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Religião e Relações Sociais

No documento Friedrich Engels e a ciência contemporânea (páginas 175-179)

A preocupação com a problemática religiosa esteve presente na vida de Engels desde a sua juventude. Os seus primeiros escritos, feitos aos 19 anos, no periódico hamburguês Telegraph fur Deutschaland, sob o titulo Cartas de Wuppertal, tecia ácidas críticas à religião, causando grande escândalo. Atualmente na industrial cidade de Wuppertal há um museu dedicado a Engels, com muitas peças e referências a sua vida pessoal e militância política.

Em 1841, contrariando as determinações paternas que queriam fazer do herdeiro Engels um grande industrial, Friedrich Engels assistiu aulas na Universidade de Berlim como aluno ouvinte. As aulas ministradas pelo filósofo Schelling, cristão como Hegel e que acreditava num princípio absoluto, divino, guiando o mundo, provocariam reações e instigaria ao aluno questionador escrever dois panfletos contra a filosofia religiosa do mestre: trata-se de reflexões que tinham como cerne a crítica religiosa, a saber, Schelling e a Revelação e Schelling Filósofo Cristão.10 Nesse

mesmo ano, entraria o jovem alemão em contato com os jovens hegelianos, os quais, a exemplo dos irmãos Bauer, também desenvolviam reflexões sobre as questões religiosas, tão presentes no pensamento filosófico germânico daquele momento. Juntamente com Edgar Bauer, Engels exercitaria sua veia satírica, escrevendo o poema Como a Bíblia Escapa Milagrosamente a um Atentado Impudente ou O Triunfo da Fé, criticando o obscurantismo religioso11,publicado em 1843.

O Engels adulto, militante e sistematizador do materialismo histórico, continuaria as suas preocupações e escritos que falavam explicitamente ou de forma tangencial dos fenômenos religiosos. A Sagrada família foi o primeiro texto escrito juntamente com Marx, em 1843. O objetivo era criticar o idealismo especulativo de Bruno Bauer e de seus seguidores, os hegelianos de esquerda, a exemplo de Carl Reichardt que escrevia no Allgemeine Literatur – Zeitung, baseado no principio cristão germânico. Engels parafraseou um texto bíblico criticando de forma ácida o elitismo dos filósofos especulativos que tratavam os trabalhadores, a massa, como seres inferiores que precisavam ser conduzidos pelos iluminados:

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A Crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela massa. Foi tão grande o amor da Critica pela massa que ela enviou o seu próprio filho unigênito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. Eis que a Critica se torna massa e habita entre nós e nos vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigênito do pai.12

Em vários textos da vasta produção engelsiana a religião apareceu como um problema a ser analisado. Dado a exigüidade deste espaço enfocaremos apenas A Guerra dos Camponeses, Do Socialismo utópico ao socialismo cientifico e Contribuição a História do Cristianismo Primitivo. O primeiro texto se relaciona diretamente com o cristianismo na sua ramificação protestante. No segundo texto a religião surge de forma tangencial; no último escrito no penúltimo ano de sua vida, Engels retornou à questão religiosa buscando traçar as origens cristãs. Em todos os textos a religião é concebida como um fenômeno construído culturalmente ao longo do processo histórico. Essas obras representam significativamente a contribuição engelsiana para os estudos das relações do sagrado com o contexto social.

Na concepção teórica engelsiana os fenômenos religiosos mantêm uma relação estreita com o seu contexto social. As intermediações com o sagrado não são a priori criadas por uma divindade e mantidas de forma miraculosa pelos sacerdotes, ao contrário foram os homens coletivamente, vivendo em sociedade, que criaram os deuses e a religião. A crítica da teologia se transforma em crítica da política, diria o próprio Marx. Em um texto escrito juntamente com Karl Marx diziam explicitamente que “é evidente que qualquer grande alteração histórica das condições sociais arrasta ao mesmo tempo, a alteração das concepções e das

representações religiosas.”13 As manifestações do sagrado,

institucionalizadas ou não em determinadas sociedades, se vinculam estreitamente às classes sociais, uma categoria basilar na construção do materialismo histórico engelsiano.

Voltando-se para a História da Alemanha, em 1850 Engels publicou

a Guerra dos Camponeses na Nova Gazeta Renana. Segundo o próprio

autor, escrito em Londres sob a impressão direta da contra-revolução

que acabava de consumar-se14, referia-se à onda conservadora e

repressora que assolava a Europa, inclusive a Alemanha, após os movimentos de 1848. Atendendo a pedidos dos correligionários na Alemanha fez uma nova edição, publicada, também em Londres, em 1874. As guerras camponesas ocorreram na Alemanha, nas primeiras décadas do século XVI, no contexto da Reforma Protestante liderada por

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Martinho Lutero. Era um movimento de caráter religioso, dirigido pelos anabatistas, grupo religioso radical que pleiteava transformações sociais, além da reforma puramente doutrinária defendida pelos luteranos. Reivindicavam esses radicais, que receberam este nome como uma alcunha pelo fato de não aceitarem o batismo infantil e sim de adultos conscientes e convertidos às novas doutrinas, para além de uma reforma nos assuntos teológicos, uma reforma agrária, comunidade de bens, direito de eleger os governantes e separação da igreja do estado e todas essas demandas estavam baseadas na Bíblia. Certamente leram os profetas judaicos, que fizeram a revolução profética dos séculos VII e VIII a.C.,os quais reverberaram contra as injustiças do seu tempo, a exemplo do profeta Isaías, citado na epígrafe deste artigo.

Trata-se de um texto denso, com incursões profundas na História da Igreja e dos movimentos heréticos, denotando um profundo conhecimento bíblico e da realidade alemã do século XVI. Engels começou a sua narrativa com uma análise da situação econômica e da estrutura social da Alemanha naquela conjuntura. Vinculou de forma explícita os conflitos religiosos aos interesses conflitantes das principais classes envolvidas no problema: “o campo católico ou reacionário, o campo

luterano burguês-reformador e o campo revolucionário” (anabatistas).15

Lutero representava os interesses da burguesia que queria uma reforma moderada, sob os auspícios da fé, em busca da salvação eterna. Thomas Münzer, também teólogo, transformou-se em líder dos camponeses anabatistas que preconizavam além da iluminação do Espírito Santo, transformações sociais e políticas numa Alemanha politicamente fragmentada em principados e ducados, vivendo ainda os resquícios da exploração feudal impingida aos camponeses. Lutero e Münzer leram a Bíblia com olhares diferentes, ambos protestantes, mas partiam de lugares sociais distintos. Para Engels, representavam dois partidos de classes divergentes.

Fiel ao materialismo histórico que criavam naquele momento (século XIX), Engels traçou como origem das guerras anabatistas, na raiz do problema, a luta de classes:

Mesmo naquilo a que chamamos as guerras religiosas do século XVI, tratava-se, antes de mais, de interesses materiais de classe muito claros e essas guerras eram lutas de classes, tanto como as colisões internas que se produziram mais tarde na Inglaterra e na França16.

Para o autor, era compreensível que “os interesses, as necessidades e as reivindicações das diferentes classes se dissimulassem sob a máscara da religião”17, pois as condições da época só permitiam a

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colocação do problema sob o ângulo religioso. A linguagem do profetismo religioso era a única que a plebe era capaz de compreender. Michael Löwy opina que “Engels nem sempre resiste à tentação de interpretar os movimentos religiosos em termos estritamente utilitários e instrumentais”.18

Numa carta a Joseph Bloch, em 1890, Engels respondeu aos críticos que lhe acusavam de economicista ou determinista, de forma mais atenuada, relativizando o papel da base econômica, determinando as concepções religiosas e filosóficas, dando um certo peso nas relações dialéticas das diversas instâncias da realidade:

A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas das lutas de classes e os seus resultados; as Constituições estabelecidas uma vez, a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc. –, as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e o seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos exercem igualmente a sua ação no curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam-lhe de maneira preponderante a forma.19

Já no final de sua vida em 1894, F. Engels publicou na Neue Zeit, Contribuição à História do Cristianismo Primitivo. Trata-se de um texto rico em fontes cristãs dos primeiros séculos e afinado com a hermenêutica bíblica que se fazia naquele momento na Alemanha, a qual o autor considerava como “até agora a única base científica do nosso conhecimento da história do cristianismo primitivo.”20 Tinha razão o autor

, os estudos arqueológicos e os famosos Manuscritos do Mar Morto foram contribuições bem posteriores.

Para Engels, a composição social do cristianismo primitivo se vinculava às classes mais baixas: era “a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos

subjugados ou dispersos por Roma.”21 Segundo o autor, apesar disso e

das perseguições, o cristianismo triunfou e no terceiro século da era cristã tornou-se a religião oficial do império romano. O cristianismo sensibilizou-se com as massas oprimidas e para compensar os sofrimentos e as humilhações impingidas aos fiéis, oferecia o paraíso eterno para os desiludidos deste vale de lágrimas. Interessante destacar a similaridade da imagem do mundo como vale de lágrimas usada por Marx no texto A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.22 As transformações

sociais eram postergadas para depois da morte, numa visão escatológica que se transformaria hegemônica no catolicismo e posteriormente no protestantismo.

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Manifestações religiosas e Processos Revolucionários

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