• Nenhum resultado encontrado

Ciência e filosofia na União Soviética

Loren Graham, professor de História da Ciência no MIT, é considerado hoje o decano da história da ciência russa e soviética. Ele iniciou suas pesquisas ainda na década de 1950, em 1967 publicou The Soviet Academy of Sciences and The Communist Party, 1927-1932, seguida de Science and Philosophy in the Soviet Union, em 1972. Esta obra foi ampliada e atualizada como Science, Philosophy, and Human Behavior in the Soviet Union, em 1987 e, após a queda do regime soviético, ele sintetizou suas investigações em uma obra, destinada a um público de não especialistas, denominada Science in Russia and the Soviet Union – A Short History1. Embora Graham tenha um largo interesse

na história da ciência e da tecnologia na URSS, o tema isolado ao qual ele prestou mais atenção foi o da relação entre ciência e filosofia na antiga república soviética2. Ele examinou as relações entre ciência, filosofia

e ideologia, na experiência soviética, no caso das seguintes disciplinas e temas: origem da vida, genética, fisiologia, psicologia, debate natureza/ educação, biologia, cibernética, química, mecânica quântica, relatividade e cosmologia. Interessa aqui comparar algumas das conclusões a que Graham chegou para os casos da genética e da mecânica quântica.

Graham sustenta que a controvérsia melhor conhecida fora da União Soviética, aquela associada ao lyssenkismo, é a menos relevante para se discutir o materialismo dialético em um sentido filosófico3. Como

se sabe, essa controvérsia levou, em 1948, à entronização da teoria do agrônomo T. D. Lysenko, uma espécie de teoria da herança de caracteres adquiridos, como doutrina oficial do partido e do estado soviético, em detrimento da genética mendeliana. Apoiando-se em historiadores como David Joravsky e Zhores Medvedev, além de seus próprios estudos, Graham conclui que a ascensão do lyssenkismo foi mais o resultado de uma série de eventos econômicos, sociais e políticos que uma decorrência de alguma forma de interpretação do materialismo dialético. Dentre os fatores arrolados por Graham, nós encontramos a suspeita difusa em relação aos cientistas e à ciência burgueses, algo que tem suas origens antes da segunda guerra, a extrema centralização do poder soviético, e

87

Olival Freire Jr.

o papel e poder pessoal de Stalin; fatores esses amplificados pela exacerbação da tensão entre URSS e Estados Unidos que caracterizou o início da guerra fria. Para Graham, as histerias desencadeadas em cada um desses países lembram as disputas no passado sobre questões religiosas. Ele considera que a condenação da genética na URSS foi um episódio análogo à condenação do heliocentrismo pela Igreja Católica, no início do século XVII, em meio às tensões exacerbadas pela Reforma e pela Contra-reforma.

Em contraste com o caso da condenação da genética, as discussões soviéticas sobre a mecânica quântica teriam sido mais relevantes para o materialismo dialético enquanto uma filosofia da ciência. A controvérsia sobre a interpretação da mecânica quântica, entretanto, levou a resultados muito diversos daqueles do caso da genética, devido a fatores políticos e contextos diversos. Conforme apontado por Graham, a ênfase dos fundadores da mecânica quântica, como Niels Bohr e Werner Heisenberg, sobre o papel das condições de observação como um elemento definidor dos fenômenos quânticos, representou um desafio para a premissa do materialismo dialético de uma existência do mundo material – matéria-energia – independente dos sentidos e sensações. Graham focaliza três soviéticos que desempenharam uma liderança intelectual nos debates sobre a mecânica quântica: os físicos V. A. Fock e D. I. Blokhintsev e o filósofo M. E. Omel’ianovskii. Contudo, esses três pensadores não adotaram as mesmas posições nesses debates, ao contrário, eles estiveram em campos opostos. A essa altura, Graham se apóia em seu conhecimento sobre o persistente debate no ocidente acerca de tais questões para concluir que as clivagens soviéticas na controvérsia sobre a mecânica quântica são essencialmente similares àquelas existentes em todos os outros lugares onde esse debate tem ocorrido. Se Blokhintsev adotou posições próximas às críticas de Albert Einstein, Fock esteve mais próximo das posições de Niels Bohr. Essa similaridade poderia levar à conclusão da ausência de relevância do materialismo dialético para esse debate, mas Graham sustenta que uma opinião distinta parece mais plausível e lembra que o conflito entre materialismo e idealismo não nasceu na URSS, sendo antes parte integrante da história da filosofia. Muito do que no debate no ocidente recebeu o nome de realismo poderia ser associado ao materialismo enquanto posição filosófica.

Poderia se pensar que o interesse de cientistas soviéticos em questões filosóficas teria sido condicionado pela conjuntura política e ideológica da URSS. Graham admite esse condicionamento, mas sustenta que ele por si só não pode explicar a história da ciência soviética. Ainda

88

O legado de Engels na prática das ciências...

sobre o debate sobre a mecânica quântica, o historiador norte-americano observa que o interesse nas questões filosóficas teve continuidade mesmo depois do período de maior tensão ideológica entre finais da década de 1940 e a primeira metade da década de 1950. Independentemente do caso da mecânica quântica, Graham aponta em várias disciplinas um número expressivo de criativos e reconhecidos cientistas soviéticos para os quais o materialismo soviético teria influenciado positivamente a articulação de suas próprias idéias, a exemplo dos casos de A. I Oparin, L. S. Vygotsky, A. R. Luria, O. Iu. Schmidt, e S. L. Rubinshtein. Em seu Science in Russia, Graham distinguiu o que denominou de fase autêntica do materialismo dialético do que intitulou ideologia stalinista, e exemplificou a primeira com os casos de Vygotsky, Oparin e Fock.

Ciência, ideologia e política na União Soviética

Alexei Kojevnikov é russo, historiador da ciência, com filiações à Universidade da Geórgia, nos EUA, e ao Instituto da História da Ciência e da Tecnologia, em Moscou. Ele é um historiador de uma geração bem mais jovem que a de Loren Graham, mas é um pesquisador já bem conhecido e respeitado pela qualidade de suas publicações em revistas especializadas. Mais recentemente, Kojevnikov publicou o livro Stalin’s Great Science – The Times and Adventures of Soviet Physicists, que destaca-se pela forte inclusão da política entre as dimensões a serem consideradas no trato das relações entre ciência e ideologia na URSS4. O

livro de Kojevnikov é dedicado ao que pode ser considerado um paradoxo: o desenvolvimento científico e tecnológico de primeira linha em condições de violência política, escassos contatos internacionais e severas restrições à liberdade de informação. Os que conhecem a física ou a história da física no século XX sabem que tal paradoxo relaciona-se antes de tudo a uma situação de fato, a da excelência da física soviética no século passado.

Kojevnikov contrasta seu livro com a tese, formulada por Karl Popper, que ciência e democracia política são indissociáveis e que uma não pode se desenvolver sem a outra. Embora Popper tenha escrito A sociedade aberta e seus inimigos [publicado em 1950, edição brasileira em 1974] no contexto de seu exílio na Nova Zelândia, decorrência da anexação da Áustria pela Alemanha nazista, nem Popper nem seus leitores limitaram o alcance dessa tese. A União Soviética era o contra exemplo natural a essa tese. Afinal, “as piores décadas do domínio ditatorial de Stalin foram também o tempo dos maiores progressos atingidos pela ciência e tecnologia em solo russo, desde os tempos de

89

Olival Freire Jr.

Pedro o Grande”. Kojevnikov argumenta que o contexto da Guerra Fria impediu o reconhecimento desse paradoxo porque as administrações das duas grandes potências, por razões diferentes, preferiram considerá- lo inexistente. Para os administradores comunistas soviéticos, as políticas adotadas eram tão científicas e democráticas quanto a própria ciência, e o êxito da ciência soviética parecia confirmar a superioridade da “democracia soviética”. Aos olhos dos ideólogos anticomunistas, a denúncia do sistema político soviético como antidemocrático requeria evidenciar as falhas e derrotas da ciência soviética. Não por acaso, o caso Lysenko e o banimento da pesquisa em genética entre 1948 e 1964 foi o episódio da ciência soviética que recebeu maior atenção no Ocidente, tanto entre historiadores quanto entre publicistas. Kojevnikov deixa tais estereótipos de lado e nos fornece uma visão menos enviesada da história da ciência soviética em seus contextos social, político e ideológico. Stalin’s Great Science é, então, um produto historiográfico permitido pela conjuntura pós Guerra Fria, ao tempo em que se insere na melhor tradição de rigor acadêmico da história da ciência soviética.

Ao analisar como as revoluções conceituais associadas à relatividade e à teoria quântica interagiram com o contexto da Rússsia revolucionária da década de 1920, Kojevnikov argumenta que a linguagem política revolucionária influenciou o modo pelo qual os jovens físicos teóricos abordaram os problemas postos e as soluções que eles obtiveram, especialmente via a metáfora da liberdade e do coletivismo no trato de problemas em física do estado sólido. Muito interessante é o estudo biográfico de Lev Landau, no qual a reconhecida genialidade do físico soviético é posta no contexto de uma sociedade em processo de bruscas transformações, o que teria permitido e favorecido a sua rápida projeção como físico teórico. Para estudar a relação entre ciência, patrocínio estatal e modernização tecnológica no contexto da sociedade estalinista madura, o autor toma como estudos de caso a biografia do físico Piotr Kapitza e a construção da bomba atômica soviética, mostrando como nos dois casos os físicos atuaram politicamente mesmo em um contexto adverso à atividade política fora dos marcos do partido soviético. Os capítulos mais audaciosos, entretanto, são dedicados às relações entre ciência e ideologia sob a era Stalin. O autor recusa visões simplistas herdadas da época da Guerra Fria, segundo as quais ciência e ideologia estariam sempre em conflito e oposição. Através de uma minuciosa análise da complexidade dessas relações, Kojevnikov argumenta que os físicos exploraram aquela conjuntura para fazer avançar suas agendas. Isso fica evidenciado na análise da trajetória de Sergei Vavilov, que presidiu a Academia de Ciências no período da expansão pós Segunda Guerra, e

90

O legado de Engels na prática das ciências...

da sua contribuição à formatação do papel da ciência na sociedade soviética. Adicionalmente, uma minuciosa reconstrução da entronização do Lyssenkismo, além de uma comparação com as situações de outras discussões ideológicas, leva o autor a propor uma explicação de porque tais discussões ideológicas no ambiente dos físicos e dos lingüistas tiveram conseqüências totalmente distintas do caso da genética; explicação que apela tanto para o papel do poder pessoal de Stalin quanto para as especificidades de cada uma dessas disciplinas científicas.

Materialismo dialético e ciências da natureza no