luigi e SILVA, Sérgio. E.P. THOMPSON. As Peculiaridades

dos Ingleses e outros artigos, p. 119.

36 MARX, K. e ENGELS, F. Sobre a Religião, p. 340. 37 Opus cit.p. 278

38 MARX. K. e ENGELS, F. Sobre a Religião p. 179. 39 DELEMEAU, Jean. Mil Anos de Felicidade, p. 17. 40 Idem, p.322 e s.

41 CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil, p. 87. 42 HOUTART, F. Religião e Modos de Produção, p.11.

43 LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. p.26 44 MARTELLI. Stefano. A Religião na Sociedade

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Rodando a baiana e interrogando um princípio

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