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CAPÍTULO I – A agressividade: revisitando diferentes perspectivas

E. Enfim

Toda a teoria das posições de Melanie Klein é uma teoria de elaboração da agressividade e do ódio, permitindo encontrar formas mais saudáveis de contê-los e menos destrutivas de conviver consigo mesmo e com o outro. Antes ainda, acredito que é a partir desta elaboração do potencial destrutivo que se abre um caminho para o contato verdadeiro e para a relação com o outro materno e, posteriormente, com os seus substitutos. A própria passagem da relação com a mãe para uma relação que aceite

89 M. Klein. (1928). Estágios iniciais do conflito edipiano. Rio de Janeiro: Imago Ed., p. 217.

90 M. Klein. (1935). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. Rio de Janeiro:

substituições está mediada pela possibilidade da elaboração da agressividade, como veremos no próximo capítulo.

Logicamente, os pormenores incalculáveis das experiências das posições esquizo-paranóide e depressiva, geram diferentes configurações psíquicas e diferentes formas de lidar com o potencial destrutivo. Muito deste potencial continua sendo expulso do self à procura de um corpo em que possa ser depositado, à custa de um empobrecimento egóico tamanho, de um sentimento avassalador (vassalo = indivíduo que jura fidelidade a um senhor) de dependência do outro, de irrealidade e mesmo de uma sensação de vazio devastadora, que desertifica o ego, e que não pode ser preenchida, assunto que teremos em conta no próximo capítulo.

Podemos dizer que as diferentes posições se referem a modos diferentes de conter o potencial destrutivo. Em Klein, marcadamente mais evidente do que em Freud, todos os sentimentos de ódio, agressividade e destruição são incorporados no funcionamento da pulsão de morte, que atravessam o sujeito desde o seu nascimento e determinam o modo de se relacionar com o objeto.

3. A perspectiva winnicottiana da agressividade: a possibilidade da conquista do relacionamento com o mundo externo

A leitura sobre a agressividade se enriquece muito quando consideramos as intuições de Donald Woods Winnicott sobre o tema. Ignorar as contribuições deste grande psicanalista é incorrer no perigo de tornar este trabalho menos rico. Por este motivo, não seguirei adiante sem antes me furtar de suas valiosas contribuições.

Em linhas gerais, a teoria winnicottiana sobre a agressividade é explorada pelo autor de diversas maneiras. Optei por apresentá-la e discuti-la de acordo com o grau de maturidade do Eu do bebê porque acredito ser esta a possibilidade que mais iluminará as nossas reflexões nos capítulos que se seguem tendo em vista os objetivos deste trabalho. O que quero destacar neste momento é justamente a estreita relação entre a agressividade e o processo de integração do Eu.

Para Winnicott, a possibilidade de experimentar a agressividade no curso do desenvolvimento emocional é uma conquista adquirida aos poucos a partir de uma parceria entre o bebê e o ambiente. De antemão, cabe ressaltar que a agressividade vai se modificando de acordo com o grau de integração do bebê. Para se ter apenas uma vaga idéia, antecipo que a agressão que o bebê experimenta nos estágios iniciais do desenvolvimento, onde a dependência do ambiente é absoluta, diverge em muito daquela experimentada por ele em um momento do desenvolvimento em que a dependência do ambiente se torna menos absoluta.

De uma forma geral, ao longo de toda sua teoria, Winnicott é incansável em chamar nossa atenção para a importância do relacionamento do bebê com o ambiente externo no processo de seu desenvolvimento emocional. É o ambiente que, em última instância, possibilitará a todo potencial herdado do bebê se tornar ou não uma experiência integrada à sua personalidade. “Embora inerente, a agressividade só se desenvolverá, e se tornará parte do indivíduo, se lhe for dada a oportunidade para experienciá-la de acordo com a sua necessidade [do bebê] e emergência no processo de amadurecimento91”.

Na sua teoria da agressividade, isso não será diferente. Neste sentido, Winnicott segue na contramão dos desenvolvimentos propostos por Melanie Klein e seus seguidores, em que o acento teórico recai sobre o mundo interno do bebê. Winnicott faz

91 E. O. Dias. (2000). Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento. In: Natureza humana: revista

recair o acento sobre a existência de um ambiente externo que pode se apresentar em uma dupla vertente: tanto como facilitador do desenvolvimento emocional do bebê quanto como um obstáculo para este último. Todos sabemos que o ambiente facilitador de que Winnicott nos fala inclui a presença de uma mãe suficientemente boa, que é capaz de transmitir, através do exercício de suas funções, uma base sólida de confiança e de continuidade que permite ao bebê levar adiante o seu desenvolvimento – algo muito próximo da concepção kleiniana de objeto interno bom. Lembremos que Winnicott inicialmente se posicionava com um discípulo de Klein.

Do outro lado, em oposição ao ambiente suficientemente bom, apresenta-se o ambiente que falha em transmitir estas características à experiência do bebê e as consequências serão sentidas por ele.

Aproximando-se de Klein, Winnicott reconhece no amor e no ódio os elementos essenciais sob os quais se fundamentam as relações humanas, mas, apesar disso, entende que há um longo caminho a ser trilhado até que o bebê possa experimentar sua agressividade a favor do ódio ou até que o amor possa surgir da forma como o concebemos – “como uma relação de eu-total”, diria Freud (1915) em A pulsão e os destinos da pulsão. Ódio e amor são, na perspectiva winnicottiana, sinais de maturidade emocional e não estão postos em cena desde o início.

Estas ideias divergem diametralmente daquelas propostas por Melanie Klein, onde, inequivocamente, o ódio aparece como expressão do funcionamento da pulsão de morte. Podemos pensar no bebê kleiniano como aquele que já nasce mais ou menos atravessado por intensos sentimentos de ódio, pela inveja e por impulsos carregados de destruição – daí ela se referir tanto aos ataques ao corpo materno e dar ênfase, por exemplo, ao sadismo em sua teoria.

Enquanto isso, a proposta winnicottiana é a de que, nos estágios iniciais do desenvolvimento emocional, o Eu ainda está pouco ou nada integrado e a agressividade - que aparece muito mais como sinônimo de impulsividade motora –, podendo ser experimentada repetidas vezes em um ambiente que tem sucesso em acolhê-la, poderá ser integrada à personalidade do bebê. Esta é uma experiência necessária para que o bebê possa se relacionar com o mundo externo. Só quando a agressividade pode ser vivenciada e integrada é que ela pode se tornar a base da criatividade. É uma experiência que leva em conta uma dimensão que não tem tanto relevo em outras teorias: a dimensão temporal.

Apenas após esta jornada, que algumas vezes se conduz de forma muito precária ou à custa de muitos tropeços, a agressão poderá se organizar como ódio e como inveja. Estas formas de agressão mais tardias são, portanto, uma conquista do desenvolvimento emocional.

A idéia de conquista neste contexto se revela deveras interessante uma vez que propõe uma desnaturalização dos afetos e das emoções do bebê – naturalização que percebemos inequívoca nas entrelinhas freudo-kleinianas. Diferentemente do que observávamos em Freud, onde a agressividade se anunciava fundamentalmente como reação à frustração (causada pela entrada em funcionamento do princípio de realidade), com Winnicott, temos que considerar uma agressividade que no início é sinônimo de motilidade, atividade, impulsividade, vivacidade ou espontaneidade. Mas então que agressividade é essa a que Winnicott se refere nos estágios iniciais? E, mais importante, qual seria a sua função?

A. Os estágios iniciais do desenvolvimento emocional: o tempo do pré-

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 80-84)