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3 OS REFERENCIAIS TEÓRICOS DA INVESTIGAÇÃO

3.3.2 Abordagem por competências: pressupostos e intenções

Vimos refletindo sobre a origem do paradigma das competências, observando que os processos históricos desencadeados no campo da educação, em realidades sociais diversas e sob diferentes abordagens, definem objetivos e mobilizam estratégias para reorientar a relação educação-trabalho. Estes constituem-se, portanto, como um pano de fundo que demonstra um amplo processo de mundialização da educação, onde a noção de competências pauta, nas três últimas décadas, as reformas na política de educação, alterando suas bases curriculares e práticas pedagógicas, sem, contudo, se eximir de contestações à sua implantação.

Apresentamos e fazemos a seguir um diálogo entre as concepções da noção de competências, compreendendo que, se não há unanimidade, sua aplicabilidade também apresentará diferentes processos e resultados.

A noção de competências é um tema atual, que, em contextos variados, vem orientando os diferentes níveis da formação, desde a educação básica à superior, marcando de forma bem mais evidente os processos de formação profissional e educação continuada.

Segundo Boterf (2005), do ponto de vista das relações profissionais, o conceito de competência ganha importância a partir de 1970, e a discussão se acentua dentro da década de 1980, para culminar dentro dos anos 1990. Podemos observar, entretanto, que, o “movimento das competências” (PAQUETE, 2002), que se apresenta em cena nas últimas décadas, não chega uniformemente e a um só tempo aos países que a adotam.

Diferentes autores reconhecem a Europa como o local onde primeiro se manifesta o debate sobre competências, embora sob interesses e motivações diferenciadas, sendo possível identificar a influência das novas formas de organização do trabalho nos processos formativos e entre os países na implementação dos modelos de formação por competências.

Competência é um termo utilizado por diversas áreas do conhecimento e sua aplicação se dá em diferentes contextos. Identificamos sua utilização conceitual na Linguística, na Sociologia, no campo jurídico, na Educação, no trabalho, dentre outros. Cada um destes campos reverte-se de fundamentos epistemológicos, imprimindo valores científicos e/ou ideológicos à discussão que fazem da concepção de competência.

O termo tem origem mais remota no contexto geral da educação. Um dos pioneiros do uso da palavra “competência” em Linguística e em Didática de línguas foi Noam Chomsky. Ele considerava que as pessoas já nascem com uma competência linguística, um potencial biológico que é inerente à espécie humana, e que possibilita o acesso por meio de um mecanismo mental próprio, um código sintático-estrutural da língua.

Dell Hymes, linguista dos EUA, desafiou as formulações de Chomsky baseado no pressuposto de que pessoas diferentes têm comandos diferentes sobre sua língua. Este ponto de vista o fez desenvolver a expressão competência comunicativa, que parece apresentar um sentido mais inclusivo, uma vez que engloba o conjunto inteiro de conhecimentos: linguísticos, sociolinguísticos, discursivos e estratégicos. Portanto, para Hymes, a competência comunicativa não é inata, ela é uma capacidade adaptativa e contextualizada, cujo desenvolvimento requer uma aprendizagem e por consequência, intervenções formativas (LOIOLA, 2010).

Crahay (2006) advoga, porém:

O conceito de competências não vem diretamente do campo da psicologia cientifica, mas antes do mundo da empresa. Isto é o que admitem grande parte dos autores (notadamente BRONCKART E DOLZ, 2002; CRAHAY & FORGET; DUGÜE, 1994; HIRTT, 1996; ROPÉ, 2002). Seus percursos de difusão são o seguinte: emergência dentro do mundo da empresa, retomada pela OCDE17 que o

difundiu entre os decisores dos Sistemas Educativos, propagando dentro do setor de

formação profissional, do ensino em geral, e enfim, assumido o conceito pelas Ciências da Educação. (p.100).

Sobre que motivação nasce a idéia de formação por competências?

Como vimos, diferentes motivações mobilizam este movimento em escala internacional. O mundo produtivo olha para o mundo da formação desde sua necessidade de reprodução do capital, de seus interesses, de sua sustentabilidade econômica. Por outro lado, identificamos movimentos que apontam para a necessidade de retraduzir finalidades educativas, desde uma formação global e a longo prazo, podendo configurar-se a abordagem por competências como uma orientação na perspectiva de reorganização dos programas formativos, e como uma expressão de uma nova concepção de aprendizagem que se apoia sobretudo nas ciências cognitivas, socioconstrutivismo, construtivismo (LOIOLA, 2010). Somente apoiando-se em um referencial de formação profissional, que aponte para além da preparação para a empregabilidade, atento à formação global do cidadão (técnica, comunicativa e sociopolítica), é que podemos pensar a educação como instrumento de resistência, que tensiona a luta pela emancipação humana.

Apresentamos a seguir a posição de alguns autores.

Grootings (apud RAMOS, 2001) destaca dois movimentos significativos de abordagem da formação e aprendizagem profissional baseada nessa noção:

A adaptação da formação profissional existente ao aparecimento de novas formas de organização do trabalho e do novo tipo de estratégias de recrutamento das empresas. O primeiro movimento, segundo o autor, é característico de contextos em que a formação e a aprendizagem profissional estão pouco implantadas – é o caso da Espanha e França – ou onde há uma profunda insatisfação em relação ao modelo existente – é o caso do Reino Unido e do México. O Segundo movimento ocorre em países que se beneficiam de um sistema de formação profissional bem desenvolvido. Este último é o caso da Alemanha. (p. 94)

Como explica Grootings (apud RAMOS, 2001):

Neste país (Alemanha) há um forte consenso quanto ao fato de o sistema de formação profissional preparar realmente os trabalhadores competentes que o sistema de emprego procura. Não se ignora que tenha problemas, mas com o envolvimento dos parceiros sociais, por um lado, e por outro, com a orientação voltada para as definições profissionais socialmente aceitas, tanto as relações industriais quanto os mecanismos do mercado de trabalho parecem estar numa posição que garanta um bom enquadramento da formação e do emprego. (p. 94).

Temos constatado que, embora a Europa tenha protagonizado desde os anos 1950 a utilização do conceito de competências nas suas relações entre trabalho e educação, como é o

caso da experiência da França, o debate é mais fortemente marcado nos anos 1980, quando mudanças no mundo do trabalho, estimuladas pela crise do capital, passam a demandar uma nova reorganização do sistema de trabalho, e de formação profissional, em contextos institucionais e sociopolíticos próprios de cada país.

Segundo Ramos (2002),

As mudanças tecnológicas e organizacionais do trabalho por que passam os países de capitalismo avançado a partir dos meados da década de 1980 configuraram o mundo produtivo com algumas características tendenciais: flexibilização da produção e reestruturação das ocupações; integração de setores da produção; multifuncionalidade e polivalência dos trabalhadores; valorização dos saberes dos trabalhadores não ligados ao trabalho prescrito ou ao conhecimento formalizado (p. 1).

Neste âmbito de transformações, diz ainda Ramos (2002), a emergência da noção de competência responde ao propósito de reordenar conceitualmente a relação trabalho/educação, retirando o foco dos empregos, das ocupações e das tarefas para o trabalhador, em sua relação com o trabalho; institucionalizando ainda novas formas de educar/formar os trabalhadores, gerir às organizações e o mercado de trabalho em geral, sob novos códigos profissionais.

Conforme Deluiz (2001),

A adoção do modelo das competências profissionais pelas gerências de recursos humanos no mundo empresarial está relacionada, portanto, ao uso, controle, formação e avaliação do desempenho da força de trabalho diante das novas exigências postas pelo padrão de acumulação capitalista flexível ou toyotista: competitividade, produtividade, agilidade, racionalização de custos. Este modelo tende a tornar-se hegemônico em um quadro de crise do trabalho assalariado e da organização prescrita do trabalho e do declínio das organizações profissionais e políticas dos trabalhadores. (p.1).

Admitindo a influencia do mundo da produção sob as diferentes formas de organização dos sistemas sociais, especialmente sobre o sistema de educação, pelo potencial que esta representa na efetivação de mudanças, os sistemas educativos respondem por meio de reformas que demonstram diferentes propósitos.

Acreditam autores que o termo competência, embora nascendo no contexto do mundo do trabalho, especialmente no das empresas, poderá se configurar com sentido próprio e com outra abrangência no contexto da educação. Podemos ainda refletir: assim como o mundo da produção tem influencia sobre os processos de formação; estes poderiam também provocar alteração no mundo do trabalho?

De acordo com Machado et al. (2002), em uma sociedade na qual o conhecimento se transformou no principal fator de produção, é natural que muitos conceitos transitem entre os universos da economia e da educação. Ideias como as de qualidade, projeto e valor são exemplos importantes desse trânsito, bem como da cautela necessária para lidar com ele. Argumentam ainda os autores:

A idéia de qualidade na empresa não significa o mesmo que na escola. Uma categoria- chave para a caracterização da qualidade na empresa é a de cliente, e um principio a ser considerado é o de que o cliente sempre deve estar satisfeito, sempre deve ter razão. Na escola, a categoria cliente ocupa um papel secundário: o protagonista é o cidadão. Claro que o consumidor, ou o cliente, constitui uma dimensão da formação do cidadão, mas reduzir a idéia de cidadão à de mero consumidor é uma simplificação absolutamente inaceitável. (p.140).

Segundo ainda Machado et al. (2002):

A noção de competência decorre essencialmente da insatisfação com a excessiva fragmentação a que o trabalho multidisciplinar tem conduzido, afastando o foco da organização do trabalho escolar da formação pessoal. Disso resulta um aparente consenso sobre a necessidade de um retorno à idéia de uma reunificação do conhecimento em migalhas propiciado pelas disciplinas, o que se busca em duas frentes: deslocando o centro das atenções das disciplinas para as competências pessoais e buscando uma integração entre as disciplinas, que atende pelo nome genérico de “interdisciplinaridade”. Poderíamos dizer, que o foco sai do conteúdo e desloca-se para o sujeito, promovendo não apenas conhecimento, mas a integração de saberes para o seu processo de formação mais ampla, desenvolvendo competências. (p. 149).

Perrenoud (2000, p. 1e 2 ) analisa a questão, apontando para as necessidades da sociedade, onde a atividade produtiva é parte. Segundo ele, as reformas do sistema educativo visam a:

Modernizar as finalidades do ensino, por meio de ajustes as necessidades das pessoas e da sociedade;

melhor atender aos objetivos de formação, instruindo de forma mais ampla e eficaz as gerações escolares. (p. 1-2).

Podemos assim compreender, conforme Legendre (2004), que existem diferentes aplicações do conceito de competência em variados espaços: na empresa e na organização do trabalho, na formação de adultos e na didática profissional, nos novos programas de estudo para o primário e secundário, e finalmente, na atividade de formação profissional, em relação estreita com as mudanças curriculares onde elas se inscrevem. Apesar das problemáticas específicas a cada um destes contextos, se destaca na noção de competência um certo numero de características ou ideias-chave que parecem ser largamente partilhados. A diversidade de

concepções, entretanto, ocasiona diferentes processos de elaboração e desenvolvimento de currículo/programas de formação que têm por anúncio a formação por competências.

Sacristán (2008) pondera duas perspectivas da utilização das competências. Destaca a primeira, que se faz presente na tradição de planejamentos, práticas e realização de experiências educacionais, onde o conceito de competências pauta os objetivos dos programas educacionais, o desenvolvimento do currículo e suas práticas pedagógicas, assim como a avaliação; podendo ser também, segundo ele, uma forma de identificar aprendizagens substantivas funcionais, úteis e eficazes, destacando três traços que podem marcar essa concepção: busca consolidar o que se aprende, dando funcionalidade aos saberes; enfoque utilitarista, destacando a competência desde o posto de trabalho; e, por fim, enfatiza o êxito, que cobra efetividade do que se quer conseguir para orientar metas e objetivos da educação. A segunda perspectiva analítica do autor marca o que ele chama de competência como “narrativa de emergência”, que, segundo o autor, vem com o discurso de “salvar a insuficiente e inadequada resposta dos sistemas escolares às necessidades do desenvolvimento econômico, para controlar a eficiência dos cada vez mais custosos sistemas, objeto de um fracasso escolar persistente”. (SACRISTÁN, 2008, p.16).

Vemos assim que, a APC é recepcionada sob diferentes visões e desenvolvida mediante práticas diversas com maior ou menor aprofundamento conceitual por parte dos operadores curriculares. Além da visão técnica sobre esta abordagem, que não é unânime, não é difícil perceber intencionalidades políticas que interpretam seu compromisso ideológico com o mundo do capital, ou, por outro lado, como uma oportunidade de reafirmar orientações democráticas que dão à escola e aos sujeitos que aí interagem possibilidades de construir novas práticas curriculares.

3.3.3. A Abordagem por competências e seus diferentes sentidos no mundo do trabalho e da