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Paula: a agressividade como um perigo

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 148-153)

CAPÍTULO II – A mínima diferença

3. Paula: a agressividade como um perigo

O que quero relatar na análise de Paula é algo muito pontual e, se não me deterei demasiadamente nas questões de sua análise, é porque penso que os exemplos clínicos do aspecto a que quero dar relevo se multiplicam em nossos consultórios.

Paula é uma garotinha de seis anos cuja mãe me procura em busca de ajuda porque acha que a filha é muito ansiosa. Paula vai bem muito bem na escola, é muito amável com a mãe, relaciona-se bem com os colegas, é inteligente e extremamente educada. Seria uma criança ‘perfeita’, segundo sua mãe, se esta não fosse uma garota ansiosa. Fica muito ansiosa em situações que fogem um pouco do cotidiano, como, por exemplo, em uma viagem mais longa de carro com a mãe ou em uma visita a um recém- nascido, filho de uma amiga. Muitas vezes, chega a vomitar por conta da ansiedade. O casal de pais nunca foi casado, tendo o pai de Paula vivido em outro estado desde que ela nasceu. Paula mora com sua mãe, sua irmã e sua avó, em uma casa onde moram apenas de mulheres.

Durante as sessões, Paula é extremamente delicada. Manipula os brinquedos com delicadeza, preocupa-se sempre em guardá-los e em tratá-los com cuidado. Não demonstra nenhum incômodo para entrar comigo na sala. Fala como uma pequena adulta sobre suas tarefas escolares e, aqui e ali, percebo que ela começa a apontar minhas falhas: fica atenta a qualquer minuto a mais no fim da sessão, presta atenção nas

palavras que eu digo, apontando qualquer vício de linguagem; no material que utiliza está sempre prestando atenção nas desproporções dos desenhos ou no uso de uma linguagem mais coloquial. Está sempre muito preocupada com as palavras que eu digo, querendo sempre saber exatamente o que significam. Eu diria que ela está muito mais preocupada com a forma do que é dito do que com o conteúdo, o que acaba se perdendo diante de sua excessiva preocupação com as palavras.

Nas sessões, aparece esta dinâmica: ou Paula está completamente distante de mim, momentos em que não se abre para o contato e fica numa postura mais retraída, ou está completamente colada, aderida. Esta é a sua dinâmica e é a ela que gostaria de dar relevo neste recorte. Narrarei, portanto, o trecho de uma sessão, ocorrida já após os seis primeiros meses de análise.

Neste momento, a tônica de suas sessões girava sempre em torno da possibilidade de se diferenciar do outro. Paula sempre me requisitava a fazer produções gráficas iguais as dela. Eram cópias, como ela mesma se referia, onde nada poderia sair diferente. É dentro deste contexto que ocorre a sessão que gostaria de relatar.

Vale salientar que os primeiros meses de sua análise foi marcado pela presença de uma menininha muito inibida, pouco aberta ao contato, pouco espontânea, sempre preocupada em não sujar a sala, em guardar o material, em apontar ‘corretamente’ cada lápis de cor de sua caixa. A possibilidade de sujar a sala era uma questão para Paula. Não podia usar tintas, pois corria o risco de sujar a sala, de sujar sua roupa e seus calçados: uma boa metáfora para uma menina que não conseguia entrar em contato com os conteúdos que ela julgava como os mais ‘sujos’: sua própria agressividade e sexualidade.

Costumava passar sessões pedindo para que eu lesse um livro cuja estória girava em torno de uma personagem que não se arriscava em nada porque tinha medo de tudo até o dia em que, esta menina, personagem do livro, tem o prazer de conhecer pessoalmente o seu maior medo (um lobo) e ‘percebe que o medo estava apenas na sua cabeça’ (segundo a leitura de minha paciente). Ao entrar em contato com o lobo, o medo dele desaparece e a personagem volta a ser uma menina muito espontânea, brincalhona.

Paula entrava na sala, sentava-se no divã e esperava que eu dissesse alguma coisa. Enquanto ficávamos em silêncio, ela se movimentava no divã: vinha para frente e se colocava em uma posição em que ficava quase face a face comigo, em seguida, voltava para trás até se recostar na parede. Repetia o movimento inúmeras vezes. Eu

intervinha dizendo que talvez ela estivesse com muita dúvida se devia ou se podia confiar o suficiente em mim para se permitir avançar e entrar em contato comigo.

Minhas intervenções quase nunca eram bem recebidas por Paula. Ela sempre as negava veementemente, o que fazia me lembrar de outra paciente que ignorava completamente minhas interpretações. Com esta outra, era como se eu não tivesse dito nada, ela continuava a falar sem parar para pensar no que eu tinha dito, sem conseguir me ouvir, movimento que, penso, Paula também realizava em outro grau. Os apontamentos que sinalizavam para o final da sessão eram especialmente difíceis para Paula. Ela comentava, com braveza que contrastava diametralmente com a imagem de ‘boa menina’ que tentava manter: “você não pode dizer isso!”. Havia uma tentativa muito forte de domínio e controle do outro em suas sessões e isso se revelava num movimento onde ela tentava inverter os papéis na análise. Se eu lhe questionava alguma coisa, ela me devolvia a pergunta, exclamando: “Por que você está me questionando isso?” e ainda: “O que você pensou para estar me perguntando isso?” .

A sessão que gostaria de relatar se inicia com um pedido de Paula, assim que chega ao consultório, para que eu a ajude a tirar um nó que havia feito com uma fita de cetim em uma dos sapatos que estava calçando, nó que ela não estava conseguindo tirar sozinha. Eu a ajudo e intervenho dizendo que talvez existam outras coisas que ela não consegue lidar sozinha e precisa de minha ajuda. Mas ela recebe mal essa interpretação que aponta para sua necessidade de ajuda, para sua dependência do outro. Permanece tensa por alguns minutos. Eu afirmo que talvez ela tenha ficado chateada ou preocupada porque às vezes eu acho que ela tem medo de precisar de mim e eu não estar lá. Ela ouve e parece mais relaxada.

Já na sala de atendimento, convida-me para usar os carimbos com ela. Sua proposta é a de fazer um desenho com o carimbo. Eu devo copiá-la. Ela lembra que, na escola onde estuda, sua professora ficou muito brava quando ela copiou o desenho de uma amiga. Ela diz que sempre copia o do outro. Diz que sempre começa a fazer um desenho próprio, mas quando vê o desenho do outro, ela acha mais bonito, desiste do dela e copia o da amiga. Utilizamos a oportunidade para conversar um pouco sobre a dificuldade de fazer o próprio desenho, sobre a confusão que sua professora faz entre ela e a amiga quando vê os desenhos iguais, sobre como ela também pode se sentir confusa e, finalmente, sobre o medo de que o outro possa ocupar o lugar dela. Aos poucos, Paula nos introduz em uma dinâmica em que ela aparece tomada pela inveja do

outro, mas, ao invés de tentar destruir o desenho do outro, ela destrói seu próprio desenho.

Neste momento, ela pega uma canetinha branca e passa na caixa de outra criança, uma caixa que sempre lhe despertou muito interesse. Conversamos um pouco sobre seu desejo de que nenhuma outra criança pudesse ir mais ali. Ela nega e diz que estava pensando que só queria ficar ‘mil horas ali na sala’, mas que eu não a permito.

Ela propõe então fazermos um desenho, ainda igual. Pergunta se eu sei desenhar uma ‘vaca com tetas rosa’ e diz que vai me ensinar. Ela faz sua vaca e eu faço a minha, copiando, passo a passo, as explicações dela. A única diferença entre nossas vacas é a cor das tetas. Ela as desenha em rosa, eu, em roxo.

Ela repara a diferença e pergunta por que eu as desenhei na cor roxa. Ela alerta que as tetas de uma vaca só ficam roxa quando se tira muito leite delas, porque isto de ‘tirar leite’ machuca muito a vaca. Ela fala longamente sobre como as vacas sofrem, como ficam machucadas quando as pessoas tiram muito leite dela. Eu vou entendendo que Paula vai me contando sobre sua angústia de precisar de muito ‘leite’ e também de me machucar, ela vai me mostrando e se permitindo entrar em contato com sua voracidade, com suas fantasias destrutivas e com seu medo de ficar ‘sem nada’.

Seguido a este desenho, ela me fala sobre seu aniversário. Diz que irá me convidar e pergunta se eu vou. Ressalta que só irá me convidar se eu for. Acrescenta que se eu não for, ela não me convidará para nenhuma outra festa “nem mesmo a do ano que vem” e acrescenta que, se eu não for, ela também não irá nem notar porque estará muito ocupada brincando com outras garotas. Começa então a relatar a série de atrativos que terá em sua festa: todos os brinquedos, fantasias para as crianças usarem, profissionais para fazer maquiagem, todas as comidas maravilhosas etc.

Percebo que, no momento em que ela pode expressar sua voracidade, sua necessidade de ser alimentada por mim, seu desejo por algo que eu possa lhe oferecer e seu medo de me machucar, ela transforma a situação e é ela quem aparece como alguém cheio de coisas boas para me oferecer, coisas que despertam meu desejo. É como se estivesse me dizendo: “Eu tenho coisas lindas que você vai querer”, talvez como uma forma de se proteger do sentimento de dependência do outro, de desamparo e dos seus próprios medos.

Em seguida, ela permanece em silêncio e depois começa a cantar. Estamos ainda utilizando o material gráfico. Olho em sua direção, e ela me diz com rispidez: “o que foi? Eu não posso cantar?”. Faço uma longa intervenção tentando dizer que ela fica

sempre achando que eu não quero que ela faça as coisas que ela deseja fazer e que, por isso, muitas vezes, quando eu faço qualquer movimento, ela fica pensando que estou recriminando-a. A sessão se encerra neste ponto.

Este é um movimento que Paula faz constantemente. Está fazendo alguma coisa de forma mais espontânea, algo que realmente quer fazer, e se olho para ela, por qualquer motivo, se sorrio ou se fico séria, ela me pergunta, num tom questionador, se ela não pode fazer o que está fazendo. Parece-me que este movimento dela se sustenta em uma projeção de seu desejo de que não haja diferenças entre nós duas, de que cada uma tem que existir colada na outra, para, logicamente, tamponar seus sentimentos e afetos angustiantes. É desta forma que eu sou percebida por ela - como alguém que não quer que ela cante, não quer que ela dance ou qualquer outra coisa: alguém (sendo este alguém ela mesma ou uma parte mais superegóica de sua mente) que não quer que ela exista desse jeito mais espontâneo.

O que quero destacar neste relato é a dificuldade de Paula de entrar em contato com sua agressividade, com sua voracidade, com sua inveja. Quando pode ser mais espontânea, estes elementos vão se revelando, mas o contato com eles provoca muita angústia, o que a faz projetar em mim a figura de alguém que não quer que ela faça determinadas coisas. Muitas vezes, ela vai provocando certa intrusão no outro a partir de suas tentativas de dominação e controle e vai nos contando dessa possibilidade de existir sempre aderida ao outro, para que sua agressividade, seu ódio, sua culpa, seus medos não tenham espaço para se manifestar. Por trás disso, há um intenso medo dos efeitos desta agressividade, que Paula tenta controlar fazendo uso extensivo das defesas obsessivas.

Estas observações coincidem com as de tantas outras crianças cuja agressividade concretiza a ameaça da perda do objeto de amor e precisa ser sacrificada em nome de uma relação ‘segura’. A perda aqui adquire o sentido da possibilidade de abandono, em função da morte ou do desaparecimento do objeto devida à fantasia de que o objeto não irá tolerar a face mais cruel do self: sucumbirá a ela. Por isso, a parte mais agressiva precisa ser escondida, camuflada, inibida à custa do amor pelo objeto, um amor que não sustenta o ódio, a hostilidade.

É interessante notar aí a importância fundamental da função de uma figura parental forte, que possa fazer face aos impulsos destrutivos do bebê ou da criança com relação a um dos pares do casal parental, permitindo que a criança possa entrar em

contato com seus impulsos de maneira segura, assumindo os riscos e se responsabilizando por seus atos.

Era isto o que também acontecia com Pedro, um garotinho de cinco anos, que, certa vez, percebendo que ele não conseguia aproveitar muito bem a sessão, usufruir dos materiais, sem conseguir brincar direito, apontei a observação para ele, ao que ele retrucou: “sabe o que é? Eu tenho muito medo de quebrar esses brinquedos”. Por isso, preferia não tocá-los. A idéia de quebrar o material confirmaria seu potencial destrutivo, sentido como tão ameaçador que o colocava numa situação paralisante. Seus pais haviam me procurado justamente pela dificuldade de Pedro ir à escola. Ele adorava a escola, também se relacionava bem com colegas e professores, era muito estudioso e inteligente, um menino carinhoso, mas que ficava desesperado quando não acertava ou não conseguia fazer suas lições.

Além disso, chorava muito durante a entrada na escola. Este pequeno menininho formulava sua queixa dizendo que queria ajuda para “chorar menos” e para sentir “menos falta da mãe” quando ficava longe dela. Tinha fantasias de que, longe da mãe, alguma coisa ruim aconteceria a ela. A sua própria agressividade era projetada na mãe, que poderia desaparecer a qualquer momento e era tal este desaparecimento que ele se protegia reprimindo uma parte de si.

Na análise, isto era expresso pelo medo de que sua parte mais cruel pudesse destruir os brinquedos e, por analogia, a análise e a mim mesma. Seus impulsos destrutivos eram pensados como extremamente onipotentes e, por isso mesmo, precisavam ser excluídos das relações de apreço, o que paralisava este pequeno menino frente às angústias depressivas.

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 148-153)