• Nenhum resultado encontrado

2.2 O CONTEXTO HISTÓRICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

2.2.1 A abordagem patrimonialista da administração pública

O fato de o Brasil ter sido uma colônia de exploração de Portugal produziu um conjunto de relações sociais, políticas e econômicas legadas até nossos dias. Nos primeiros trinta anos, a partir da chegada dos europeus em 1500, os portugueses apenas trataram da exploração das matas nativas, particularmente do pau-brasil. Diante de constantes pressões de outras nações para tomar a colônia portuguesa, a coroa viu-se na obrigação de colonizar o Brasil como estratégia para garantir sua posse da terra (PRADO JÚNIOR, 1977).

Contudo, a colonização não se realizou de maneira a desenvolvê-la, mas de maneira predatória, como assinala Holanda (1995, p. 43): "Essa exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e energética: fez-se antes com desleixo e certo abandono."

A relação da coroa portuguesa com sua colônia implicou no transplante para o Brasil de paradigmas da administração pública muito caros à metrópole. Esses paradigmas eram fundamentados numa estrutura de poder norteada por dois princípios: o poder absolutista e um aparelho estatal bem estruturado (MARTINS, 1997; PRADO JÚNIOR, 1976). Nesse sentido, um grande número de funcionários públicos protegidos pelo rei gravitava em torno da corte com uma mentalidade avessa ao trabalho manual e forte apego ao cargo público.

Portugal tinha uma atuação estatal calcada na intervenção direta do Estado na economia. O Estado, onipresente, controlava as atividades econômicas, seja diretamente ou por meio de concessões vigiadas. Para tanto, o poder estatal envolvia um grande aparato de controle, utilizando um corpo bastante volumoso de funcionários da coroa. A partir de um Estado centralizador, com uma política de exploração e não de povoamento, de um grupo de funcionários da coroa que agiam de maneira a sustentar uma prática de concessões feitas a

particulares pelo Estado, formou-se no Brasil colônia uma maneira de administrar com base na troca de favores, que marcou todo o quadro da história política do país (PRADO JÚNIOR, 1976, 1977; HOLANDA, 1995).

A estratégia colonizatória portuguesa de entregar a donatários grandes glebas de terra por meio do sistema das Capitanias Hereditárias proporcionou as bases de um sistema produtivo, calcado no escravismo e na grande propriedade. Essas Capitanias eram entregues de acordo com os interesses da coroa portuguesa que buscava doar terras na colônia a pessoas com elevada posição social, considerável volume de posses e, ainda, a partir de avaliações de ordem pessoal (PRADO JÚNIOR, 1976). Dessa maneira, o poder político da Coroa era exercido no Brasil por meio dos grandes proprietários rurais (PRADO JÚNIOR, 1977).

Apesar dessa tentativa de controle da coroa, a impossibilidade da colonização efetiva via capitanias hereditárias, devido à diversos fatores, sendo o mais marcante a imensidão do território a ser ocupado, fez com que ganhassem força as Câmaras Municipais. Tratava-se de uma forma de administração instituída na colônia pela coroa portuguesa, que tinha como principais articuladores os proprietários rurais. As Câmaras eram compostas pelo "homens bons", ou seja, grandes proprietários rurais que tinham amplos poderes conforme descreve Prado Júnior (1977, p. 29):

Vemos as câmaras fixarem salários e o preço das mercadorias; regularem o curso e o valor das moedas; proporem e recusarem tributos reais, organizarem expedições contra o gentio e com ele celebrarem pazes; tratarem da ereção de arraiais e povoações; proverem sobre o comércio, a indústria e a administração pública em geral; chegam a suspender governadores e capitães, nomeando-lhes substitutos, e prender e por a ferro funcionários e delegados régios.

Essa autonomia do poder local por meio das Câmaras Municipais foi cerceada pela coroa portuguesa a partir do século XVII. Nesse período, além da economia agrícola, cresceu o comércio, por obra de uma burguesia de negociantes majoritariamente portugueses já que as

leis de Portugal para a colônia excluíam dessa atividade pessoas de outras nações (PRADO JÚNIOR, 1977).

A autoridade política foi se deslocando das Câmaras Municipais para os governadores e funcionários reais e a Coroa portuguesa logrou seu intento de concentrar novamente o poder sobre sua colônia. Esse quadro somente foi alterado com a vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808. A transferência da corte provocou a abertura dos portos às nações amigas − leia-se: à Inglaterra − favorecendo o aumento das atividades comerciais (PRADO JÚNIOR, 1977).

Quando D. João VI e sua corte retornaram a Portugal, deixando aqui seu filho Pedro I, a coroa tenta um processo de "re-colonização" do Brasil. Esse intento provocou a revolta dos grupos que haviam conquistado certa autonomia durante a permanência da corte que, aliados ao descontentamento do príncipe regente, produziram a Independência do Brasil, em 1822.

Contudo, essa independência não representou um avanço na administração pública do país já que o Império foi pautado pelo centralismo e pelo absolutismo que "suprimiu a liberdade de imprensa, encheu os cargos públicos de apaniguados, enquanto abertamente favorecia os interesses que representava" (PRADO JÚNIOR, 1977, p. 56).

Durante o Império, a política de favores se constituiu na maneira predominante de atuação da administração pública. Segundo Holanda (1995), os mandatários confundiam interesses privados com os públicos, usando os recursos do Estado para distribuição de favores pessoais. Para esse autor (1995, p. 145 −146), "as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos" da coletividade.

Esses padrões foram se enraizando e produzindo permanências na administração pública brasileira de sorte que se transformaram na maneira usual de tratar a coisa pública. Uma administração pública pré-moderna alicerçada na pessoalidade e no interesse privado em

detrimento do público acompanhou todo o período colonial, o período imperial e a República Velha (HOLANDA, 1995), caracterizando-se, assim, uma administração pública patrimonialista.

O patrimonialismo, contudo, não surgiu no Brasil colônia, pois suas origens são bem mais remotas. Relaciona-se com o surgimento do feudalismo. Mesmo antes do esfacelamento do poder central pela queda do Império Romano em 476, já havia, na Germânia, vínculos feudo-vassálicos que se aprofundaram, resultando num conjunto de relações de proteção e vassalagem que caracterizavam a estrutura medieval (BATISTA NETO, 1989; BLOCH, 1979; LE GOFF, 1983).

Essa troca de favores, apesar do declínio da Idade Média em 1492, ainda continuou presente no cenário das relações políticas da Europa ocidental, nas monarquias absolutistas. Somente no final do século XIX, esse quadro se alterou na direção de uma obediência menos pessoal e mais racional ao Estado (BATISTA NETO, 1989).

Para Bresser-Pereira (1998, p. 47), o patrimonialismo consistia num tipo de administração pública no qual "o patrimônio público e o privado eram confundidos; o Estado era entendido como propriedade do rei. Os cargos públicos eram com freqüência propriedade de uma nobreza burocrática e prebendária [...]".

Segundo a ENAP (2002), o patrimonialismo se consolidou junto com o Estado Moderno, no final da Idade Média, e tem como características centrais:

a) os bens e os recursos públicos tratados como propriedade particular pelos mandatários;

b) a falta de distinção entre público e privado e a aceitação social da utilização dos bens públicos para o enriquecimento pessoal;

c) as relações entre os atores políticos e o quadro administrativo baseadas na lealdade pessoal e no clientelismo;

d) o favorecimento de aliados e parentes que impede a gestão profissional de recursos humanos.

Esse modelo de administração pública fundamentada em favores fortaleceu algumas práticas bastante comuns na cena política. Segundo Weber (1991, p. 131), o patrimonialismo se insere no contexto da dominação tradicional cujo seu tipo mais puro é o da dominação patriarcal. Essa forma de dominação:

Estritamente firmada pela tradição [...] age conforme seu prazer, sua simpatia ou sua antipatia e de acordo com pontos de vista puramente pessoais [...]. Ele consta de dependentes pessoais do senhor ou de pessoas que lhe estejam ligadas por um vínculo de fidelidade.

O uso da dominação patrimonial no Brasil ramificou-se para a prática do clientelismo. Os bens públicos eram distribuídos, tanto em sua posse quanto em seu uso, de acordo com os interesses da coroa e de seus representantes. Dessa maneira, os funcionários da coroa detinham grande poder sobre as atividades produtivas e alimentavam uma rede de favoritismos (HOLANDA, 1995).

Embora ainda sejam perceptíveis práticas clientelistas e personalistas, desde os anos 30, por força da pressão da opinião pública, o Estado brasileiro vem implantando reformas no intuito de superar o vício patrimonialista. Dessa arte, a forte crítica à abordagem patrimonialista deu forças para que o modelo de administração pública burocrática, com seus acertos e disfunções, fosse implantado no Brasil.