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A abordagem por competências e seus diferentes sentidos no mundo do

3 OS REFERENCIAIS TEÓRICOS DA INVESTIGAÇÃO

3.3.3 A abordagem por competências e seus diferentes sentidos no mundo do

As palavras têm significados, valor expressivo, valor cultural, político; têm contexto, ou seja, elas falam de sentidos diferentes e sob a óptica de quem analisa e se manifesta, a partir de sua apreensão do mundo e de suas convicções sobre ele. Demo (2010, p. 7) nos fala que todo conceito é limitado pelo ponto de vista do observador, sua multiculturalidade/história, seu foco eventual.

Na reflexão e no debate atual sobre a discussão das competências, estamos partindo da ideia de que seu significado também guarda estes sentidos, sobretudo se observarmos que ele

pode ser aplicado no mundo do trabalho e da formação, guardando especificidades próprias, intencionalidades, assim como referenciais teóricos, mas que, contraditoriamente, podem se articular ou não nestes dois mundos de saberes e vivências.

Etimologicamente, a palavra competência traz-nos o sentido de “competitividade”, vem do «lat[im] de competĕre, "competir, concorrer, buscar a mesma coisa que outro"; [in Dicionário Eletrônico Houaiss]. Demo (2010, p.6) também nos fala: “Não descarto o termo

competência, porque competitividade é parte da vida em sociedade, pelo menos nas sociedades conhecidas, também não “liberais”. Continua, citando Ulanowicz (2009), “competitividade é noção derivada, não fundante propriamente: para duas pessoas competirem, precisam, antes, se encontrar... Por isso, antes vem “mutualidade”, ou seja, a condição de convivência natural dos seres, dependendo uns dos outros”. Lembra-nos que a competitividade se manifesta tendo em vista que os recursos disponíveis são escassos e como as condições de vida nunca são plenas, há necessidade de dividi-las. Este processo, porém, ante o escasso, o limitado, poderá ser enfrentado na comunhão ou na disputa; numa perspectiva coletiva ou individualista. Lembramos a história bíblica dos primeiros cristãos que praticavam a comunhão fraterna, repartindo em coletividade os bens materiais e imateriais; e a visão liberal, fortemente presente nos nossos dias, que enfatiza a capacidade individual na perspectiva da disputa e superação do outro, visando a um interesse particular, a uma conquista individual. A este último sentido, nos nossos dias, está fortemente associada a ideia de competência.

Desta maneira, e sob o enfoque do sistema de produção capitalista, vê-se o mundo da empresa marcado pelos sentidos de competitividade, com foco na produtividade, individualismo, na premiação etc. E aqui queremos dar o recorte à nossa percepção de que “mundo do trabalho” é mais amplo do que o dito “mercado de trabalho” ou “mundo da empresa”, pois implica diferentes espaços que envolvem a relação contratual de trabalho, as esferas privadas e públicas; que organizam e mobilizam seus trabalhadores em direções diferenciadas (ou não), que podem por um lado, trabalhar na busca do lucro, visando ao mercado; desconhecendo os direitos humanos em suas relações. Por outro lado, temos as relações de trabalho que se desenvolveu no âmbito das políticas públicas, que, embora possam ser influenciadas pelo espírito liberal, se pautam, com um importante tensionamento de seus trabalhadores, na atenção coletiva à população, em ações programáticas, com critérios de atenção, controle social, orientando-se pelos referenciais de direitos sociais conquistados nas últimas décadas da história democrática brasileira.

Compreenda-se, ainda, que o “mundo do trabalho” em que retratamos nossa análise, é o Sistema Único de Saúde e seu contexto sociopolítico, tecido por inúmeros agentes. É neste mundo do trabalho do sistema de saúde que queremos refletir sobre as “competências”, como abordagem educativa e pedagógica presente e que se materializa no “mundo da formação” da saúde, e que constrói um vínculo permanente com a Rede da Gestão e Atenção. É aí que lembramos da idéia de Demo (2010, p. 7) quando diz: “o termo competência pode ser entendido a contento, desde que recepcionado adequadamente no contexto educacional”. Esta abordagem chega, então, no campo da formação em saúde, sob a orientação das DCN da formação profissional técnica e dos RCN da educação profissional técnica na área da saúde, subsidiada ainda pela Politica Nacional de Educação Permanente em Saúde, uma proposta de ação estratégica que visa a contribuir para transformar e qualificar as práticas de saúde desenvolvidas no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, estreitando a relação entre ensino e serviço.

No sentido político, a abordagem por competências chega ao campo da educação brasileira rodeada de questionamentos, sem deixar de relacioná-la a uma intencionalidade de retorno ao paradigma técnico dos anos 1970, voltado apenas para o saber prático e utilitário, “com base filosófica do racionalismo, atendendo demanda do setor produtivo; individualista (centrada no aluno) e pragmático (utilitarismo e adaptabilidade)”. (ARAÚJO, 2001,30 in MAUÉS et al, 2009). Tudo isto ainda é fortemente relacionado às práticas da ditadura, do autoritarismo e da imposição e subordinação aos paradigmas americanos aplicados no Brasil dos anos 1960 e 1970. Há que se diferenciar, portanto, a ambiência de momentos políticos distintos e a construção democrática que se cultiva na atualidade com importantes reflexos nas áreas educacional e da saúde.

Com a conquista da democracia no Brasil, os anos 1980 marcam a reconstituição de suas políticas, sobretudo no campo social, redesenhando caminhos, então com a participação dos atores em cena. A constatação da distância entre o mundo real e o mundo da formação, e das indagações: o que a sociedade espera da escola? E Educação para que e a serviço de quem? Neste sentido, lembramos Paulo Freire que é sujeito marcante neste período, quando questiona a “educação bancária”, discutindo o valor da consciência crítica dos estudantes para a transformação do mundo.

A história da Educação Profissional no Brasil também foi determinada pelo contexto sociopolítico que tem os anos 1980 como referência na realidade educacional. Antecede aos anos 1980 uma realidade que denuncia a baixa escolaridade da classe trabalhadora, cuja formação ofertada limitava-se a treinamento para a produção, marcando também a baixa

autonomia dos trabalhadores. A fase que marca o pós anos 1980 evidencia as novas formas de organização e gestão modificando o mundo do trabalho, com emprego de tecnologias complexas, internacionalização das relações econômicas e exigências quanto à educação geral para todos os trabalhadores; Educação Profissional básica aos não qualificados, qualificação profissional técnica; educação continuada para atualização e aperfeiçoamento, especialização e requalificação de trabalhadores. (BRASIL. Parecer CNE 16/99).

É neste panorama histórico e com este peso político que a noção de competência chega ao campo da educação no Brasil, como um movimento de escala internacional, orientando os desenhos curriculares, com a intenção de encurtar o distanciamento entre os mundos real e da formação.

Rey (2006), conduzindo uma reflexão sobre “Competências Profissionais e o Currículo: realidades conciliáveis?”, parte de algumas constatações em pesquisas de sua autoria: os jovens não se sentem preparados para a prática profissional ao concluir o curso; o currículo de formação não atende a necessidade do saber-fazer profissional, tomar decisão, gestão dos acontecimentos, no contexto dos saberes e das tecnologias. Assim, defende o currículo por competências concebido como um plano que deve se organizar desde uma progressividade, e inspirado na prática profissional, que favoreça a aprendizagem. Destaca, ainda, o autor sua compreensão sobre o currículo que se organiza associando teoria e prática, evidenciando a importância da didática, do saber teórico, dos saberes profissionais, trabalhados a partir de competências profissionais, que facilitam a aprendizagem; observando quanto aos riscos de redução behaviorista das tarefas aos comportamentos.

Entre limites e possibilidades da aplicação da ideia de competências no contexto educacional, os referenciais são diversos e a crítica é expressa em diferentes dimensões, quando trata da construção de currículos por competências. Sem querer esgotar os argumentos manifestados por diferentes sujeitos ao longo de nosso estudo, relacionamos duas dimensões da crítica no quadro a seguir. A dimensão 1 funda sua crítica no modelo das competências, refletindo um caráter comportamentalista, condutivista das competências, enquanto a dimensão 2 faz a crítica ao modelo pedagógico tradicional, disciplinar, identificando no modelo das competências possibilidades de superação desse modelo.

Quadro 6 – Críticas às Dimensões da Abordagem por Competências, nos Currículos

DIMENSÃO 1 DIMENSÃO 2

Caráter apenas pessoal

Fundada no Behaviorismo: aluno é passivo

Educação: técnica, instrumental e aplicada

Reducionista, utilitarista Formar = treinar (destreza)

Estrutura a formação de acordo com as competências a desempenhar no posto de trabalho

Memorização por meio de exercícios repetitivos

Comportamento/ Conduta

Centrada na formação particular em detrimento da formação geral

Subordinação da escola ao mercado Visa formação de capacidades úteis,

buscando adaptação

Tônica no saber-fazer, tornando a educação meramente técnica

Reação contra aprendizagens academicistas

Contrária a práticas educacionais tradicionais que atuam com ênfase no conteúdo e na memorização

Busca dar sentido ao que se aprende

Integra mundo da formação e mundo do trabalho

Passa da aprendizagem centrada nas matérias, por saberes e na transmissão, para uma pedagogia baseada nas competências em ação (mobiliza competências para resolver problemas)

Maneira de tornar a ação pedagógica mais global e mais significativa para os alunos

Dimensão dinâmica da aprendizagem que dá à pessoa em formação a possibilidade de evoluir

Não se reduz à soma das aprendizagens realizadas no âmbito de cada disciplina, pois a formação é resultado de ações coordenadas, exigindo dos formadores esforços colaborativos Funda-se na mobilização de um conjunto de recursos internos

e externos

Pondera que a assimilação de saberes formalizados não é suficiente para propor ações eficazes

Articula o saber e o fazer. Constrói-se a competência pensando a ação (intelectual e física)

O currículo composto por disciplinas, caracteriza-se como um espaço de controle, fechado, individualizado, hierarquizado

Fonte: Elaboração própria com a contribuição de autores diversos: LOIOLA (2010); MAUÉS et al (2001); REY

(2006); TARDIF (2006).

Poderíamos aqui tecer uma infindável lista de considerações dirigidas à abordagem por competências, e ao desenho curricular tradicional. Acreditamos que sua aplicabilidade hoje se dá de maneira diversa, com base na visão e nos sentidos que ela encontra nas instituições de ensino. Necessariamente esta aplicabilidade se associará a linhas metodológicas e métodos de ensino-aprendizagem presentes no contexto da ação educativa, para lhe dar materialidade e configurações diferentes.

Exibimos a seguir um diálogo das elaborações conceituais da noção de competências por diferentes autores.