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Domínios de investigação em psicoterapia

2.3. Fatores ligados ao estilo do terapeuta

2.4.2. A aliança terapêutica

Entende-se por aliança terapêutica a qualidade da interação desenvolvida entre terapeuta e cliente no âmbito do processo terapêutico (Ribeiro, 2009), isto é, no continuum relacional que se estabelece durante o espaço-tempo em que decorre o processo terapêutico.

Importa referir que este conceito remete originariamente para a literatura psicanalítica, nomeadamente para os textos de Freud (1969a, 1969b, 1969c, 1969d), considerado um pioneiro no interesse pela aliança e pelo seu papel para o sucesso terapêutico. Em síntese, a aliança terapêutica em psicanálise tem por base o conceito de neurose de transferência, isto é, o “falso enlace” que a mente inconsciente do paciente imprime no clima afetivo da sessão, ao projetar na pessoa do analista sentimentos, emoções e pulsões amorosas, ou, ao invés, odiosas que, apesar de se reportarem (conscientemente) ao “aqui e agora” da sessão, remetem para um momento anterior (eventualmente infantil) e à atualização de sentimentos e pulsões dirigidas a uma figura significativa do seu mundo interno. É precisamente a transferência positiva que alicerça a aliança terapêutica com o psicanalista; aliás a referência à transferência positiva como alicerce do tratamento psicanalítico, foi a base da derivação conceptual que conduziu à noção técnica de aliança terapêutica,

51 originalmente formulada por Zetzel (1956) e por Greenson (1967), em épocas diferentes. Se o conceito de neurose de transferência evoluiu para o conceito de transferência (também inconsciente, mas reportado mais claramente ao “aqui e agora” da relação terapêutica) mantém-se a inscrição originária da noção psicodinâmica de aliança terapêutica no conceito de transferência positiva entre paciente e terapeuta.

Na década de 50 do século passado, Carl Rogers, no quadro do desenvolvimento da abordagem humanista - a Terapia Centrada na Pessoa, adota (e adapta) a aliança terapêutica, à qual atribui um papel importante e promove a sua investigação. Refira-se que este modelo terapêutico surgiu inicialmente como um movimento de reação (e ensaio de resposta) às abordagens teóricas centradas no terapeuta (psicanalista, médico, psicólogo clínico ou conselheiro) dominantes na época (Rogers, 1974, 1979). Com efeito, a prática da psicologia clínica e do aconselhamento assentava na recolha de informação, sobretudo provinda da aplicação de testes, subentendendo-se que os problemas do paciente se resolviam pelo fornecimento, pela transmissão e pela expressão de informação sobre a atitude relacional mal adaptativa deste último no decurso das suas interações familiares e sociais (Orlinsky & Rønnestad, 2000).

Apesar das contribuições de Rogers terem sido, no início, fundamentalmente clínicas, representaram uma oposição crítica em relação ao panorama vigente de psicoterapia e do aconselhamento, podendo ser tomadas, assim, como revolucionárias (Orlinsky & Rønnestad, 2000). Com efeito, elas inauguram a tradição não diretiva da consulta psicológica, simbolizam a escola humanística da psicologia e apostam na psicoterapia como relação interpessoal. A este propósito, Rogers (1957) promove a investigação da unidade e regularidade inerentes à relação interpessoal no contexto do trabalho psicoterapêutico, e atribui a primazia dos fatores de ordem relacional para a promoção da mudança terapêutica, considerando que a mudança terapêutica apenas ocorre no contexto da relação entre paciente e terapeuta. Por outro lado, a possibilidade de gravação das sessões para fins de investigação é utilizada com relativa aceitação por parte da comunidade terapêutica, inclusive em alguns meios psicanalíticos (Orlinsky et al., 2004). Como referem Auld e Murray, “the sound recording of interviews (...) made a common set of data available to scientists, a set that can be preserved and studied, as many times as necessary” (1955, p. 377). Na década seguinte, os investigadores, para além de técnicas de análise de conteúdo da narrativa produzida pelo paciente, recorrem a técnicas psicométricas para a análise da informação recolhida, com o objetivo de melhorar a compreensão das experiencias subjetivas não só dos pacientes, mas também dos terapeutas (Orlinsky et al., 2004).

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Face à valorização destes fatores, tem-se assistido a uma atenção generalizada por parte dos psicoterapeutas e investigadores (em particular os de orientação humanista) aos comportamentos favoráveis ao desenvolvimento de uma relação de qualidade no par terapeuta-paciente. Neste contexto de valorização da natureza relacional e colaborativa da terapia, o conceito de aliança terapêutica torna-se essencial para a mudança terapêutica, apesar de Rogers nunca o ter referido diretamente (Rennie, 1998).

Mais tarde, em 1975, uma marcante etapa da evolução histórico-conceptual da aliança terapêutica corresponde ao modelo pan-teórico3 (ou transteórico), proposto por Bordin.

Como refere Horvath (2000), Bordin define a aliança terapêutica de modo tripartido, como: 1. relação consciente e experimentada no “aqui-e-agora” da relação do par terapêutico 2. bidirecional, já que envolve colaboração, concordância e negociação entre

terapeuta e cliente

3. comum a todos os processos de ajuda terapêutica

Bordin sugere, assim, um modelo abrangente da relação entre terapeuta e cliente baseado na colaboração e negociação mútua (Horvath & Luborsky, 1993), mantendo a designação de aliança terapêutica proposta por greenson4 (1967; Stiles et al., 1986) o que,

como foi referido acima, está em linha com diferentes referências na literatura, em que as duas designações são usadas de forma relativamente pouco delimitada.

A definição de aliança de terapêutica proposta por Bordin (1975, 1979) assenta fundamentalmente na ideia de colaboração mútua constituída por três componentes interdependentes: consenso relativo aos objetivos, atribuição de tarefas e desenvolvimento de vínculos. Isto é, o autor inclui três dimensões, uma que atende à qualidade do vínculo que se estabelece entre terapeuta e cliente, e reflete a confiança, e outras duas orientadas para o trabalho terapêutico: o acordo em relação aos objetivos terapêuticos e o acordo em relação às tarefas. Deste modo, Bordin procurou estender o conceito de aliança às diferentes terapias ou abordagens, assumindo que qualquer terapia exige um compromisso do terapeuta e do cliente com o trabalho terapêutico, independentemente da especificidade de cada modelo. A perspetiva colaborativa subjacente a esta conceptualização da aliança

3 Bordin apresenta o modelo pela primeira vez numa comunicação intitulada The working alliance:Basis for a general theory

of psychotherapy, apresentada na Conferência Anual da Society for Psychotherapy Research da American Psychological Association em 1975.

4 Greenson (1967) é também um autor com um papel relevante na evolução do conceito de aliança terapêutica. O modelo que propõe sintetiza as contribuições de outros autores, e considera que a relação terapêutica é constituída por três elementos: transferência, aliança terapêutica e relação real (Horvath & Luborsky, 1993). Verificamos aqui, uma tentativa de clarificação de conceitos como a relação e a aliança terapêutica, sendo a primeira mais abrangente, integrando a segunda e outros elementos.

53 entende o cliente como um agente ativo da sua mudança que, em conjunto com o terapeuta, aceita negociar aspetos relacionados com o trabalho terapêutico (tarefas e objetivos) num processo de compromisso partilhado.

De acordo com Horvath e Luborsky(1993), este modelo permite também reorganizar a dicotomia entre técnica e relação, já que os dois elementos não podem ser separados. Considera estes elementos não apenas interdependentes, mas também reciprocamente reforçadores e transversais aos diferentes modelos terapêuticos.

O modelo proposto por Bordin acabou por se afirmar como a definição de aliança terapêutica mais aceite, pois ele capta os elementos essenciais do processo terapêutico comuns às diferentes psicoterapias e permite integrar as eventuais diferenças em função das perspetivas teóricas a elas subjacentes (Orlinsky & Rønnestad, 2000). Alguns autores (Horvath & Symonds, 1991) consideram mesmo que o conceito de aliança terapêutica de Bordin se mostra mais compreensivo, abrangente e preciso que outros conceitos integrantes da relação terapêutica (p. ex., a transferência ou a empatia), e, deste modo, tem sido amplamente utilizado nos estudos empíricos de processo e resultados. Por outro lado, o caráter abrangente e transteórico deste modelo tem-se revelado apelativo, não só no que respeita à sua operacionalização para fins empíricos, mas também para o maior acordo entre escolas psicoterapêuticas relativamente à validação da aliança terapêutica como fator comum (Horvath & Bedi, 2002). As características da sua operacionalização permitem uma apropriação do conceito de aliança por diferentes abordagens teóricas, aproximando-o de outros conceitos de natureza relacional ou técnica específica, o que apoia o seu caráter transversal (Ribeiro, 2009).

Todavia, alguns autores consideram que talvez se tenha transitado de forma demasiado rápida de uma ideia de relação terapêutica ligada a determinadas teorias (p.ex. a teoria psicodinâmica) para uma construção “a-teórica” transversal às diferentes teorias (Horvath, 2005). Esta alteração (desejável na sua essência) pode ter acarretado efeitos menos desejáveis, aplicando uma perspetiva redutora à (complexa) relação entre o terapeuta e o seu paciente. Por outro lado, diferentes autores (Hatcher, 2010; Hatcher & Gillaspy, 2006; Webb et al., 2011) identificam ainda como efeito negativo do modelo de Bordin, entre outros, a confusão entre a aliança e a relação terapêutica na sua globalidade. Para estes autores, críticos do modelo, a primeira não compreende todos os fenómenos que ocorrem no âmbito da segunda, mais abrangente, o que corrobora a ideia, por nós apresentada anteriormente, da insuficiente delimitação de ambos os conceitos.

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Dada a sua importância para o processo terapêutico, muitos estudos têm sido realizados e desenvolvidos instrumentos psicométricos para a avaliação empírica da qualidade da aliança terapêutica5 (Horvath, 1994a; Horvath & Greenberg, 1989; Krause,

Altimir, & Horvath, 2011) e, de acordo com estudos realizados, a aliança terapêutica é uma variável do processo terapêutico que contribui decisivamente para os resultados da psicoterapia (Baldwin, Wampold, & Imel, 2007; Horvath & Symonds, 1991). Conforme já foi referido, a aliança terapêutica tem sido amplamente documentada na literatura como um fator comum às diferentes abordagens psicoterapêuticas, sendo associada, tanto à mudança do paciente (Crits-Christoph et al., 2011; Gibbons et al., 2002; Horvath & Bedi, 2002; Horvath & Symonds, 1991; Martin et al., 2000) como à predição dos resultados da terapia (Barber et al., 2001; Del Re et al., 2012; Liber et al., 2010; Marmarosh & Kivlighan, 2012; Mikulincer, Shaver, & Berant, 2012; Muran et al., 2009; Orlinsky et al., 2004; Sauer, Anderson, Gormley, Richmond, & Preacco, 2010).

Por outro lado, a aliança desenvolve-se ao longo da terapia, e a revisão da literatura mostra que esse processo é também influenciado por diversos fatores, quer associados ao terapeuta, quer associados ao cliente. Horvath (2000) defende, a este propósito, que as fases iniciais do estabelecimento da aliança envolvem o desenvolvimento de um quadro geral de colaboração, a aceitação de um modus operandi para o tratamento e uma negociação de metas intermediárias e finais para a terapia (Figura 2.1). Em fases posteriores são os elementos relacionais e interpessoais os mais implicados na aliança e na concretização do resultados, bem como nos aspetos idiossincráticos a cada relação terapêutica.

5 Para avaliar a aliança terapêutica vários instrumentos foram desenvolvidos nas últimas décadas, no entanto realçamos aqui a Working Alliance Inventory (WAI) de Horvath e Greenberg (1989), cuja versão portuguesa foi entretanto desenvolvida (Machado & Horvath, 1999; Ramos, 2008).

55 Competências técnicas Fatores interpessoais Disposições interpessoais Fatores intrapessoais Impacto da sessão TERAPEUT A CLIENTE RESUL TADOS Impacto da sessão ALIANÇA

(fase de abertura) (fase intermédia/tardia)ALIANÇA

Figura 2.1. Modelo de funcionamento da aliança terapêutica proposto por Horvath (2000, p.170)

O desafio que se coloca agora, é perceber, por um lado, o que contribui para a aliança e, por outro, o que o contribui para a qualidade da aliança e consequentemente para a melhoria do que se faz em psicoterapia (Sousa & Ribeiro, 2009).

Não é objetivo do presente estudo responder a esta questão. No entanto, ela ajuda- nos a refletir, entre aliança e relação, entre técnica e relação, e levanta outras questões, entre as quais o contributo de cada uma destas variáveis, que se relacionam entre si no espaço-tempo, entre o estrutural, o contextual e o relacional, que é vulgarmente designado como setting terapêutico.

2.4.3. O setting terapêutico como variável relacional: As patologias da era