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Manifestações religiosas e Processos Revolucionários Longe de reduzir a religião ao seu caráter opiáceo, de instrumento

No documento Friedrich Engels e a ciência contemporânea (páginas 179-183)

de alienação, Michael Löwy, um estudioso do marxismo e da religião, opina que é possível fazer uma outra leitura do pensamento marxista sobre a religião, em especial a contribuição engelsiana que “não deixa de reconhecer a paradoxal dualidade do fenômeno: seu papel na sacralização da ordem estabelecida, mas também, conforme o caso, seu papel crítico, contestatório e até revolucionário.”23 Como o próprio Marx

já havia reconhecido, a religião era o ópio do povo, mas era também o suspiro da criatura oprimida, a teoria geral deste mundo ou uma forma de linguagem, de conhecer a realidade. Nos textos que estamos analisando do Engels maduro e militante socialista, encontraremos um forte paralelismo entre as manifestações religiosas e os processos revolucionários burgueses, bem como dos movimentos operários e socialistas que grassavam na Europa do século XIX.

No texto Contribuição à História do Cristianismo Primitivo, a análise engelsiana nos remete a um tipo de religiosidade abraçada pelas classes sociais mais baixas do império romano, que tem um caráter de movimento de resistência contra os poderosos, tal qual o movimento operário europeu que ele ajudava a construir com a militância e a reflexão teórica naquele momento, século XIX. O cristianismo primitivo e o movimento operário moderno apresentavam “curiosos pontos de contacto”, segundo o autor:

... o cristianismo como o socialismo operário pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria; o cristianismo transpõe essa libertação para o Além, numa vida depois da morte, no céu; o socialismo coloca-a no mundo, numa transformação da sociedade.24

Continuando as suas reflexões sobre o paralelismo entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno, Engels reconheceu nos comunistas franceses e nos seguidores do protestante Wilhelm Weitling, da Liga dos Justos, uma relação estreita com as concepções religiosas cristãs e messiânicas nos seus primórdios e concordou com Renan: “se quiserem fazer uma idéia das primeiras comunidades cristãs, observem

uma secção local da Associação Internacional de Trabalhadores.”25

Em as Guerras Camponesas, além de contrapor a ação de Lutero à de Thomas Münzer, Engels descreveu o último como um grande líder revolucionário, um profeta que era capaz de incendiar as massas plebéias e tinha um programa político explicitamente radical, próximo do conteúdo programático dos comunistas modernos, ou talvez muito mais maduro

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em sua radicalidade e nas transformações sociais que reivindicava. Mesmo que tenha dito em outra passagem do texto que a religião era a máscara que encobria as lutas entre camponeses, burgueses e aristocratas, Engels reconheceu que “a doutrina política de Münzer procede diretamente de seu pensamento religioso revolucionário”.26 E acrescentou

de forma crítica:

Se a filosofia religiosa de Münzer se aproximava do ateísmo, seu programa político tinha afinidade com o comunismo. Muitas seitas comunistas modernas, em vésperas da revolução de fevereiro não dispunham de arsenal teórico tão rico como os de Münzer do século XVI.27

Convém ressaltar que, em 1843, Weitling escreveu no seu livro O Evangelho do Pobre Pecador que Jesus foi o primeiro revolucionário, cuja luta contra os fariseus e os ricos dava ao Evangelho o seu significado Socialista e que Karlstadt e Thomas Münzer provaram que todas as idéias democráticas são conseqüências do cristianismo.28 Engels retomaria tais

idéias, mesmo reconhecendo em Weitling um socialista utópico, não cientista como ele e seus companheiros.

Analisando tais comparações diríamos que há um certo anacronismo ao comparar o século XIX com o século III ou o século XVI, pois representam conjunturas históricas muito diferentes. Por outro lado, entendemos o problema como uma demonstração da importância que o fato religioso tinha na História da Alemanha. Marx, ao buscar traçar as origens revolucionárias alemãs, disse que “o passado revolucionário da Alemanha é efetivamente teórico e a Reforma... a Guerra dos Camponeses, o fato mais radical da história alemã, esbarrou na teologia”.29 Tais aspectos

contestatórios ou revolucionários do cristianismo primitivo e do movimento anabatista, exerceram um verdadeiro fascínio sobre os marxistas, a exemplo de Ernst Bloch que escreveu Thomas Münzer, Teólogo da Revolução .Ao se reportar ao anabatismo, Bloch ressaltou o irrompimento

do Império quiliástico30 e disse que “nunca a humanidade pretendeu e

experimentou algo tão profundo, quanto nas intenções deste anabatismo, rumo à Democracia mística”. Também Rosa Luxemburgo se debruçou sobre o tema, ao escrever O Socialismo e as Igrejas: O Comunismo dos Primeiros Cristãos afirmou que “os primeiros apóstolos do cristianismo eram ardentes comunistas, lutando por justiça social”31 .

Antonio Gramsci tentou reformular a teoria marxista/engelsiana da religião, abandonando a interpretação determinista e recuperando os elementos históricos ou utópicos, na perspectiva de realizar, mediante o conflito social, uma sociedade mais justa. Gramsci destacou na sua obra

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a importância do catolicismo na formação social italiana. As principais reflexões gramiscianas sobre o tema foram traduzidas sob o título Maquiavel, A Política e o Estado Moderno.

Entendemos que a sedução das guerras camponesas anabatistas sobre o pensamento marxista pode ser compreendida pelo fato de que pela primeira vez nos tempos modernos – não podemos esquecer das heresias medievais, verdadeiros movimentos de contestação à ordem estabelecida – uma classe social se levantava em armas contra a opressão vigente tendo como matriz ideológica a religião cristã, tomando como justificativa para suas reivindicações os próprios textos bíblicos, usados secularmente de forma ideológica para legitimar a submissão das camadas populares e a exploração dos poderosos. As “fantasias quiliásticas” ou milenaristas dos primeiros cristãos, que esperavam um reino de mil anos de paz e felicidade, tornaram-se base para exigências de uma nova ordem social, o Reino de Deus que se instalaria pelo fio da espada na sociedade em que viviam, não apenas no coração dos fiéis como pregavam os reformadores moderados, vinculados à burguesia.

Em 1880, Engels escreveu Do Socialismo utópico ao Socialismo Científico, uma obra na qual analisou o papel desempenhado pela religião nas chamadas revoluções burguesas. Na sua concepção, na primeira revolução emancipatória da burguesia, a Reforma Protestante jogou um papel importantíssimo. Em especial, a Reforma Calvinista, pois “se o reino de Deus era republicanizado, os reinos deste mundo não podiam

permanecer sob o domínio de monarcas, de bispos e senhores feudais.”32

Um outro movimento burguês, no qual a religião se fez presente, foi a Revolução Inglesa do século XVII. Engels se referiu ao calvinismo da burguesia que colocou em cheque a monarquia absoluta e criou formas representativas de poder, a exemplo do parlamento. No entanto, estudos mais recentes sobre a onda revolucionária do século XVII na Inglaterra trazem à luz um verdadeiro furacão produzido por diversos grupos protestantes dissidentes, não calvinistas, formados pelas camadas mais baixas da população, que além de contestar a monarquia, os bispos anglicanos e a burguesia calvinista, exigiam transformações radicais nas estruturas sociais.

Christopher Hill, mais um marxista fascinado pelos estudos da religião como um elemento catalisador de contestação da ordem, no seu brilhante livro A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII, assim opinou:

Os ingleses tiveram de enfrentar situações revolucionárias inesperadas, durante os anos 1640 e 1650, sem nenhuma orientação teórica como a que Rousseau e Marx deram a seus sucessores franceses e russos... A Bíblia em inglês foi o livro ao

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qual naturalmente voltaram-se em busca de orientação. Era a Palavra de Deus, cuja autoridade ninguém podia rejeitar. Era o maior patrimônio da nação inglesa protestante.33

Hill analisou com minudência e erudição as dezenas de panfletos e livros escritos pelos revolucionários protestantes dissidentes, questionando a autoridade dos monarcas, as desigualdades sociais e a concentração de terras nas mãos dos ricos. Os mitos bíblicos eram lidos e interpretados a partir da realidade em que viviam naquele momento, o que alarmava sobremaneira os ricos e as autoridades constituídas. Os leveller fizeram de Caim um símbolo para todas as formas de exploração, inclusive a opressão de classe. Os demais grupos dissidentes ressignificavam as doutrinas bíblicas de forma extremamente radical: “a exigência dos diggers por uma glória aqui na terra, a idéia dos ranters e quaquers de que devemos ser redimidos nesta vida, tudo isso continha possibilidades seculares subversivas.”34

Outros autores marxistas também ressaltaram a importância das concepções religiosas na revolução inglesa. Em vigorosa polêmica com Perry Anderson, E. P. Thompson colocou a relevância da religião nos movimentos sociais e políticos da Inglaterra de forma enfática. A religiosidade dos dissidentes protestantes não era máscara ou obscurantismo como pensava Anderson, mas um elemento importante na construção de seu ideário revolucionário. Em suas próprias palavras:

A Revolução Inglesa foi disputada em termos religiosos não porque seus participantes estavam confusos com relação aos seus interesses reais, mas porque a religião importava. As guerras giraram em boa medida, em torno da autoridade religiosa. Um direito de propriedade do homem sobre sua própria consciência e lealdades religiosas tornara-se tão real quanto (e momentaneamente mais real que) direitos de propriedade econômica.35

Segundo Engels, a Revolução Inglesa foi o último grande movimento burguês que precisou da religião para se constituir ou legitimar-se. Para o autor foi, de fato, a Revolução Francesa que rompeu completamente com as tradições do passado e “varreu os últimos vestígios do feudalismo... mas foi também o primeiro movimento que rejeitou totalmente a vestimenta religiosa e travou todas as suas batalhas no

terreno abertamente político.”36 Este é o Engels devedor do iluminismo

ao proclamar o triunfo da razão, desbancando e se contrapondo à religião.

As pesquisas mais recentes nos permitem afirmar que os prognósticos engelsianos estavam em parte equivocados: é verdade que

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Engels e a abordagem científica da religião

o triunfo da burguesia francesa sobre a aristocracia transformou completamente as relações de poder na França do final do século XVIII. Porém, a religião continuou a corroborar na construção da visão de mundo de diversos segmentos sociais nos séculos seguintes, inclusive da burguesia. Na Inglaterra do século XIX, o metodismo, uma dissidência protestante do anglicanismo, foi um elemento chave tanto na formação da ética burguesa, quanto na formação da classe operária. Foi E. P. Thompson, em sua obra magistral a Formação da Classe Operária Inglesa, que nos desvendou as imbricações religiosas no contexto histórico inglês no período: “o metodismo e suas contrapartidas evangélicas foram religiões de elevada consciência política.”37

No documento Friedrich Engels e a ciência contemporânea (páginas 179-183)