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A agressividade no estágio do concernimento: a capacidade de se preocupar

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 94-100)

CAPÍTULO I – A agressividade: revisitando diferentes perspectivas

C. A agressividade no estágio do concernimento: a capacidade de se preocupar

Retornemos à Winnicott. Passarei agora à discussão de como a agressividade pode ser experimentada na etapa descrita por este autor como o estágio do concernimento, caracterizado pela capacidade do bebê de se preocupar com o outro. Este estágio está muito próximo da posição depressiva descrita por Melanie Klein na década de 1930.

A entrada no estágio do concernimento tem algumas características importantes que merecem ser assinaladas. Agora o processo de integração do bebê já avançou. Na maior parte do tempo, o bebê permanece integrado e começa a perceber um outro. A percepção de que existe um outro vai se estabelecendo e isto recrudesce as ansiedades relativas à sobrevivência do objeto às destruições fantasiadas durante a satisfação das tensões instituais do bebê.

As fantasias de destruição trazem a culpa pelo dano imaginado ao objeto amado. O sentimento de culpa, num psiquismo que ainda está em vias de construção e cuja capacidade de tolerância é ainda bastante pequena, pode ser potencialmente disruptivo. É preciso que, por um momento, o bebê possa tolerar esse sentimento. Só que, para tanto, precisará ser auxiliado pela mãe.

O sentimento de culpa, que é inconsciente, pode ser atenuado se, através dele, o bebê descobre em si “um anseio pessoal por dar, construir e reparar104” o ambiente que imagina ter danificado. O potencial agressivo pode então ser transformado em impulso construtivo por meio da reparação, podendo operar então como base da criatividade. Porém, para que isto se torne uma premissa verdadeira, é necessário postular a existência de uma mãe que acolhe o gesto do bebê e lhe atribui o sentido desejado (de reparação).

É necessário que o que o bebê faz por sua mãe como reparação em função de suas fantasias agressivas (esta reparação pode ser um sorriso no momento em que ela esteja esperando ou mesmo um pequeno som) seja reconhecido e acolhido por esta. Isto possibilitará ao bebê tolerar progressivamente o seu impulso agressivo porque sente que pode fazer uma reparação ao dano que imagina ter causado.

Winnicott (1960) entende que: “O sentimento de culpa de que estou falando é silencioso, não consciente. É um sentimento de culpa potencial, anulado pelas atividades construtivas105”.

Todavia, nem todas as mães partilham de uma condição psíquica como esta, que oferece ao bebê as condições ambientais necessárias para que possa ser feita a transformação da agressividade em impulso construtivo. Algumas mães tem essa condição dificultada pela história de sua própria vida, pelo modo como se constituíram. Na clínica, podemos ouvir o relato de mães que não conseguem se relacionar com seu bebê sem que esta relação esteja massivamente mediada por suas identificações projetivas maciças. Nesses casos, a tarefa de reparação do bebê se complica.

Em casos de psicose ou de depressão puerperal mais severa, por exemplo, observamos que o contato com o bebê fica contaminado pelas identificações projetivas da mãe e, neste meio, o reconhecimento de um gesto reparatório é muito difícil. O bebê pode representar para a mãe, por exemplo, a retaliação recebida pela sua própria mãe em função dos ataques destrutivos imaginados ao seu corpo. Aqui, não há espaço para um bebê106 – um bebê que possa ser visto em sua singularidade – mas para o bebê, imaginado pela mãe, que algumas vezes é a personificação das fantasias destrutivas maternas.

Se aquela condição em que o ambiente sobrevive bem não é possível - porque o ambiente só consegue sobreviver retaliando de alguma forma o bebê - este último sente que a reação do ambiente está diretamente relacionada à força ou à potência de seu impulso destrutivo ou agressivo (Winnicott, 1969). O bebê percebe que suas fantasias destrutivas não eram apenas fantasias, mas que se tornaram realidade, ou seja, quando o objeto reage na realidade é como se este atestasse a veracidade das fantasias mágicas de destruição do bebê, dissolvendo qualquer limite que poderia ter se estabelecido entre estes dois registros – o da fantasia e o da realidade.

O objeto externo sofreu as consequências da violência das fantasias destrutivas e, uma das saídas encontradas pelo bebê para preservar o objeto externo real, é reprimir seus impulsos e fantasias. Logicamente, para o bebê, a perda em termos de sua própria

105 Idem, ibidem, p. 162.

106 Winnicott abordará com distinção este tema no seu trabalho O papel de espelho da mãe e da

família no desenvolvimento infantil. Sobre isto, o autor ressaltará que (1968, p. 89): “É possível pensar no rosto da mãe como o protótipo do espelho. No rosto dela o bebê vê a si próprio. Se ela estiver deprimida ou preocupada com alguma outra coisa, então é claro que o bebê não verá nada além de um rosto”.

potência e vitalidade ao elaborar este tipo de saída é enorme, mas tão pior seria continuar a sentir que destrói o objeto amado com seus impulsos.

Quando o ambiente não pode ajudar o bebê a tolerar seu sentimento de culpa, a transformação da agressividade no impulso construtivo se rompe e o resultado poderá ser o aparecimento da agressividade no sentido da destruição: “ao sentir-se abandonada (quando não há quem aceite uma oferenda ou reconheça uma tentativa de reparação), essa transformação quebra e a agressividade reaparece107”.

O bebê é capaz de imaginar os estragos causados por ele ao objeto amado e tem um rápido vislumbre do dano causado à mãe. Sente-se perseguido por esses sentimentos, que se misturam com os sentimentos bons provenientes das experiências de satisfação da tensão instintual. Há uma grande confusão afetiva. Mas, na saúde, a presença atenta da mãe possibilitará ao bebê tolerar e elaborar estes sentimentos e oferecer algum gesto reparatório mobilizado pela culpa sentida.

Quando a agressividade pode ser tolerada e reparada no estágio do concernimento, ela se torna a base para uma vida criativa, para o brincar e para o trabalho. E não apenas isso. As experiências construtivas e criativas possibilitam, por sua vez, um contato mais íntimo com a própria destrutividade.

Winnicott utiliza a expressão ‘círculo benigno’ para significar uma série de experiências que permitem que o Eu possa tolerar a culpa resultante das fantasias destrutivas imaginadas em relação à mãe. O círculo benigno compreende:

Um relacionamento entre o bebê e a mãe complicado pela experiência instintiva [uma vez que estas dão margem às fantasias destrutivas].

Um tênue vislumbre das consequências (o buraco) [das fantasias destrutivas que seriam experimentadas pelo bebê pela visualização de um buraco no corpo da mãe, segundo Winnicott].

Uma elaboração interna, com uma triagem dos resultados da experiência [o conflito entre as boas sensações derivadas da experiência de satisfação instintiva e os sentimentos persecutórios decorrentes das fantasias de destruição dirigidas para a mãe].

Uma capacidade de dar, devida à separação entre o bom e o ruim internos. Reparação108.

107 D. Winnicott. (1950). A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional. Rio de Janeiro: F.

Alves, p. 291.

Em 1969, Winnicott, ao retomar a questão da sobrevivência do objeto às destruições (fantasias) do bebê, concluirá que esta sobrevivência permite ao bebê criar a externalidade. Uma relação com o mundo externo só se torna possível quando o objeto pode ser colocado para fora da área de controle onipotente do bebê e isto é conseguido na medida em que o objeto sobrevive aos ataques fantasiados, mostrando ao bebê que seus ataques não passavam de fantasias e não tem o alcance necessário para atingir o objeto. Este fato resume o ganho de todo o desenvolvimento emocional da agressividade: o relacionamento com um mundo externo compartilhado. “A destruição desempenha um papel na criação da realidade, colocando o objeto fora do eu (self)109” diz Winnicott.

Colocar o objeto fora da área de sua onipotência significa, para o bebê, o reconhecimento da realidade e da existência autônoma do objeto. Mas há o outro lado dessa moeda: essa operação permite que o bebê possa também reconhecer a si mesmo como um ser único.

Isto posto, podemos concluir que, a fim de nos relacionarmos verdadeiramente com um objeto externo e independente – um objeto livre de nossas projeções, das nossas fantasias, das nossas idealizações–, um objeto que testemunha a nossa renúncia à onipotência que outrora nos foi permitida – é preciso que sejamos capazes de destruí-lo continuamente. É apenas através da agressividade e da destruição contínua no plano da fantasia inconsciente que podemos amar e nos relacionar verdadeiramente com o objeto (um objeto independente)110.

Mais uma vez, cabe salientar que, decerto, estamos falando de destruição no plano das fantasias inconscientes e de uma destruição que, a princípio, não envolve raiva porque não é uma reação à frustração. Se o objeto sobrevive, isto quer dizer que essa destruição é apenas potencial e é isso o que ocorre na saúde.

A experiência de onipotência inicial do bebê é favorecida pela atitude da mãe que permite ao filho ter a saudável ilusão de que o mundo é criado por ele quando necessita. Esta atitude só pode se tornar real se a mãe tem sucesso em promover uma fina adaptação às necessidades do seu bebê e isto formará uma base sólida que será

109 D. Winnicott. (1969). O uso de um objeto e relacionamento através de identificações. Porto Alegre:

Artes Médicas Sul, p. 127.

110 O uso maciço de alguns mecanismos de defesa, tais como projeção e identificação projetiva, por

exemplo, sinalizam para um Eu não totalmente diferenciado do ambiente. Entretanto, é preciso ter em mente que essa diferenciação da realidade externa nunca é completa e é por isso que os mecanismos de projeção, introjeção e identificação projetiva compõem uma “respiração psíquica” (para usar o termo proposto por D. Meltzer) e são os movimentos constituintes do psiquismo.

responsável pela conquista do sentido de confiança do bebê em seu mundo interno. Esta base, por sua vez, permitirá que o bebê possa ter segurança suficiente para explorar o mundo, para experimentar e tolerar a frustração e as falhas do ambiente com menos dificuldade. “A adaptação bem sucedida dá uma sensação de segurança e um sentimento de ter sido amado111”. É na tolerância das falhas maternas que o bebê pode expressar o cuidado e o amor recebidos pela mãe.

Estas pequenas falhas do ambiente, em certo ponto do desenvolvimento emocional, provocarão raiva no bebê. O bebê poderá então sentir ódio. Estas falhas são muito diferentes das falhas mais graves cometidas pela mãe ou substituto no período em que a adaptação ao seu bebê deveria ser perfeita. Winnicott é brilhante ao dizer que estas últimas não provocam raiva porque o bebê ainda se encontra fundido com o ambiente e a “raiva implica manter na mente o ideal que foi destruído112”. Estas falhas iniciais graves provocam uma ansiedade sem nome.

Não entrarei nos pormenores da questão da ansiedade, porque caso o fizesse, me afastaria muito dos objetivos desta dissertação. Meu objetivo aqui era tão mais o de propor reflexões a partir da apresentação e discussão da concepção winnicottiana sobre agressividade, articulando-a com a clínica psicanalítica com crianças, onde podemos observar de perto os percalços e os fracassos deste desenvolvimento.

Podemos, enfim, resumir as contribuições winnicottianas sobre a agressividade na ideia de que é a experiência da agressividade que permite a relação verdadeira com o outro, com o mundo externo. A grande contribuição que Winnicott nos oferece sobre este tema é justamente a possibilidade de uma compreensão diferente da agressividade: a agressão não corresponde ao resultado da frustração da satisfação dos impulsos pulsionais. Estamos longe disso, embora Winnicott também reconheça esta possibilidade. Mas sua intuição mais valiosa diz respeito a uma agressividade que está ainda mais nas origens, permitindo o relacionamento pleno com o outro e que, quando experimentada e integrada, pode se transformar em uma espécie de terreno sólido onde se apóiam a atividade criativa, o brincar e o trabalho.

Seguiremos na esteira destas contribuições, adentrando-nos cada vez mais nas filigranas deste processo no capítulo seguinte, onde abordaremos a questão da

111 D. Winnicott. (1968). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e

divergências. São Paulo: Martins Fontes, p. 87.

112 D. Winnicott. (1950-55). A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional. Rio de Janeiro:

diferenciação ego-objeto e da separação a partir das contribuições de André Green e outros autores.

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 94-100)