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3 OS REFERENCIAIS TEÓRICOS DA INVESTIGAÇÃO

3.3.4 A noção de competências: visões conceituais diversas

Competência como orientação e linguagem utilizada no campo da educação é expressa de formas diferentes – abordagem, noção, pedagogia, teoria, conceito, lógica e orientação. Há uma diversidade de formas de entendê-la e de fundamentá-la, e o seu sentido dificulta, por vezes, a comunicação.

O uso de “noção” para designar competência parece-nos trazer um sentido mais amplo, aberto, assim compreendida como uma concepção, uma idéia que se tem de algo; um ponto de vista (DICIONÁRIO HOUAISS, 2004). O uso da competência como uma abordagem também entendemos apropriado, pois se refere a forma de tratar um tema, questão, uma ideia (DICIONÁRIO HOUAISS, 2004).

Quanto ao seu significado, no senso comum, ser competente é ter a capacidade de executar com propriedade e eficácia uma ação ou de dar uma resposta apropriada ao que lhe é demandado. Assim, diz-se que uma pessoa é competente no que faz; mas, no campo da educação, quando falamos em formar por competência, o que queremos dizer?

Na verdade, como vimos, existem diferentes argumentos que convergem e se contrapõem, que se mostram antagônicos e que claramente se fundamentam em diferentes perspectivas teóricas.

Deluiz (2001) identifica quatro matrizes teórico-conceituais que orientam a identificação – definição e construção – de competências e direcionam a formulação e a organização do currículo:

1. matriz condutivista ou behaviorista – que observa a perspectiva do sujeito realizar bem o seu trabalho com foco nos resultados esperados, a partir do posto de trabalho e da tarefa; relaciona as competências no padrão de comportamento, por ser mais seguro na predição do êxito no trabalho;

2. matriz funcionalista – que dá ênfase nos produtos e não nos processos; as tarefas se transformam em competências;

3. matriz construtivista – estabelece relação entre atividades de trabalho e os conhecimentos incorporados e/ou mobilizados, relacionando competência com o contexto; e

4. matriz crítico-emancipatória – fundamenta-se no pensamento crítico-dialético, procurando ressignificar a noção de competência, apontando princípios para a investigação dos processos de trabalho, para organização do currículo e educação profissional ampliada.

Encontramos nas duas últimas matrizes os referenciais que fundamentam a abordagem por competências no campo da formação em saúde para o SUS; sendo a estas matrizes que nos associamos para pautar a discussão ampliada do que chamamos currículo por competências. Ampliada, porque consideramos currículo como um instrumento educacional

orientador que planeja, executa e avalia todo o processo formativo da escola. Hoje, e conforme orientação oficial, o currículo se pauta pelas competências e a forma como ele vai se desenvolver e o grau de amplitude do seu processo de materialização são determinados pela concepção e fundamentos de competência que a escola adotar.

Jonnaert (2002), autor que discute a APC, compreende o desenvolvimento da abordagem por competências, entre dois paradigmas epistemológicos distintos – comportamentalismo e socioconstrutivismo.

Jonnaert (2002) admite que as respostas comportamentalistas às questões do desenvolvimento dos conhecimentos já não são aceitáveis, contudo, reconhece a notoriedade das ideias de Bloom, na década de 1950, com o que se chamou de “Taxonomia de Bloom”, que concebe a aprendizagem escolar fortemente vinculada às teorias comportamentalistas; mediante a hierarquização do domínio cognitivo em seis níveis, em que cada um utiliza as capacidades adquiridas nos níveis anteriores: conhecer (relacionando-se a memorização), compreender (traduzir com palavras próprias), aplicar (utilizando recursos para encontrar solução a uma situação proposta), analisar (busca informação e a relaciona com base em critérios fornecidos), síntese (fazendo reflexões pessoais a partir de seu raciocínio, informações e conhecimentos) e avaliação (criticar, verificar, julgar o valor do conhecimento). Esta perspectiva da aprendizagem ainda tem forte influência na chamada “Pedagogia por Objetivos”, corrente pedagógica ainda utilizada.

Contrariamente à perspectiva comportamentalista, o autor concebe o socioconstrutivismo como uma hipótese epistemológica em que o sujeito constrói conhecimentos partindo do que ele já conhece sobre o assunto; neste caso, não concebe a ideia de que o professor é quem deve transmitir saberes aos seus alunos, antes, porém, é fundamental a participação ativa do aluno na construção do conhecimento. Enfatizando ainda o autor, que, os conhecimentos não são transmissíveis; ao contrário, eles são construídos por aquele que aprende. (JONNAERT, 2002).

Para o autor, a competência é desenvolvida pela pessoa em situação, com base em sua experiência do real. Compreende que toda competência é necessariamente fruto de uma dialética estabelecida entre uma pessoa e o contexto em que ela está necessariamente inserida. Jonnaert (2004) enfatiza a importância dos fatores sociais como condições para o desenvolvimento do sujeito, a partir de seu próprio repertório, compreendendo que a medida do seu desenvolvimento é marcada histórica e culturalmente.

Jonnaert advoga a idéia de que a lógica de competências adotada por numerosos programas de estudos no vasto movimento mundial de reformas curriculares se inscreve em uma perspectiva construtivista (JONNAERT, 2004)

Poderíamos citar diversas definições sobre a noção de competências, que, assim como sua história, é ao longo dos anos aplicada conforme os propósitos da educação, influenciando o desenho curricular ou programas de formação.

Embora bastante discutida, autores (MARKET, 2001 e 2004; JONNAERT, 2002) estão de acordo na ideia de que a noção de competência ainda carece de maior fundamentação teórico-metodológica e prático-pedagógica, “o que repercute diretamente sobre o entendimento de que seus objetivos venham a ser emancipatórios ou somente instrumentais” (MARKET, 2001, p.1).

A noção de competência como perspectiva pedagógica se constrói a partir dos anos 1960 e se desenvolve sobre a influência da Pedagogia por Objetivos, fundamentada na matriz behaviorista. Conforme já anunciado, esta matriz está fortemente associada à capacidade de atingir objetivos operacionais.

Sabemos, contudo, que o conceito é polissêmico e o debate ao longo das últimas três décadas torna-se intenso, sendo aprofundado no campo da educação. Identificamos o fato de que os diversos pensamentos concebem a competência em diferentes perspectivas. Se por um lado denunciam seu caráter tecnicista, instrumental, manifestando-se reducionista nos seus propósitos outros pensamentos consideram a abordagem por competências como uma nova lógica de organizar os programas formativos, e se contrapõem, denunciando a ineficiência das práticas tradicionais da educação, sua ênfase no conteúdo, na disciplinaridade e o foco na memorização de conhecimentos.

Autores (BOTERF, 2005; JONNAERT, 2002; MARKET, 2001; PERRENOUD, 2002; TARDIF, 2006) discutem a APC, reconhecendo-a não só como atributo individual, mas também como atributo coletivo; como um saber combinar e mobilizar recursos, enfatizando a importância do contexto de atuação; ou ainda numa dimensão integral de competência, envolvendo a dimensão técnico-metodológica, pessoal-intersubjetiva, sociocomunicativa e histórico-cultural.

Desta forma, a diversidade de concepções favorecem diferentes processos de elaboração e desenvolvimento de programas de formação/currículo que têm por anúncio a formação por competências.

Destacamos como importante uma discussão sobre a dimensão não apenas individual da competência, compreendendo que na complexidade do mundo do trabalho não é

responsabilidade apenas do indivíduo dar respostas “(...) para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”18. Boterf (2005) reconhece a competência

como atributo coletivo, como veremos adiante, mas traz uma reflexão sobre a dimensão pessoal:

As competências se referem sempre as pessoas. Elas não devem fazer esquecer o portador das competências. Não existe competência sem individuo. Suas praticas profissionais reais são as construções singulares, específicas a cada um. Face a um imperativo profissional (diante de um acontecimento, resolução de um problema, realização de uma atividade…), cada agente põe em prática seu próprio modo de fazer, seu próprio “esquema operatório. (p. 61-63).

De acordo com este pensamento, Machado (2002, p. 141) observa que a pessoalidade é, pois, a primeira característica absolutamente fundamental da ideia de competência. Destacamos o pensamento de Boterf (2005, pg. 62) “(…) esta evidencia das competências das pessoas, não pode conduzir a conclusão errônea de que a competência será unicamente um negócio individual. A imagem das duas faces de uma medalha, toda competência comporta duas dimensões: individual e coletiva”. Sobre este ponto de vista, o autor aduz quarto razões, para ele, essenciais, que justificam sua posição e que nos parecem procedentes e coerentes.

1. Para agir com competência, uma pessoa deve mais e mais combinar e mobilizar não somente seus próprios recursos, mas igualmente os recursos de seu ambiente: rede de profissionais, banco de dados, manuais de procedimentos (…). A resposta competente deverá ser uma resposta de rede e não somente uma resposta individual, mesmo se a interface com um problema ou um cliente é assegurado por uma pessoa. (…) Agir com competência supõe, então, saber interagir com outro.

Chamamos a isto de competência compartilhada.

2. Se uma competência profissional se manifesta dentro da mesma prática de uma ação em situação de trabalho, ele não vai esquecer que ele tem apoio sobre o corpo de saberes que são elaborados socialmente e a maior parte fora do contexto de trabalho (centros de pesquisa, universidades, escolas, redes profissionais e de especialistas…). A competência não pode ser separada das suas condições sociais de produção;

Chamamos a isto de competência subsidiada.

3. Se a competência resulta necessariamente de uma construção e de um engajamento pessoal, esta não significa que o individuo é sozinho responsável pela produção de uma ação competente. Resulta de um saber agir, querer agir e de um poder agir; a produção de uma ação competente levanta uma responsabilidade partilhada entre a pessoa ela mesma, a gestão, o contexto de trabalho e o dispositivo de formação.

Chamamos a isto de competência co-produzida.

4. A analise das situações de trabalho faz aparecer a necessidade para um profissional de poder se referir as normas e regras de seu meio profissional, de pertencimento para construir com segurança e pertinência sua própria “forma de aprender”, sua própria “forma de agir”. Cada coletivo de trabalho, graças às lições tiradas das experiências acumuladas, elabora suas próprias regras de trabalho (…) o que corresponde as “regras de arte”.

Chamamos a isto de competência contextualizada

Nesta reflexão, Le Boterf destaca elementos fundamentais para a definição de competência: a integração entre o seu caráter individual e coletivo; os saberes elaborados com base em referenciais diversos; a produção social da competência, na medida em que todos os recursos que venham a ser mobilizados, internos e externos, são construídos a partir das relações sociais e dos saberes desenvolvidos no espaço social. E, finalmente, ao contexto, considerando o valor do ambiente de atuação profissional, a gestão e a pactuação das regras partilhadas no espaço de convivência do trabalho.

Desta forma, Le Boterf (2005) sintetiza seu pensamento quando considera a competência como resultado de três fatores:

“Saber agir que supõe o saber combinar e mobilizar os recursos pertinentes

(conhecimento, saber-fazer, redes…);

Poder agir que remonta a existência de um contexto, de uma organização do trabalho, de condições sociais que tornam possível e legítimo tomar a responsabilidade e o risco do indivíduo”. (LE BOTERF, 2005, p. 88 e 89)

Ainda sobre a importância do contexto para a noção de competência, Machado (2002, p. 143) manifesta que não existe uma competência sem a referência a um contexto no qual ela se materializa: a competência sempre tem um âmbito (…).

Outra dimensão que consideramos importante para a noção de competência é compreendê-la de maneira integral, não a limitando unicamente a uma capacidade técnica. Market (2001) nos fala de um conceito integral de competência, delimitando os seguintes critérios: técnico-metodológico; histórico-cultural; sociocomunicativo e pessoal- intersubjetivo. Este sentido ampliado de competência para Market (2001, p.1) “inclui o envolvimento prático-politico do homem na historia do seu ambiente econômico-social particular, que não pode ser compreendido sem sua inserção no âmbito universal”.

Entendemos essa dimensão com um sentido desafiador, na medida em que a formação baseada em competências deve articular conhecimentos amplos e específicos de maneira a promover uma maior capacidade de análise de situações complexas para apoiar a tomada de decisão do(s) sujeito(s) envolvido(s) na ação.

É sob esta perspectiva que a capacidade técnica não pode ser unicamente considerada quando falamos de competência, pois não se faz suficiente ante os desafios situados em sistemas complexos de atuação profissional, como é o caso da saúde. Boterf (2005) defende:

Ser competente significa saber agir e reagir, se diz: “saber o que fazer” e “quando”. Frente aos imprevistos e frente a complexidade dos sistemas e das lógicas de ação, o profissional deverá saber tomar as iniciativas e as decisões, negociar e arbitrar, fazer as escolhas, tomar os riscos, reagir, inovar no cotidiano e tomar as responsabilidades. Para ser reconhecido como competente, não basta mais ser capaz de executar o prescrito, mas de ir além do prescrito. (p.59).

Estes são, portanto, fundamentos que marcam um profundo diferencial nas diversas intenções do que venha a significar a presença da abordagem por competências no contexto educacional. Representam sem duvida um grande desafio.

Fortalecendo esta compreensão, podemos ainda afirmar que a prática sem a fundamentação teórica não é possível. Lembra-nos Rey (2006, in LENOIR E BOUILLIER- OUDOT, p. 91) quando trata do currículo e o saber teórico, que “a passagem pela teoria contribui para tornar transferíveis os saberes profissionais. Quando os procedimentos são

privados de um conhecimento que lhes fundamentam, seu campo de utilização é muito limitado”.

Por outro lado, discutindo sobre currículo e os saberes profissionais, Rey (2006 in LENOIR E BOUILLIER, p.90) nos diz que “a transmissão do saber não faz sentido sem uma associação aos momentos da vida. Este modo de transmissão no sentido de engajar o individuo de forma global e não só na atividade estrita. É inseparável de uma relação pessoal”.

Outro elemento se destaca quando analisamos a noção de competência: a autonomia do sujeito perante a ação profissional. Aqui tomamos o conceito filosófico de autonomia, que “consiste na qualidade de um indivíduo tomar suas próprias decisões, com base em sua razão individual”.19 Para Boterf (2005),

Ser competente é igualmente agir com autonomia, é o que diz ser capaz de autorregular suas ações, de saber não somente contar com seus próprios recursos mas procurar os recursos complementares, estar em condições de transferir, reinvestir suas competências em um outro contexto. (p. 95).

Destacamos assim alguns atributos da competência, quais sejam, pessoal, coletivo, contextual, integral do saber-agir em situações complexas. A articulação entre estes atributos nos remete ao que Perrenoud (2002, p. 56) chama de “orquestração”. Sendo a competência da ordem do “saber mobilizar”, ele explica que, o “saber mobilizar” sugere uma “orquestração, uma coordenação de recursos múltiplos e heterogêneos”. Isto implica que, perante uma situação complexa e particular, em um dado momento, a competência se manifesta na capacidade de reflexão para escolher, em razão do numeroso aporte de recursos existentes, quais os recursos adequados para atuação em um dado momento, combinando-os; é o que Tardif (2003, p.2) chama de “mobilização seletiva de recursos”.

Isto posto, compreendemos que fazemos, neste percurso de reflexão teórica e análise das práticas de formação profissional técnica, analisadas e vivenciadas no campo da saúde, uma percepção de competência que envolve componentes que consideramos indispensáveis para trabalhar as competências numa perspectiva construtivista. Assim, desenvolvemos uma conceituação de competência, concebendo-a como um saber agir de um sujeito que, em analisando uma situação, em contexto, e que lhe demanda uma ação, mobiliza e articula recursos individuais (saberes, experiências e valores) e coletivos (recursos materiais, colaboração interprofissional e de rede) para uma intervenção em uma situação particular;

sendo a competência processual, evolutiva e transferível em situações afins. Assim, a competência envolve o sujeito individual e o contexto, os sujeitos coletivos e as suas relações, os conhecimentos e a ação, a situação e a intervenção. Envolve capacidades de ordem técnica, politica e de relações interpessoais.

O que são os recursos, porém, quando falamos em competências profissionais? Os recursos são os aportes utilizados no momento da ação, que subsidiam e orientam uma tomada de decisão. Diferentes autores (LE BOTERF, 2005; LEGENDE, 2004; TARDIF, 2003; PERRENOUD, 2002) se reportam e convergem em seus anúncios sobre recursos no campo das competências.

Os recursos estão relacionados a dimensão individual e social de competência. São os recursos internos e externos utilizados no processo de manifestação das competências. Autores diversos utilizam a expressão recursos internos para designar os aportes provenientes do próprio individuo; conjunto organizado de saberes, que envolve conhecimentos de natureza variada (aporte teórico e as experiências vividas), habilidades, percepções e atitudes. Já os recursos externos, relacionados à dimensão social de competência, são aqueles exteriores ao individuo e que guardariam potencialidade para fazer frente a uma situação, sempre se associando aos recursos internos. Podemos dizer que são os elementos materiais ou não, disponíveis na rede social do sujeito da ação. São assim considerados, por exemplo, livros e documentos consultados, formulários utilizados, tecnologias de informação e comunicação, assim como a colaboração interprofissional e de redes sociais.

Estes são, pois, os referenciais teóricos que subsidiarão nossa investigação no campo do currículo por competências no ensino profissional técnico no domínio da saúde.

Compreendemos que a construção do saber na relação dialética entre saúde e educação se desenvolve com base nos conhecimentos fundados na teoria e nos dados que emergem do contexto e das práticas de saúde. Desta forma, nos associamos a Deslauriers & Kérisit, quando indagam:

É possível construir um objeto de pesquisa de forma puramente empírica, baseando- se unicamente nos dados de campo? A resposta é usualmente negativa: é preciso ler o que os outros escreveram antes de nós, de certa forma, subir sobre seus ombros para conseguir ver mais além (...). (in POUPART et al, 2008, 134).

É neste sentido que a revisão de literatura científica a que procedemos até aqui, aufere valor, buscando os domínios teóricos que podem iluminar a questão de estudo proposta.

No esforço por nós empreendido para desenhar os referenciais teóricos da investigação, acreditamos ter realizado de forma coerente um percurso que discutiu o currículo e sua história como instrumento técnico-político-ideológico, aí incluindo a avaliação curricular, demarcando sua elaboração. O estado da arte jogou luzes sobre os caminhos desencadeados pelo currículo por competências nas experiências internacionais e nos estudos investigativos sobre o tema no Brasil, conformando diferentes intenções e conceitos.