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A agressividade nos primeiros tempos de diferenciação do Eu

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 90-94)

CAPÍTULO I – A agressividade: revisitando diferentes perspectivas

B. A agressividade nos primeiros tempos de diferenciação do Eu

Aos poucos, nos adentramos num nível de maturidade do Eu, possibilitado pelas experiências iniciais, que permite ao bebê ter rápidos vislumbres de um não-Eu, situado fora de si. As experiências que permitem esse vislumbre da realidade serão repetidas incontáveis vezes ao longo do desenvolvimento emocional do indivíduo, permitindo que o bebê possa, cada vez mais, ir se diferenciando do ambiente, tornando-se único. Neste tempo, o bebê tem momentos onde está mais integrado, embora essa integração ainda

97 D. Winnicott. (1950-55). A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional. Rio de Janeiro: F.

Alves, p. 297.

98 Idem, ibidem, p.301.

não seja um fato estabelecido, que se alternam com outros em que essa integração é perdida, num movimento de vai-e-vem psíquico.

Ao mesmo tempo, a mãe, gradualmente, vai retornando às suas atividades profissionais e pessoais que não incluem o bebê e assim procede a uma desadaptação ativa em relação a este último. Neste etapa, a mãe já compreende melhor o seu filho e aposta na capacidade do pequeno ser de tolerar pequenas falhas.

Porém, esse novo desenvolvimento traz consigo complicações: o perigo que se constituem as fantasias destrutivas derivadas de sua própria impulsividade e avidez. A integração do Eu permite que o bebê possa também se dar conta de que o outro com que se relaciona em seus estados de excitação e nos estados de quietude são uma única e mesma pessoa – a mãe. O leitor perceberá que estamos muito próximos da posição depressiva kleiniana. As fantasias de destruição se tornam potencialmente perigosas porque ameaçam a sobrevivência do objeto amado e criam um solo fértil para a entrada em cena da culpa. “A culpa refere-se ao dano que a criança imagina haver causado à pessoa amada nos momentos de relacionamento excitado100”.

A tarefa de diferenciação e integração101 bebê-ambiente nesta etapa é também sustentada pela sobrevivência da mãe às fantasias destrutivas do bebê, o que será fundamental para o seu desenvolvimento emocional. Se a mãe tolera bem e sustenta ao longo do tempo a situação em que o bebê tem fantasias predatórias em relação a ela, a destruição do bebê será apenas potencial, acontecerá apenas na fantasia.

Ao contrário, uma mãe que reage com violência seja qual for o motivo – sendo este externo ou não ao bebê – e provoca uma mudança no seu padrão de cuidado com o bebê (por exemplo, pela morte de um parente querido ou de outro filho), poderá ter sua atitude interpretada pelo bebê em função das fantasias destrutivas do mesmo. O bebê pode interpretar que a mudança de estado da mãe – mudança que não é bem-vinda - foi provocada pelas suas fantasias destrutivas. Neste caso, as fantasias destrutivas começam a ganhar o status de realidade e, portanto, passam a ser sentidas como muito perigosas. As fronteiras entre fantasia e realidade ficam temporariamente embaçadas.

Esta passagem me faz lembrar uma paciente que atendi cerca de dois anos no consultório. Vou relatar rapidamente uma situação que vivemos juntas durante algum tempo na análise para, em seguida, retomar os desenvolvimentos winnicottianos. Paula

100 D. Winnicott. (1950). A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional. Rio de Janeiro: F.

Alves, p. 291.

101 Não existe diferenciação possível que não inclua um processo de integração, nem integração que não

é uma menina de 6 anos. Em termos de comportamento, ela se assemelha a Pedro: é uma menina doce, calma, delicada. Na análise, não há espaço para aquilo que é ruim, estragado. Apenas sua parte “boa” aparece: as atividades que fez na escola, como se comportou bem na viagem com a mãe, etc. A sensação que vou tendo ao longo das sessões é que ela tem medo de entrar em contato com o seu lado ‘menos bom’ e mais hostil, que o mundo pode ser muito perigoso se ela deixar esse lado “ruim” um pouco mais livre. Chama atenção que sua mãe, nos primeiros encontros que tenho com a Paula, não espera o término da nossa sessão – ao contrário, a par do nosso horário, ela bate à porta pontualmente querendo ver o que a filha estava fazendo. Entendo que essa mãe dramatiza justamente um mundo que pode ser muito perigoso se a criança é deixada sozinha, mais livre, e que, portanto, ela precisa verificar o que está acontecendo.

Acredito que a situação narrada mostra como o ambiente pode ir sutilmente comunicando quão perigoso pode ser o mundo das fantasias inconscientes, e a Paula, que me parece ter tantas dificuldades para crescer, porque para crescer verdadeiramente e se desenvolver é preciso que possa estabelecer um contato mais íntimo com seus sentimentos, fica em certos momentos, apavorada.

Retornando à Winnicott, o problema dessa penumbra onde se esfumaçam as fronteiras fantasia-realidade é que na fantasia as coisas funcionam de um modo mágico:

(...) não há freios na fantasia, e o amor e o ódio tem consequências alarmantes. A realidade externa tem freios, pode ser estudada e conhecida, e a verdade é que o impacto total da fantasia pode ser tolerado somente quando a realidade externa é suficientemente levada em conta. O subjetivo é tremendamente valioso, mas é tão alarmante e mágico que não pode ser usufruído, exceto enquanto um paralelo ao objetivo102.

O trecho é de uma beleza intocável porque nos fala de um outro, de um objeto de amor – que corresponde à uma realidade – que aparece como um fiador103 de uma

verdade, a da existência de um mundo objetivo pré-figurado. Este outro-fiador aparece como alguém que garante esta verdade e que se ocupa em mantê-la e sustentá-la para bebê.

102 D. Winnicott. (1945). Desenvolvimento emocional primitivo. Rio de Janeiro: F. Alves, p. 228.

103 Tomei conhecimento pela primeira vez com esta ideia de um outro como fiador da verdade através da

psicanalista Adela Stoppel Gueller, em um texto chamado Quando não se pode mais esquecer, publicado pela Percurso: revista de psicanálise, ano XXII, n. 43, dezembro 2009, p. 17-36.

A aceitação da realidade externa tem consequências benéficas para o desenvolvimento emocional de qualquer criança, em qualquer idade, sobretudo num tempo e numa sociedade como a nossa em que, em nome da saúde emocional das crianças, alguns discursos se sustentam sob a ótica de que as intervenções parentais mais rigorosas podem traumatizar o filho. Os pais, impulsionados pelo medo de se sentirem (conscientemente) responsabilizados pelos traumas de seus filhos ou pela culpa que bate à porta com antecedência, teimam em equacionar ‘educação’ com ‘permissividade’, esquecendo-se da violência psíquica que cometem contra seus próprios filhos quando tudo lhes é permitido. Acredito que estamos falando justamente de algo muito próximo daquela oposição do ambiente, que no início é física (através do toque, do segurar etc.), mas que depois se torna uma referência psíquica e tem uma importante função de proteger a criança da potência avassaladora de seu mundo interno, de suas fantasias.

Na clínica, mais uma vez, as crianças podem ser exemplos dessas relações distorcidas, em que elas assumem uma potência ainda muito pesada para seu tamanho. Muitas fazem apelos desesperados pela autoridade parental, por alguém que olhe para elas e que cuide no sentido de oferecer um limite a esta potência. Muitas vezes estes apelos se transformam em gritos ensurdecidos. Essa é a história de Mário que dizia que o seu anjo protetor era o monstro da ficção Hulk, carapaça de monstro que vestia a criança para mostrar uma suposta (e suposta não só por ele, mas por aqueles ao seu redor) potência que, na verdade, escondia um menino muito fragilizado, que subia na balança para se pesar e para se medir durante as sessões da análise e dizia: ‘eu sou só uma criança’.

C. A agressividade no estágio do concernimento: a capacidade de se preocupar

No documento Clarisse Carneiro Cavalcanti de Melo (páginas 90-94)