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CAPÍTULO 5 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

5.3 A Afetividade no Processo de Escrita

Ao realizarmos junto aos alunos atividades de escrita da LP2, entramos em contato com marcas afetivas por eles vivenciadas que diziam respeito à sua vida, família, escola, e aos processos de escrita da Língua Portuguesa. Decidimos por terminar esse capítulo com tal reflexão, apoiados em Venturini (2006, apud DIAS 2014, p.44), considerando que fatores como relação de poder, emoção, afeto, expectativas culturais, identidade e autoestima são essenciais no processo de ensino e aprendizagem de uma segunda língua. Coaduna-se com essas reflexões Leite e Tagliaferro (2005) quando defendem a visão de que pensamento e sentimento integram-se, ou seja, consideram que a relação sujeito-objeto é marcada afetivamente pela mistura dos aspectos cognitivos e afetivos.

Nas atividades práticas de escrita, também pudemos observar, conforme pode ser visto nas transcrições, que apareceram algumas marcas afetivamente negativas da escola por onde passaram. Ao percebermos que fatos vêm à tona nesse processo, mesmo que de forma inconsciente, devemos dar a devida atenção. Por outro lado, com a intenção de que essa concepção possa ajudar professores e demais interessados na educação de surdos ao planejarem suas ações, saber que o contato com o surdo e a Língua Portuguesa gera catarse de suas memórias com relação a trabalhos anteriores é importante. Um exemplo de nossa constatação está quando tratamos do tema representação social e nela vimos que as pessoas ouvintes geralmente entendem a surdez enquanto deficiência, o que denominamos visão clínica da surdez. Tal concepção afeta profundamente os surdos, fazendo-os partilharem de tais crenças e aceitarem que são deficientes e incapazes de aprender.

A família, em seu luto, também é responsável por tamanha marca afetiva na vida do surdo, quer por sua ignorância sobre a surdez ou por atitudes de superproteção/abandono, quer pela simples inocência e excesso de confiança em profissionais que as orientam com visões clínicas da surdez. Outro momento a se considerar, com relação à família e ao filho surdo, é o constrangimento sofrido ao se deparar com o momento inicial de ensino/aprendizado da Língua Portuguesa, pois neste encontro evidencia-se a diferença existente de aprendizado de seu filho com relação ao das crianças ouvintes.

Além disso, a maioria dos surdos passa por experiência de segregação, longe de seus pares linguístico/cultural dentro das escolas, o que lhes causa sentimentos de serem estrangeiros e discriminados, como se não fizessem parte do grupo escolar. Talvez a segregação também ocorra devido ao tratamento situado em práticas pedagógicas que, ao desconsiderarem sua língua, cultura e identidade, geram no aluno inibição e estigmatização. Uma prática positivamente afirmativa em relação ao surdo, enquanto ser social, partindo de uma forte liderança, possibilitaria uma visão diferente sobre a naturalidade de sua aprendizagem. Assim sendo, cabe aos professores conhecerem as especificidades dos alunos a fim de poderem contribuir com posições e posturas diferentes das que se encontram na sociedade. Segundo Dias (2014), estudos sobre motivação e autoconfiança têm se tornado instrumentos importantes para o ensino/aprendizagem de LP2, que devem ser observados por educadores a fim de realizarem práticas que favoreçam o aprendizado do aluno. Esse olhar torna-se importante, por exemplo, quando tratamos de avaliação, pois tem ocorrido em um único formato, que exige igualmente para ouvintes e surdos a leitura e escrita da Língua Portuguesa, essa tão inacessível para os surdos. Tal prática ocorrida em todas as esferas da vida da pessoa surda é geradora de exclusão, sentimento de desmotivação, insegurança, incapacidade e baixa autoestima.

Alguns aspectos afetivos estão latentes na relação surdo e LP2 e uma simples atividade pode trazê-los à tona, revelando o incômodo que foi criado na sua experiência escolar. Podemos verificar tal situação em A1C1, em que, por se tratar deuma narrativa de vida, o aluno Victor expressa a seguinte situação:

Quadro 21: Recorte da Narrativa feita pelo aluno Victor

VICTOR: (Escreve algo. Repete algumas vezes PORTA-FECHAR TRANCAR e depois

escreve. Sinaliza alguém batendo forte na porta) {Minha família esqueceu que eu estava na rua e trancou a porta. Como isso pode acontecer?... Como poderia entrar... um dia eu fui para casa... fui para casa um dia...minha família esqueceu e trancou a porta e eu não conseguia entrar... Como se escreve BATER} [...]

VICTOR: {(Como o aluno apenas está pensando alto, registro na integra seus sinais) COMO

ENTRAR NÃO-CONSEGUIR NADA, NÃO-OUVIR, COMO?} Fonte: Elaborado pelo autor

O incômodo revelado nessa situação, que se dá no seio familiar, comprova o que acima mencionamos sobre aspectos de família e afeto.

Também Diana, em A1C4, apresenta uma situação de constrangimento que viveu junto aos alunos da sala, em que se expressa, primeiro, através da atividade de escrita 1 (Figura 13) e num segundo momento pela oralidade de sua narrativa (Quadro 22).

Figura 13: Primeiro recorte da Narrativa feita pela aluna Diana

Quadro 22: Segundo recorte da Narrativa feita pela aluna Diana

DIANA: (Nesse caso a transcrição se deu da maneira que a aluna falou oralmente). {Minha

história é muito pior, por que eu tinha doze anos. Todo mundo ria (sinaliza o sinal de RIR) da minha cara, brincava, zoava da minha cara. O que eu fiz, eu assisti um filme, história da vovózinha. A professora passou. Do nada passei a gostar. Eu falei para minha mãe: nossa, eu estou querendo participar. Eu quero ir lá na ... lá na, no hospital. Visitar a vó, ver como é a vida dela, como ela sobreviveu. Minha mãe falou que eu não podia ir. Quando eu fui crescendo, crescendo, vi a história das pessoas. Aí quando eu entrei (sinaliza SENTAR ) sentei na sala... Eu abria a boca. Cheio de preconceito (relacionando isso com os alunos da sala onde estudava). Aí eu levantei e fiquei no meio (sinaliza FICAR-DE-PÉ) {Fique em pé}. Eu pedi (sinaliza PEDIR) {Pediu} para a professora: Eu posso falar (sinaliza FALAR) {falar} com os alunos? Todo mundo tirava com a minha cara. Quando eles ficaram quietos (sinaliza SILÊNCIO) {Silenciar}, fiquei assustada, com medo. (Peter fala algo, ela continua:) Vocês acham que a pessoa acha bonito o que eles fez, não é muito feio [...]

Fonte: Elaborado pelo autor

Diana apresenta um momento doloroso de sua vida escolar, no qual relata uma situação de bullying. A situação vivenciada pela aluna incentivou o planejamento de atividades em que optamos por mediar um diálogo sobre o tema, bem como atividade de escrita que nos permitisse trabalhar de forma coletiva, tendo em vista que os demais alunos pudessem ter passado por situações semelhantes.

Por outro lado, Steve, em A1C4, apresenta algo que ao nosso entender revela um momento afetivamente agradável da escola. Ele e seus amigos jogando futebol seria talvez um momento em que se sentisse igual aos amigos, no qual sua diferença não fosse percebida e suas qualidades de atleta fossem exaltadas.

Esses fatos, não únicos, servem para demonstrar que, mesmo sem requisitar, o trabalho com a Língua portuguesa traz à tona sentimentos diversos que não podem passar despercebidos e que devem, sim, ser compartilhados entre os alunos e explorados nas próprias atividades pelos educadores. Por outro lado, o professor, ao mediar a relação entre aluno e objetos de conhecimento, estará contribuindo para que esse realize releituras de seus afetos/desafetos e possa qualificar sua nova experiência com o processo de escrita, pois, para Leite e Tagliaferro (2005), o sucesso da aprendizagem

dependerá, em grande parte, da qualidade da mediação realizada pelo professor.