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Esquecer é fundamental: sobre o ‘esquecimento’ do objeto primordial

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 116-118)

CAPÍTULO II – A mínima diferença

2. Esquecer é fundamental: sobre o ‘esquecimento’ do objeto primordial

Green (1988) em seu trabalho intitulado Seminários sobre o trabalho do negativo dá mais um passo na direção do que estamos estudando ao propor que o objeto absolutamente necessário, ou seja, o objeto materno primordial, deve se fazer esquecer (através do recalque) como constituinte da estrutura psíquica. Talvez não tenha ficado claro para o leitor que o caráter absolutamente necessário do objeto primordial reside justamente na sua extrema necessidade para a constituição do psiquismo: sem ele, seria impossível dar conta das intensidades pulsionais que perturbam o bebê e nenhuma ligação com objetos externos seria possível. As pulsões de destruição encontrariam um campo livre para se expressarem.

É o esquecimento do objeto primordial que pode fazer com que seja constituído um solo psíquico onde pode repousar toda atividade psíquica. Numa rápida alusão à geologia (da mente), poderíamos dizer que a ‘matéria-prima’ deste solo fértil corresponde à introjeção das funções continentes deste objeto primordial. Sabemos que um solo bem cimentado, permite a estruturação de um edifício (psíquico) sólido. Porém, se o solo não é bem cuidado, o edifício se constrói, mas não tardarão a aparecer as rachaduras e infiltrações.

Uma vez introjetadas estas funções e sucumbida ao recalque a absoluta necessidade do objeto, elas deixam de ser percebidas como provenientes do objeto e passam a ser vivenciadas pelo sujeito como próprias. Esta introjeção e recalque correspondem à tarefa primordial sobre a qual repousa todo o psiquismo134. É interessante atentarmos que o recalque da necessidade do objeto primordial provoca também o apagamento de qualquer diferença ou sentimento de dependência em relação ao objeto.

Caso não se pudesse fazer esquecer, o objeto primordial seria sentido de forma muito ameaçadora pelo ego, destruindo sua frágil estrutura pelo reconhecimento de uma diferença ego-objeto que se revelaria cedo demais, tornando-se traumática e provocando, penso, o que Winnicott chamou de ‘agonias impensáveis’ e Bion designou como ‘terror sem nome’.

134 Poderíamos traçar aqui um paralelo com Freud quando diz em Além do Princípio de Prazer (1920) que

para que o princípio do prazer possa entrar em funcionamento é preciso antes que ele se ocupe com uma tarefa primordial, qual seja a de sujeitar o excesso intensidades, promovendo ligações.

Duas possibilidades se destacariam aqui: 1) em um extremo, nenhum solo psíquico poderia ter lugar diante de uma configuração como esta em que o psiquismo ficaria completamente obstruído por sentimentos intoleráveis, impossíveis de serem digeridos, metabolizados, e 2) mais próximo do que observamos na clínica, este solo se constituiria a partir de grandes buracos estruturais.

É interessante podermos apreender as duas acepções da palavra ‘solo’ aqui em jogo. A ideia de solo psíquico se refere tanto à ideia de um terreno psíquico, um solo onde pode se constituir um edifício, quanto à ideia de um solo – um solilóquio – psíquico, como aquilo que soa sozinho, que tem uma existência própria, discriminada do objeto.

O bebê necessita ardentemente de seu objeto primordial, mas o conhecimento da extrema necessidade deste objeto é catastrófico porque impõe outro conhecimento que lhe é subjacente: o da extrema diferença entre ego e objeto, em um momento em que é profundamente necessário que se mantenha a indiscriminação entre ambos. Notemos que muitos mecanismos de defesa, acionados com maior força neste momento, (refiro- me particularmente aos mecanismos de defesa narcísicos, tais como identificação projetiva, projeção, introjeção), tem por finalidade exatamente reduzir qualquer diferença entre o ego e o objeto, rasurar qualquer percepção de um outro que se insinue quando se necessita de uma união fusionada com o objeto.

Mas se este solo (terreno) psíquico, que funciona como uma estrutura enquadrante (Green), pode se assentar, o ego ganha em condições para ir discriminando, ao seu modo, um não-eu e, sem seguida, um objeto.

Green afirma que o objeto primordial “deve se fazer esquecer como constituinte da estrutura psíquica: ele existe sob a forma da ilusão de que não é constituinte da estrutura psíquica, mas se apresenta como diferente desta, como objeto de atração ou de repulsa135”.

Entendo que este esquecimento do objeto primordial se refere à sua absoluta necessidade, um esquecimento da absoluta dependência do objeto, algo que está muito próximo ao sentido atribuído por Winnicott quando fala sobre o estágio de dependência absoluta do bebê. É isto que deve sucumbir ao recalque primário para que esse objeto absolutamente necessário possa aparecer novamente no horizonte como um objeto de atração ou de repulsa. O recalque afasta a fonte da satisfação pulsional (Candi, 2010). O

esquecimento do objeto primário como fundamental à estrutura psíquica se acompanha do esquecimento também de uma relação profundamente fusional com este objeto, que agora pode aparecer como um objeto diferente.

Este esquecimento do objeto absolutamente fundamental permite a entrada na relação mãe-bebê de objetos que lhe possam ser substitutos, substitutos desta relação esquecida, sinalizando para a possibilidade de investimentos em outros objetos, investimentos que se farão pela via do amor ou do ódio. Fica evidente que o não esquecimento, o não desprendimento deste objeto absolutamente necessário – que acredito é o esquecimento não do objeto, mas de uma relação com o objeto - , impediria a entrada de tais substitutos.

A idéia greeniana que discutimos aqui ganha em clareza se levamos em consideração a leitura de Cintra e Figueiredo (2004) sobre o tema. Os autores afirmam:

Quando lidamos com pacientes cujos psiquismos puderam contar com objetos fundamentalmente eficazes e adequados, a parte do objeto tende a se tornar invisível e inaudível, vale dizer, nestes o trabalho do negativo realiza a sua tarefa constitutiva, o que inclui...o esquecimento dos objetos. Quanto mais um objeto falta em suas funções constitutivas, mais barulho faz, quanto mais ele se ausenta em suas funções, quando necessitava estar presente, mais sua presença é ofuscante, atraindo a atenção do clínico e do teórico136.

É neste momento, quando o objeto falta e marca sua presença, tornando-se ofuscante, “uma intrusão intolerável” para utilizar a expressão de Green, que eu gostaria de concentrar minhas discussões a partir de agora. Isto porque, acredito, é quando o objeto falha que as angústias de separação são mais dolorosamente vivenciadas e as pulsões de morte aparecem com maior expressividade.

3. Os desvios do trabalho do negativo, percalços do processo de diferenciação

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 116-118)