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2.5 Variação e interferência linguística

2.5.4 Alguns fenômenos selecionados

2.5.5.3 A alternância entre os verbos ter e haver em estruturas existenciais

No tocante aos avanços no contínuo de oralidade e de escrituralidade, alvo de nossa pesquisa, tratamos, neste subcapítulo, do próximo aspecto analisado nas produções escritas de nossos alunos: a substituição do verbo haver pelo verbo ter em construções existenciais, o que constitui uma interferência linguística por transposição, no âmbito lexical. Sobre a temática, temos como aporte os estudos de autores como Callou e Avelar (2000) e Callou (2012)8, observando as diferenças linguísticas entre as regras determinadas pela gramática normativa e as reais situações de uso da língua.

Diante do exposto, tomemos por base o que diz a gramática normativa acerca dos verbos ter e haver com sentido de existir a partir, por exemplo, de Bechara (1983). Para esse autor, a variação consiste em uma irregularidade do

8No texto “Sobre variação e mudança no português no Brasil – aspectos morfossintáticos”, de 2012, Dinah Callou aborda a trajetória de ter e haver como um fenômeno morfossintático pelo fato de o verbo haver, como auxiliar, levar a construção do futuro do presente no português do Brasil. Entretanto, consideramos, em nossa pesquisa, a alternância entre ter e haver como um fenômeno de caráter lexical, uma vez que contempla a escolha do léxico quando empregados no sentido existencial.

ponto de vista das variedades cultas, sendo o emprego do verbo haver a referência do “correto” uso da língua. Segundo esses autores, o verbo haver em orações equivalentes ao sentido do verbo existir, isto é, seguido de objeto direto e significando a existência de uma pessoa ou objeto, atua como um verbo impessoal e, por essa razão, deve sempre ser empregado na 3ª pessoa do singular. No que se refere ao uso do verbo ter com sentido de existir, podemos perceber que seu emprego quase não é citado ou, quando o é, seu uso se limita à fala, sendo, portanto, tais construções uma “incorreção na língua culta” (BECHARA, 1983, p. 33), a exemplo de Tem vários nomes aqui. / Tem um homem na sala.

Com relação às pesquisas de caráter sociolinguístico, estas nos mostram que o verbo ter também adquire a função existencial, tanto na fala quanto na escrita, inclusive em contextos próprios à escrituralidade, e que sua substituição pelo verbo haver depende de questões como a escolaridade ou o meio social em que se insere o falante. Como exemplificação, percorremos o trabalho de Callou e Almeida (2009, apud CALLOU, 2012) cuja perspectiva para análise dos fenômenos é a da sociolinguística variacionista a partir de Labov (1994).

Callou (2012) destaca que, para a pesquisa, foram utilizadas quatro amostras de fala culta, de duas cidades brasileiras: Salvador, na região Nordeste – dados cedidos pela equipe local, e Rio de Janeiro, na região Sudeste, dados disponíveis em www.letras.ufrj.br/nurc-rj, registradas em dois períodos distintos de tempo - década de 1970 e década de 1990. Para o português europeu falado, foram utilizadas amostras reunidas no Projeto VARPORT - Projeto Análise Contrastiva de Variedades do Português, disponíveis em www.letras.ufrj.br/varport, também referentes às duas décadas. Para a língua escrita (português brasileiro, doravante PB, e português europeu, doravante PE), foram utilizados textos jornalísticos do mesmo período. Segundo a autora, o trabalho visou à discussão sobre a hipótese de a variação de cada fenômeno estar relacionada à “alimentação” da gramática periférica, no processo de escolarização, ou à gramática nuclear, construída no processo natural de aquisição da linguagem, de acordo com Kato (2005, apud CALLOU, 2012) além do fato de os padrões de distribuição de uso virem a ser explicados também por fatores externos, pelo contexto sócio histórico das comunidades e

suas características demográficas. De um lado, observa-se o comportamento linguístico variável de duas grandes cidades: Rio de Janeiro e Salvador, e, de outro, o das duas variedades continentais da língua portuguesa: PB e PE.

A fim de ilustrar a aproximação ou afastamento das variedades, Callou (2012) comprova que, de início, as construções existenciais expressas até hoje através da forma culta com haver, no PE, estão em oposição ao PB, que dá preferência ao ter-existencial. As análises revelam que as duas cidades brasileiras apresentam, no que se refere às construções existenciais, comportamentos semelhantes, embora o emprego de ter no campo de haver esteja em estágio um pouco mais avançado na cidade de Salvador que na do Rio de Janeiro (Callou; Avelar, 2000, apud CALLOU, 2012, p.162). A comparação entre as duas décadas sugere uma mudança: o percentual de ter salta de 63%, em 1970, para 76%, em 1990, no Rio de Janeiro; e, na fala culta de Salvador, o percentual passa de 74%, em 1970, para 86%, em 1990.

De acordo com a pesquisa, pôde-se constatar que

tanto na fala culta carioca, quanto na soteropolitana, quatro condicionamentos atuam – dois intralinguísticos e dois extralinguísticos – tanto em 1970, quanto em 1990: tempo verbal, especificidade semântica do argumento interno, faixa etária e gênero do locutor. A análise relativa à fala culta de Salvador deixa evidente que nas mulheres das faixas etárias de 25 a 35 anos e de 36 a 55 anos a mudança já foi efetivada, sendo o uso de ter categórico, embora, na faixa que se inicia aos 56 anos, o uso de ter-existencial seja ainda inibido. A penetração de ter no campo de haver tem encontrado maior resistência entre os homens da terceira faixa etária, com apenas 45% de casos de ter-existencial. Comprova-se, mais uma vez, que são as mulheres que tendem a liderar os processos não estigmatizados de mudança linguística e que, quanto mais jovem o falante, maior a frequência de uso de ter. Levanta-se a hipótese de, no português brasileiro atual, a criança só adquirir o verbo haver, nas estruturas existenciais, durante o seu processo de aprendizado na escola. (CALLOU, 2012, p.163)

Ainda sobre a pesquisa, a autora afirma que na escrita, o haver- existencial até então prevalece, embora o percentual de uso varie, dependendo do gênero de texto. Em textos jornalísticos, o uso do haver chega a 86% e o de ter apenas a 14%, situação inversa à da fala culta.

Por fim, no que se refere à gramática naturalmente internalizada, segundo Avelar (2006, apud CALLOU, 2012, p. 169), não há variação real entre ter e haver no PB, mas entre o que o autor define como um “padrão

default” de sentenças existenciais, para o qual se recorre ao verbo ter, e outros padrões diferenciados que se valem de verbos com valores semântico- pragmáticos diversos, entre os quais se inclui o verbo haver. O uso de haver com sentido de existir, sendo uma forma canônica da língua escrita não consiste, nessa perspectiva, em um reflexo de procedimentos internos à gramática nuclear, mas do provimento da gramática periférica, resultante do processo de escolarização. Nesse caso, devemos atentar, segundo Callou (2012), para o fato de o aprendizado da língua escrita no Brasil ter como alvo estágios anteriores da língua ou a norma do português europeu, o que pode explicar a razão da preponderância de haver e da tendência à exclusão do verbo ter com sentido de existir na língua escrita.

Sendo assim, sabemos ser de fundamental importância que a prática docente reflita constantemente acerca do papel da oralidade e da consciência acerca das exigências da escrituralidade nas práticas sociais. O distanciamento entre essas duas vertentes pode resultar em uma condução equivocada do processo de ensino, sobretudo no que se refere à avaliação do aluno, até porque, ratificando o que vem sendo dito em nosso estudo, por se tratarem de práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos.